Vitalino José Santos
Mar da Palavra
3 de janeiro às 13:01 ·
As urgências hospitalares continuam esgotadas, por causa de utentes com situações agudas, embora muitas delas não urgentes, e a Linha Saúde 24 está sem capacidade de resposta, havendo mesmo hospitais a pedirem ao INEM que não transporte mais doentes para os seus serviços. De facto, a reconhecida falta de recursos humanos a nível dos cuidados de saúde primários torna difícil até o atendimento por telefone, contrariando as expectativas da própria sociedade no seu direito à saúde e ao bem-estar, «centrada nas necessidades e preferências das pessoas, famílias e comunidades». Como justificação, subsiste o argumento da «resposta muito significativa» – sobretudo, no que respeita à vacinação –, por parte da Direcção-Geral da Saúde, a esta situação emergente de saúde pública que nos continua a impor alguma distância física e social, interferindo na maneira como nos relacionamos uns com os outros.
A pandemia acumula recordes diários de novos casos e vai-nos trocando as voltas, desprendendo dos abraços e adiando as nossas vidas, agora com a variante Ómicron do vírus da covid-19 que, dizem, pode ter sofrido uma mutação com partilha do material genético de um dos vírus da constipação comum. Segundo os cientistas, a sequência genética desta recente variante não aparece em nenhuma das versões anteriores do coronavírus SARS-CoV-2, apesar da sua presença em muitos outros vírus, envolvendo os que nos causam as habituais constipações. Ou seja, terá ocorrido uma recombinação viral, através da qual dois vírus diferentes hospedados na mesma célula interagem enquanto fazem cópias de si mesmos, criando também novas réplicas que contêm algum componente genético de ambos.
O novo ano chega com um aumento generalizado de preços na electricidade, nos transportes públicos, nas portagens e nas telecomunicações. O mesmo se verifica com a inspecção técnica do nosso automóvel que, eufemisticamente, nos dizem ser actualizada, tal como designamos de traços de expressão às rugas que nos incomodam. Resta-nos a viagem interior, talvez ao encontro dos «fantasmas do homem contemporâneo», como expressou o falecido Vasco Graça Moura, a respeito do prodígio literário «Uma Viagem à Índia», de Gonçalo M. Tavares, obra que me fez transitar no calendário com um outro olhar.
«Em sítios de calor os abraços de conforto / não são assim tão importantes», observa Bloom, um homem que partiu de Lisboa e que, como anti-herói na sua epopeia pessimista, não procura a imortalidade. Quer, sim, «dar um certo valor ao que é mortal», confirmando «como a razão ainda permite / algumas viagens longas», mesmo na «urgência em sair do sítio / onde o mundo tinha existido demasiado».
O protagonista Bloom – que Gonçalo M. Tavares relaciona, de forma livre, com a temática camoniana de «Os Lusíadas» – é um sujeito que subverte a heroicidade de Vasco da Gama (ou mesmo de Odisseu – Ulisses, na visão mítica romana –, herói da Guerra de Troia que dá nome à «Odisseia», de Homero) e que, antes de chegar à Índia, viaja pela Europa e vive experiências desagradáveis, especialmente em Londres e em Paris. Já nesse país asiático da espiritualidade tão apetecida, onde queria acolher os ensinamentos que tanto buscava, conhece o sábio Shankra, indivíduo que sabia ouvir e era um verdadeiro farsante. Neste começo de ano e com o desejo de esquecer as nossas tragédias humanas, importa que consigamos desacreditar os farsantes e os manipuladores da memória e da exigência. Assim, aconselho-vos a leitura desta odisseia sarcástica que exalta a literatura portuguesa. Fica a advertência de Bloom (ou de Gonçalo M. Tavares?): «Mas deve-se sempre fugir sozinho, eis / o que aprende desde cedo um homem / que goste de livros.»
(«Diário de Coimbra»: DA RAIZ E DO ESPANTO, 02.01.2022)
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