Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
domingo, 31 de janeiro de 2021
Fernando Pessoa - Poema do amigo-aprendiz
Filipe Chinita - sobre o 'ópio'
sábado, 30 de janeiro de 2021
Filipe Chinita - na sociedade das classes e do capital
Carta de Patrice Lumumba a sua esposa
Lumumba: "Discurso da proclamação da independência do Congo"
* Patrice Lumumba
Homens e mulheres do Congo,
Guerreiros vitoriosos da independência,
Saúdo-o em nome do governo congolês.
Peço a todos vocês, meus amigos, que lutaram incansavelmente
em nossas fileiras, que marquem este dia 30 de junho de 1960 como uma data
sagrada que estará sempre gravada em seus corações, uma data cujo significado
você orgulhosamente explicará a seus filhos, para que que eles, por sua vez,
possam relacionar com seus netos e bisnetos a gloriosa história de nossa luta
pela liberdade.
Embora esta independência do Congo esteja sendo proclamada
hoje por um acordo com a Bélgica, um país amigável, com o qual estamos em
igualdade de condições, nenhum congolês jamais esquecerá que a independência
foi conquistada na luta, uma luta perseverante e inspirada, que se realiza
diariamente, uma luta em que não fomos intimidados pela privação ou pelo
sofrimento e não nos detemos pela força nem pelo sangue.
Estava cheio de lágrimas, fogo e sangue. Estamos
profundamente orgulhosos de nossa luta, porque foi justa, nobre e indispensável
para pôr um fim à escravidão humilhante que nos é imposta.
Essa foi a nossa sorte nos oitenta anos de domínio colonial
e nossas feridas são muito frescas e dolorosas demais para serem esquecidas.
Experimentamos trabalho forçado em troca de salários que não
nos permitiam satisfazer nossa fome, vestir-nos, ter moradias decentes ou
educar nossos filhos como entes queridos.
Dias e noites, fomos submetidos a zombarias, insultos e
golpes porque éramos “negroes”. Quem nunca esquecerá que o preto era chamado de
“tu”, não porque ele era um amigo, mas porque o “vous” educado era reservado ao
homem branco?
Vimos nossas terras confiscadas em nome de leis
ostensivamente injustas, que reconheciam apenas o direito dos poderosos.
Não esquecemos que a lei nunca foi a mesma para o branco e o
preto, que era branda com uns, e cruel e desumana para os outros.
Experimentamos sofrimentos atrozes, sendo perseguidos por
convicções políticas e crenças religiosas e exilados de nossa terra natal:
nossa sorte era pior que a própria morte.
Não esquecemos que nas cidades as mansões eram para os brancos
e as cabanas destruídas para os pretos; que um preto não foi admitido nos
cinemas, restaurantes e lojas reservados aos "europeus"; que um preto
viajava nos porões, sob os pés dos brancos em suas cabines de luxo.
Quem esquecerá os tiroteios que mataram tantos de nossos
irmãos, ou as celas nas quais foram lançados sem piedade aqueles que não
desejavam mais se submeter ao regime de injustiça, opressão e exploração usada
pelos colonialistas como ferramenta de seu domínio?
Tudo isso, meus irmãos, nos trouxe um sofrimento
incalculável.
Mas nós, que fomos eleitos pelos votos de seus
representantes, representantes do povo, para guiar nossa terra natal, nós, que
sofremos de corpo e alma com a opressão colonial, dizemos a você que daqui em
diante tudo está terminado.
A República do Congo foi proclamada e o futuro do nosso
amado país está agora nas mãos de seu próprio povo.
Irmãos, vamos começar juntos uma nova luta, uma luta sublime
que levará nosso país à paz, prosperidade e grandeza.
Juntos, estabeleceremos justiça social e garantiremos a cada
homem uma remuneração justa por seu trabalho.
Mostraremos ao mundo o que o preto pode fazer ao trabalhar
em liberdade e faremos do Congo o orgulho da África.
Vamos providenciar para que as terras de nosso país de
origem beneficiem verdadeiramente seus filhos.
Revisaremos todas as leis antigas e as transformaremos em
novas que serão justas e nobres.
Pararemos a perseguição ao pensamento livre. Faremos com que
todos os cidadãos desfrutem ao máximo das liberdades básicas previstas na
Declaração dos Direitos Humanos.
Erradicaremos toda discriminação, qualquer que seja sua
origem, e garantiremos a todos uma posição na vida condizente com sua dignidade
humana e digna de seu trabalho e lealdade ao país.
Instituiremos no país uma paz que não se apoia em armas e
baionetas, mas em concórdia e boa vontade.
E em tudo isso, meus queridos compatriotas, podemos confiar
não apenas em nossas próprias enormes forças e imensa riqueza, mas também na
assistência de inúmeros estados estrangeiros, cuja cooperação aceitaremos
quando não se impor a nós uma política de ingerência, mas é dada em espírito de
amizade.
Até a Bélgica, que finalmente aprendeu a lição da história e
não precisa mais se opor à nossa independência, está preparada para nos dar sua
ajuda e amizade; para esse fim, acaba de ser assinado um acordo entre nossos
dois países iguais e independentes. Estou certo de que esta cooperação
beneficiará ambos os países. De nossa parte, enquanto permanecermos vigilantes,
tentaremos observar os compromissos que assumimos livremente.
Assim, tanto na esfera interna quanto na externa, o novo
Congo criado pelo meu governo será rico, livre e próspero. Mas para alcançar
nosso objetivo sem demora, peço a todos vocês, legisladores e cidadãos do
Congo, que nos ajudem a ajudar.
Peço a todos que abandonem suas disputas tribais: elas nos
enfraquecem e podem fazer com que sejamos desprezados no exterior.
Peço a todos que não desistam de nenhum sacrifício para
garantir o sucesso de nossa grande empreitada.
Por fim, peço a você que respeite incondicionalmente a vida
e as propriedades de concidadãos e estrangeiros que se estabeleceram em nosso
país; se a conduta desses estrangeiros deixa muito a desejar, nossa Justiça os
expulsará prontamente do território da República; se, pelo contrário, sua
conduta é boa, eles devem ser deixados em paz, pois também estão trabalhando
pela prosperidade de nosso país.
A independência do Congo é um passo decisivo para a
libertação de todo o continente africano.
Nosso governo, um governo de unidade nacional e popular,
servirá seu país.
Apelo a todos os cidadãos congoleses, homens, mulheres e
crianças, para que se dediquem resolutamente à tarefa de criar uma economia
nacional e garantir nossa independência econômica.
Glória eterna aos lutadores pela libertação nacional!
Viva a independência e a unidade africana!
Viva o Congo independente e soberano!
30 de junho de 1960
https://www.novacultura.info/post/2020/06/30/lumumba-discurso-da-proclamacao-da-independencia-do-congo
José Pacheco Pereira - O que na dimensão do humano permanece analógico (a começar por nós mesmos)
OPINIÃO
A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser
digitalizado e posto online esquece
que nós não somos biónicos, nem digitais – somos analógicos e limitados pelos
nossos sentidos.
30 de Janeiro de 2021, 0:10
Nos trabalhos de
biblioteca e arquivo que faço, contacto de perto com um mundo extinto: o
momento, há cerca de um século, em que há dezenas de jornais, revistas,
publicações, uma espécie de invasão de papel, que chegava às mãos de alguns
portugueses. Havia dezenas de jornais diários nacionais e locais, revistas com
bastante periodicidade, sobre tudo que queiram imaginar – moda, política,
teatro, fado, tauromaquia, vegetarianismo, jardins e hortas, folhetins,
“mecânica popular”, divulgação científica, arte, cinema, livros, saúde,
filatelia, sport, terra, mar e
ar, astronomia popular, locais próximos e estranhos, fantasmas, religiões
várias e espiritismo, “neomalthusianismo”, ou seja, simplificando, métodos de
controlo dos nascimentos, vida colonial, missões, pedagogia, “classes
laboriosas”, propaganda local, gastronomia, ilusionismo, jogos de cartas e
azar, “infância desvalida”, maravilhas do mundo, etc., etc. Vejam o tamanho do
período anterior e tripliquem-no na lista das matérias que tinham uma ou várias
revistas dedicadas, secções nos jornais, ou qualquer outra forma de chegarem ao
papel.
Agora vamos subtrair. Primeiro, o número de portugueses que
lia e tinha acesso a este mar de papel, de leituras e informações era muito
pequeno, num país em que a maioria da população era analfabeta e pobre.
Verdade, mas essa elite existia e consumia esta pluralidade de jornais e
revistas.
Segundo, o “modelo de negócios” da comunicação social, um
eufemismo que se usa sem escrutínio, era diferente. Não era um mundo rico,
havia muitas dívidas a tipografias, não se pagava ou pagava-se muito pouco as
colaborações, as redacções e os jornalistas, quando os havia, eram pobres,
vivia-se muito do voluntariado, havia mecenas e gente que tinha dinheiro e que
o “esbanjava” por aqui, seja por interesse político, seja por convicção e
gosto, mas também gente que comprava e assinava estes jornais e revistas. Havia
também alguma publicidade, algum investimento dos partidos políticos,
republicanos e monárquicos, moderados ou “esquerdistas”, de sindicatos –
a Batalha, órgão da
CGT, era diário – e de “sindicatos de negócios”, como a Moagem, ou os Tabacos,
que eram proprietários principalmente dos órgãos nacionais e os subsidiavam a
fundo perdido. O valor da publicidade só nos últimos tempos passou a ter um
papel significativo. E, do ponto de vista instrumental, publicar hoje, desde
que seja em pequenas tiragens (muitas das tiragens de há cem anos eram bastante
pequenas), é mais fácil e mais barato. Uma outra diferença é que não havia
subsídios do Estado.
Terceiro, é que, com excepção da ainda incipiente rádio, mas
que seria um sucesso em breve, a comunicação impressa não tinha de competir nem
com a televisão nem com a Internet. Essa competição não se faz apenas no
mercado do jornalismo clássico, nem das publicações especializadas e de grupos
de interesse, mas faz-se também – e este “também” é enorme – no tempo e no modo
como se lê, vê e pensa a informação ou o entretenimento.
Quarto, quase tudo isto está hoje na rede, em publicações
especializadas, mas registem o “quase tudo”. O “quase tudo” e o modo como está
é que não é o mesmo do papel. A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser
digitalizado e posto online –
que tem como corolário que nós estamos de um outro lado de uma máquina mesmo
que essa máquina cada vez mais “se cole” ao corpo – esquece que nós não
somos biónicos, nem digitais; somos analógicos e limitados pelos nossos
sentidos, que depois se manifestam em hábitos, práticas, maneiras que não são
substituídos pelo digital, nem no tempo, nem no modo.
Mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito
online, o online não chega às portas de um supermercado, não se dobra e mete no
bolso, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê devagar, nem se
colecciona. E é menos solitário do que estar diante um computador
Um exemplo: ainda não percebo por que razão ninguém se
lembrou de fazer uma espécie de folha volante, ou em formato de edital para
colar nas paredes, diário, ou um boletim semanal para deixar à porta de
supermercados, mercearias, farmácias com um olhar diferente sobre o que se está
a passar, com notícias, textos e criatividade, seja para dizer “leia no Correio da Manhã esta notícia”,
“leia no PÚBLICO este artigo”, veja o novo cartaz do PS, ou como mudaram as
montras, ou as máscaras mais criativas, ou como estão as ruas de dia ou de
noite, e comentar o que há de interessante neste mundo em mudança que a pandemia está a criar.
Pode ser em português ou em crioulo, ou nos dois ao mesmo tempo. Não é, aliás,
precisa muita imaginação para sair do mundo estereotipado da comunicação social
tradicional. Pode ser gratuito ou quase, mas tenho a certeza que muita gente
que hoje tem mais tempo livre o ia levar para casa, e, mais, criar-se-ia uma
habituação. Vou fazer compras, mas onde está a folha do dia que estava aqui
ontem? Sim, eu trago-te o papelinho.
Todas as vantagens do analógico sobre o digital podem ser
exploradas, e mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito online, o online não chega às portas de um supermercado, ou às mãos dos
polícias, não se dobra e mete no bolso, ou se leva num comboio de regresso do
matinal trabalho das limpezas, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê
devagar, nem se colecciona, não é da nossa dimensão física. E é menos solitário
do que estar diante um computador.
Historiador
https://www.publico.pt/2021/01/30/opiniao/opiniao/dimensao-humano-permanece-analogico-comecar-1948552
quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
Filipe Chinita - inscrições de memórias de meu pai
O FASCISMO E A INTOLERÂNCIA EVOCADOS POR UMBERTO ECO
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
Filipe Chinita - para parir abril
Filipe Chinita - estas as curtas viagens.tão diversas.
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
segunda-feira, 25 de janeiro de 2021
LISBOA Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim
LISBOA - Livros e antiguidades estão a ser
expulsos da rua do Alecrim
São mais duas lojas históricas a desocupar os espaços onde
estão há décadas porque o senhorio não lhes quer renovar o contrato de
arrendamento. Aos poucos e poucos, estes "negócios da paciência"estão
a desaparecer da baixa da cidade.
Partilham a rua que “ajudaram a criar”. Dedicaram toda a
vida aos livros, aos documentos, aos manuscritos que a família lhes deixou.
Agora, têm o mesmo destino pela frente: fechar as portas. No final de Setembro,
a rua do Alecrim já não terá os livros da Livraria Trindade e do Centro Antiquário
do Alecrim.
No princípio de Janeiro, ambos os estabelecimentos receberam
uma carta do senhorio a dar-lhes conta de não querer renovar o contrato de
arrendamento. O PÚBLICO não conseguiu entrar em contacto com os proprietários
do prédio.
“É um espaço que está avaliado em dez mil euros por mês. Mas
mesmo que eu pagasse esse valor eles não o arrendariam. Querem o espaço livre”.
Se calhar, “para mais um hotel”, diz Margarida Leite, 53 anos, que trabalha no
Centro Antiquário do Alecrim desde os 20 e herdou o negócio do pai.
Em 1956, Américo Marques enraizou o seu negócio na rua
do Alecrim, num espaço onde antes funcionara a antiga Fábrica Âncora, dos
licores, de onde ficaram os rótulos das garrafas que preenchem hoje uma das
paredes. E ali ficaram entre livros, desenhos, gravuras, quadros, mapas como o
que Margarida diz ser o primeiro mapa impresso de Portugal, de 1560, de Álvaro
Seco.
O pai começou com oito anos por vender na feira da ladra.
Vendia O Mosquito, a revista com
“histórias aos quadradinhos” que foi fundada em 1936. Américo ficou sem
mãe muito cedo. O pai era embarcadiço, andava a pôr carvão nos barcos que
andavam pelo mundo durante sete ou oito meses. E Américo andava por aí sozinho.
Ia buscar o material que vendia, às terças e sábados na feira, aos ferros
velhos que compravam o recheio das casas.
“O meu pai salvou manuscritos, inclusive cartas de D.
Sebastião que ele vendeu mais tarde à Torre do Tombo, cartas de reis, primeiras
edições [de livros]. Antigamente era tudo para desfazer e fazer papel”, conta
Margarida Marques. Se fosse vivo, o pai teria hoje 95 anos. E recorda como, “na
febre da ida do homem à Lua”, o pai fez chegar a Neil Armstrong a obra de
Francis Godwin, L’homme dans la lune (O Homem na Lua, século XVII). “[O
astronauta] mandou-lhe uma fotografia assinada a agradecer o livro, que
relatava a primeira viagem à Lua, com uns gansos que levavam o homem”, conta.
Ali, “é tudo original. Não há reproduções”, garante
Margarida. Pode-se tocar em tudo, sentir o cheiro, a textura do papel. É também
disso que vive um antiquário. Do cliente que entra e se perde entre os
detalhes, que troca dois dedos de conversa, que sabe que “ali se encontram
coisas que não se encontram em mais lado nenhum”. Diz-nos que a loja se estende
muito além da sala da entrada, mas que não mostra mais porque já começou a
encaixotar as 14 toneladas de livros que ali tem guardados.
Separar o trigo do joio
Este ano, foi já anunciado o
fecho de portas da Aillaud & Lellos, da Pó
dos Livros, em Lisboa, da Leitura,
no Porto, ou da Miguel
de Carvalho, em Coimbra. Na porta ao lado do Antiquário do Alecrim, a
Livraria Trindade tem o mesmo destino. António Trindade, 50 anos, culpa o
“terramoto” da especulação imobiliária que atravessa Lisboa e que está “a
destruir” o que ali está há muito tempo e que “dá o charme” à cidade.
É ele que está hoje à frente do negócio que diz ter começado
pela mão dos avós ainda na década de 1930, em Alcobaça, e por onde passavam
“presidentes, ministros, intelectuais, historiadores, escritores”.
“Isto está-nos no corpo. O que nós fazemos é uma espécie de
selecção do trigo do joio. E, às vezes, até salvar, obras do século XVI, XVII”,
diz.
“Aí há dois anos vieram-me aqui dois tipos que encontraram numa
cave de uma casa de Lisboa a segunda ou terceira edição do Dom Quixote (1615)”, conta.
O certo, reconhece António, é que “não se lê como se lia”.
Vende muito para estudantes universitários, mas conserva os clientes que
procuram “as jóias, as raridades”. É que os livros “têm essa magia e há
quem goste de ter na mão a primeira edição da Mensagem”. É isso que mantém estas casas, onde se encontra o
que não se vende nas grandes cadeias, diz o livreiro, enquanto aponta para os
sacos com volumes de arquitectura que tinha acabado de comprar e para outros
cheios com os “setecentos e tal livros” da colecção Vampiro.
Ainda assim, pode não ser o fim do negócio. Era para sair em
Setembro, mas em finais de Abril conta mudar-se para outra loja “relativamente
perto” da rua do Alecrim.
E com isto, quem perde? “A cidade de Lisboa”, diz Margarida.
“As casas típicas estão a desaparecer e depois passa a ser hotel com hotel”.
“O centro de Lisboa está a ser vendido a capitais
estrangeiros”, continua António. “Tem que se cuidar daquilo que é único, aquilo
que dá o charme à cidade. E Lisboa vai perder esse charme”. É que a cidade, nota,
vive dos alfarrabistas, das casas de penhores que já desapareceram, das lojas
das velas, das Belas Artes, das casas de cerâmica como a vizinha Sant’Ana, que
tem também o fim anunciado.
“Eu não me sinto vítima. O que eu aprendi com os meus pais,
com os meus avós e com os meus tios, ninguém me tira. Vou para outro sítio e
sou capaz de reconstruir. O que me custa é o que está a acontecer à cidade”,
diz António.
Margarida diz que o Antiquário do Alecrim se vai mudar para
uma pequena loja do centro comercial Espaço Chiado, na rua da Misericórdia. Um
“espaçozinho com 20 metros quadrados” que não está na rua. E “este tipo de
negócios precisa de ter vida, de ter pessoas a passar”. “É o negócio da
paciência”, como diz, e “devia ser mais apoiado”.
Ambas as lojas dizem ter reunido com a câmara e tentado
concorrer ao programa Lojas com História, mas admitem já não haver tempo para
travar o processo.
Agora, é tempo de começar a encaixotar livros e recordações
e assim despir um espaço que sentem como deles. De se despedirem dos leitores e
da rua que ajudaram a fazer.
21 de Março de 2018, 8:25
tp.ocilbup@arierom.anaitsirc
Filipe Chinita - aconteceu
Rogério Pereira - SONHO À VISTA (a caminho da terra da Utopia)
domingo, 24 de janeiro de 2021
Bernardo Trindade: "Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo"
▲"Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem
compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre,
fala-se da vida e de livros", diz-nos Bernardo Trindade
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
▲ "Muitas livrarias acabaram quando o livreiro
morreu. Poucas tiveram a sorte de terem um filho que seguisse as pisadas do
pai"
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
▲ "Hoje há um certo desinteresse pela História.
Nunca mais ouvi falar dos professores que marcaram imenso, como o Vergílio
Ferreira no Liceu Camões"
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
▲ "Não houve um decréscimo, foi mesmo uma mudança.
Muita gente deixou de vir por causa do medo"
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
▲ "Entramos em várias casas, com uma história
distinta. Cada biblioteca é um mundo, uma história e um cheiro"
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
.
Bernardo Trindade: "Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo" -
José Paiva Capucho Texto - Filipe Amorim Fotografia 23 jan 2021, 18:005
[VN1] Vai
sair da Rua Alecrim, morada da livraria Campos Trindade. Em conversa com o
Observador, recordou o pai, que abriu o negócio, as raridades que pagaram
casamentos e colocou os olhos no futuro.
Livros arrumados, muitos nem por isso, álcool gel, um
computador, marcas de antiguidade. E silêncio. As grades na janela ajudam a
explicar: é hora de sair. Nos últimos dias as homenagens têm sido muitas à
livraria Campos Trindade, um local que, ao fim de 44 anos, vai abandonar o
número 36 da Rua do Alecrim, em Lisboa. Esse carinho deixa Bernardo Trindade, o
responsável pela livraria, quase sem palavras. E sem tempo para responder. Está
ofegante, com a voz tremida, porque, apesar da emoção que tem sentido, é um
homem pouco expansivo, tal como o pai, Tarcísio Trindade, o primeiro
responsável pela livraria. Nesta conversa com o Observador, o filho, o
herdeiro, um apaixonado pelos livros, abre a porta deste quase meio século de
história, com alguma dor e uma garantia: para onde for, os clientes também vão.
.
Mas isso é o futuro. O passado de Bernardo Trindade é o que
permite perceber o porquê deste local ser tão acarinhado. Para o livreiro,
falar do pai é abrir o coração e recordar histórias que contam mais tempo do
que uma vida. Em família, lembra-se de quando lhe deu “o primeiro abraço a
sério”, mas também recorda os pormenores de negócios marcantes, de como graças
ao “Tratado de Confissom”, primeiro livro impresso em português, foi possível
aos pais pagar o próprio casamento.
Esta é uma história que acontece sobretudo entre Alcobaça e
Lisboa, mas tudo começa e termina na livraria, onde chegou com apenas 3 anos de
idade. Aprendeu tudo o que tinha a aprender com o seu “mais próximo e distante
amigo”, desde o catalogar, organizar, explorar ou adquirir bibliotecas. Até a
emoção de ver o brilho nos olhos de um colecionador quando lhe cai nas mãos uma
raridade. E talvez os cheiros que saem de páginas fechadas há demasiado tempo.
“Comprei a biblioteca do Ernesto Sampaio, escritor casado com a atriz Fernanda
Alves. Abri e cheirava a tabaco, misturado com o papel. Era a poesia completa
de Herberto Hélder”, diz.
O orgulho que sente em ter seguido as pisadas do pai
atravessa a máscara que usa durante a entrevista. Mesmo sabendo dos defeitos,
compreende-se. Tarcísio Trindade foi alguém tão ou mais complexo do que aquilo
que contam estas estantes. Chegou a ser o presidente de câmara mais novo
“durante o Estado Novo”, um liberal ao lado de Marcello Caetano que fez amigos
até no PCP, sendo preso político após a revolução 25 de abril. “Ainda tenho o
mandado de captura do Otelo de Saraiva para o meu pai, por ‘associação de
malfeitores’ “, confessa.
A pandemia obrigou-o a decidir aquilo que foi adiando: não
conseguir pagar a renda. Agora, vai para outro sítio qualquer, como um
escritório ou uma loja aberta. Tem a certeza disso, mas tem de parar. 2020 foi
demasiado cansativo. É preciso descansar o corpo, a cabeça e voltar para junto
da família. E se um dia for preciso colocar um ponto final, que seja. Tudo o
que está na livraria foi feito “com amor e o melhor que se conseguia”. E deixa
a nota: é uma profissão com futuro, ainda que o presente a queira rasgar da
história.
"Não sou o
livreiro mais velho de Lisboa, mas sou dos que têm mais anos de profissão
porque comecei muito novo. Acompanhei o meu pai, sempre. Passaram-me pelas mãos
as coisas mais incríveis e preciosas que estiveram nesta casa. Ensinou-me a utilizar
a bibliografia como se fosse a extensão do nosso cérebro, como lhe dar bom uso.
É essencial saber onde ir buscar a informação para
qualquer livreiro."
Sei que um determinado cliente gosta disto ou daquilo, entra
pela porta, sabe que tenho algo guardado, nem precisa de dizer. Ou quando
procura algo há muito tempo e coloco o livro à frente dos olhos, nem
imagina a emoção que é para mim e para as pessoas. Até as ofereço porque me dá
mais gozo. Essa cumplicidade refletiu-se nestes últimos dias. Nunca fui de
muitas palavras, tal com o meu pai, mas houve pessoas que despejaram tudo o que
sentiam no último dia. Choraram, pediram abraços. Tudo de pessoas que não
estava à espera.
"Nas bibliotecas
antigas, entramos no mundo do escritores, nos manuscritos, nas dedicatórias,
nas anotações. É uma aprendizagem diária. Quem ama os livros como eu, sabe que
está aí toda a beleza da profissão. Além das emoções que proporcionamos às
pessoas, essa busca, é aí que está o segredo."
O meu pai era da ala mais liberal do Marcello Caetano,
quando via que as pessoas tinham valor, ajudava. Quando foi o funeral, muita
gente veio de fora, até do estrangeiro, vieram ter comigo a chorar, a dizer que
se não fosse ele, a sua vida estaria muito pior. Tinha muitos contactos em
Lisboa, conseguia arranjar passaportes, era muito arriscado. Foi o presidente
de câmara mais novo do Estado Novo e deputado mais novo da Câmara Cooperativa.
Havia a ideia de fazer uma transição para a democracia de outra forma, depois
com a revolução e com algumas injustiças… ainda tenho o mandado de captura do
Otelo de Saraiva para o meu pai, por “associação de malfeitores”… Há um
documentário onde se vê o povo que invadiu a câmara a perguntar por ele, porque
foi preso e não lhe tinham dito. A partir daí, o meu pai fechou-se um pouco.
Sofreu muito. Viemos para Lisboa. Dormíamos nos corredores, os meus pais lá
atrás. Contado hoje pouca gente acredita, mas é a realidade.
"Há quem deixe
obras à biblioteca X ou Y e, muitas vezes, deixam as caixas fechadas, acaba por
se estragar tudo. Não querem trabalhar com a arrumação e catalogação, meter
aquilo a funcionar de maneira que seja fácil para os estudiosos
irem lá."
"Se um filho meu
quiser seguir isto, tudo bem, mas terá de partir dele. E sei que não é fácil
fazer ver que isto é uma profissão de futuro. Mas é, se for bem feito. Escrever
bem os livros, compreender o passado, saber o que estamos a tratar. E tenho
clientes em todo o mundo. Demora muitos anos. É um trabalho contínuo até ao
fim. Um livreiro nunca sabe tudo."