CRÓNICA
O comentador português típico não é mais do que um detector de defeitos alheios. É essa a sua colheita principal.
* Miguel Esteves Cardoso
7 de Maio de 2023,
O comentador português típico, que são quase todos, não é mais do que um detector de defeitos alheios. É essa a sua colheita principal.
É o que faz a seguir que é interessante, à maneira de quem compõe uma espiga com bolotas e flores do Lidl.
É na maneira como aproveitam os defeitos alheios que está a magia.
Aquilo que ele faz é ralhar connosco. Ralha connosco por causa dos nossos defeitos. Ralha porque são feios. Ralha porque não se encontram nos povos superiores. E ralha porque não mostramos interesse nenhum em abandoná-los. Nem tão-pouco parecemos ansiosos para trocar esses defeitos pacóvios e atrasados por defeitos mais elegantes e fáceis de perdoar.
O ralhar do comentador vem em parte dos antigos padres de aldeia, no tempo em que o temor a Deus acagaçava de verdade. Os defeitos de agora são transplantações integrais dos pecados de antigamente: é só trocar os nomes e avançar como sempre se avançou.
O pior é que, para se perdoar um pecado/defeito, é preciso reconhecer que se pecou e, crucialmente, mostrar arrependimento.
Ora, os portugueses reconhecem os defeitos na boa, mas vêem-se aflitos para se arrepender, porque lhes acham graça: eles são mesmo assim e não há nada a fazer.
A origem do ralhete é pastoral, mas a versão actual é de mestre-escola. É o mestre-escola — uns de aldeia, outros de cidade — que ralha com os portugueses, apontando-lhes os defeitos e apresentando-lhes as soluções, colhidas de uma vida de estudo e ponderação, filosófica mas benigna.
O tom mestre-escola é adoptado pelos comentadores porque os visados — nós, os portugueses teimosamente defeituosos que recebemos os ensinamentos com o ar trocista dos ruminantes — são vistos e tratados como crianças. E alunos, claro.
Porquê? Porque as crianças são moldáveis, podem aprender, podem entrar na linha: nunca se sabe.
O objectivo é nobre: ficarmos perfeitos, iguaizinhos ao nosso mestre-escola.
Mas o problema — sempre esquecido — é que já somos adultos.
O autor é colunista do PÚBLICO
https://www.publico.pt/2023/05/07/opiniao/cronica/tom-mestreescola-2048714
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