sábado, 6 de maio de 2023

José Pacheco Pereira - A crise do Governo, a crise do Presidente e a crise do jornalismo


OPINIÃO

Não sei se daqui a dez anos haverá uma escola ou um curso académico de Comunicação que estude o dia 2 de Maio de 2023, nas rádios e na televisão, e os dias subsequentes.


* José Pacheco Pereira
6 de Maio de 2023

Aviso a tempo por causa do tempo: considero um erro enorme ter-se centrado a crise política dos últimos dias na defesa de Galamba, com um comprometimento directo do primeiro-ministro com um ministro tóxico, que não o merece e que vai dar muitos problemas ao Governo. Outros mereciam mais, mesmo Pedro Nuno Santos. Acresce que penso que o Governo é medíocre em muitas áreas e merecia uma remodelação a sério. O que tenho a dizer sobre a crise do Governo está dito.

Agora o resto: não sei se daqui a dez anos haverá uma escola ou um curso académico de Comunicação que estude o dia 2 de Maio de 2023, nas rádios e na televisão, e os dias subsequentes. De manhã à noite, não encontrará jornalismo. Pensem um pouco e afastem-se da excitação.


O que se passou nada tem que ver com o jornalismo e o efeito desse comportamento é tão devastador que já não se sabe o que é jornalismo. Aquilo a que assistimos o dia todo foi a uma comunicação social transformada numa espécie de comício político, num estilo de panfleto exacerbado, com tudo o que não é jornalismo: intencionalidade política, dramatização, julgamentos de carácter, petições de princípio, argumentos ad terrorem, encostar os agentes políticos à parede com dilemas “humilhantes”, apelos a acções cada vez mais drásticas, subindo a temperatura da crise, má-fé, reviravoltas argumentativas quando uma previsão (melhor, um desejo) não se verificava, sempre com uma constante – a do maior dano possível para o Governo, o PS e António Costa. Isto é política, não é jornalismo e muito menos escrutínio. É certo que tal se passava num contínuo de comentadores e jornalistas, mas alguém viu a diferença? Nenhuma.

Já é difícil perceber em tal imersão na excitação comicieira, que nada disto tem que ver com o jornalismo. Um jornalista, nessa qualidade, não pode insistir que o caminho a seguir é sempre subir a parada para respostas mais extremas, com uma defesa explícita da dissolução, para depois hesitar sobre essa dissolução porque isso iria acabar com a Comissão de Inquérito da TAP, insinuando, coisa que também não é suposto um jornalista fazer, que o “objectivo” oculto do Governo era esse.

Os painéis de comentário, com jornalistas e comentadores no dia 2, o dia crítico, e em menor grau nos dias seguintes, não tinham qualquer diversidade nem contraditório, a esmagadora maioria era de direita, eram todos hostis ao Governo, com relevo para vários que há muito tempo têm como alvo preferencial o “socialismo”.

Mesmo os membros do PS escolhidos eram críticos de António Costa. Nas opiniões ouvidas em declarações exteriores aos painéis de comentário, quando havia uma que contrariava a linha de dramatização desaparecia logo em seguida debaixo de uma nuvem de suspeição. Isso foi evidente na questão do SIS, em que se passou do apelo a que o Conselho de Fiscalização se pronunciasse, para, depois de este concluir que não havia ilegalidade, passar a tornar-se suspeito, porque dois elementos eram do PS e um do PSD, que também assinou a mesma conclusão, mas tinha sido escolhido por Rui Rio... Foram vários dias assim.

O anticlímax, a caminho do novo clímax: o Presidente foi apresentado com tendo um dilema – se não respondesse à “humilhação” com a dissolução, ou a demissão do Governo, tornar-se-ia um “zero”, um capacho de Costa. Jornalistas e comentadores variavam entre uma de duas respostas. Uma é que de facto Costa “venceu”, na linguagem futebolística que, por ironia, deve muito a Marcelo comentador; outra a de que, após o “ralhete”, o Governo ficaria em prisão domiciliária. Ninguém chamou a atenção (a não ser Magalhães e Silva) para o facto de todo o comportamento do Presidente ser muito bizarro, antes, durante e presume-se depois. Não é suposto o Presidente ter feito a mensagem pública que fez, acabando por dar azo a outra interessante reviravolta interpretativa. O Presidente iria agora fazer, em pior, o que fez Mário Soares a Cavaco Silva, sem sequer perceberem que esse foi um mau momento da nossa democracia com Soares a exorbitar das suas funções.

O Presidente não dissolveu, nem demitiu, é pena, mas vai agora tornar-se o grande perturbador da governação que já não tem sido brilhante… Um jornalista nessa qualidade não pode dizer que o Presidente deve deixar o Governo desgastar-se, “grelhar”, “cozer a lume brando”, ou seja, apelar à ingovernabilidade para depois, num exercício de hipocrisia, dizer que “ninguém fala dos problemas dos portugueses, inflação, preços das casas, etc.”.


Parabéns: ao Observador, ao Eco e a um conjunto de “jornalistas” politizados, porque estão a conseguir fazer uma oposição mais eficaz do que o PSD, de que eles precisam, mas tratam com comiseração e algum desprezo porque acham que “não chega”. No dia 2 de Maio, o dia da crise, em vários órgãos de comunicação o estilo e o tom político dominante foi todo o dia igual ao das manhãs do Observador, muitas vezes com o efeito repetidor das mesmas pessoas em vários órgãos de informação. Há um precedente a este efeito, o papel d'O Independente que preparou a entrada de Paulo Portas na política, acabou com o CDS “centrista”, e contribuiu para o fim do “cavaquismo”. Na verdade, ninguém como a direita radical sabe fazer melhor este papel, com um centro acabrunhado e impotente e uma esquerda encurralada pelo abandono do social a favor do identitário pelo Bloco e pelo apoio ambíguo do PCP à invasão da Ucrânia.

É tão evidente como isto vai continuar: a comissão de inquérito da TAP vai ter agora um festival de ajuste de contas e vinganças, a começar pela fonte do Observador nos últimos dias, o assessor que andou à pancada. Os ministros que andaram a mentir, como Galamba, vão dar origem a uma orgia de perguntas complicadas. Vão ser pedidos todos os papéis possíveis e imaginários, com justificação ou sem ela, muito para além da TAP. O caso SIS vai ser transformado num exemplo de perseguição política pidesca numa desproporção que é hoje a norma “jornalística”. E depois, a seguir, virá a Efacec e tudo o que seja público, porque no privado não se toca… E a cada momento o Presidente será convocado para dissolver.


O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2023/05/06/opiniao/opiniao/crise-governo-crise-presidente-crise-jornalismo-2048632

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