quinta-feira, 4 de maio de 2023

Carlos Coutinho - Flagelações



* Carlos Coutinho  

   ESTA brisa matinal rasteirinha trouxe-me agora à memória o mundo romanceado por Manuel Lopes na sua Ilha de S. Vicente, onde nunca estive, “Os Flagelados do Vento Leste”. 

   O extraordinário romancista, que nasceu no Mindelo, em 23 de dezembro de 1907 e faleceu em Lisboa, a 25 de janeiro de 2005, foi um dos fundadores da decisiva revista “Claridades”, tendo escolhido um território insular em tudo coincidente com o das outras ilhas cabo-verdianas, açoitadas diariamente por um vento africano absolutamente cruel e insidioso.

   Aliás, com tema idêntico, Manuel Ferreira, um escritor que nasceu na  [Gândara dos Olivais, Leiria, em 1917 e faleceu em Linda-a-Velha, Oeiras, em 1992, tendo sido presidente da Associação Portuguesa de Escritores, muito penou em Cabo Verde, onde esteve como oficial do Exército colonial com a patente de capitão.

   Acontece que de Cabo Verde só conheço a Ilha de Santiago, a maior e mais cosmopolita, por onde cirandei em tempos e onde ainda impera a memória horrenda do Campo de Concentração do Tarrafal. 

   Também aí chega vento desertificante do Sara, geralmente conhecido como harmatão ou harmatã, seco e poeirento, soprando de dezembro a meados de março, sendo em Cabo Verde também designado por lestada e bruma seca.

   Cito o primeiro parágrafo de “Os Flagelados do Vento Leste”:

   “Agosto chegou ao fim. Setembro entrou feio, seco de águas; o sol peneirando chispas num céu cor de cinza; a luminosidade tão intensa que trespassava as montanhas, descoloria-as, fundia-as na atmosfera espessa e vibrante. Os homens espiavam, de cabeça erguida, interrogavam-se em silêncio. Com ansiedade jogavam os seus pensamentos, como pedras das fundas, para o alto. Nem um fiapo de nuvem pairava nos espaços. Não se enxergava um único sinal, desses indícios que os velhos sabem ver apontando o dedo indicador, o braço estendido para o céu, e se revelam aos homens como palavras escritas.

   Trata-se, pois, de uma ilha inóspita em que a seca atravessa a paisagem, as vidas e as entranhas daqueles que vivem da terra e que desesperadamente olham para o céu à procura de chuva em fiapos de nuvens esquecidas pelo vento.

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