OPINIÃO - Assim, é difícil acreditar na democracia. Estamos todos à mercê das fraquezas e vulnerabilidades uns dos outros.
* Carmo Afonso
31 de Maio de 2023,
Cristina Ferreira soma e segue enchendo salas com milhares de pessoas para assistirem às Cristina Talks. Depois de Gondomar e Lisboa, foi a vez de Guimarães, e a próxima sala, em Braga, também já esgotou os 7500 bilhetes, a 19 euros, em poucas horas. A este propósito, recomendo a leitura de um artigo neste jornal: Cristina e o seu séquito de levantados do chão.
São eventos onde Cristina Ferreira surge como guru que ensina a superar adversidades – como críticas, insultos ou até a própria pobreza – e onde se propõe fazer a assistência passar por um processo transformador, mediante o qual aquelas pessoas passarão a acreditar em si mesmas e no seu sucesso. A partir daí ficarão mais próximas de alcançar esse sucesso nas suas vidas, ou seja, alcançarão prosperidade material e reconhecimento público.
No seu espetáculo, a apresentadora fala dos que a criticam e chama-lhes "anticristina". Representam a intelectualidade e sobre eles diz: “Quanto mais me põem para baixo, mais eu ganho balanço para ir para cima.” Dá destaque às críticas nas redes sociais e ao desdém com que muitos a tratam, considerando-os mais um impulso para a sua ascensão. O segredo é ser autêntica e acreditar. Tudo o resto virá por acréscimo porque afinal “somos o que quisermos ser” e ela, Cristina Ferreira, está “entre as pessoas mais poderosas do país”.
Reparem que o relambório de publicações nas redes sociais a criticar a seriedade de Cristina Ferreira nesta sua nova atividade é perfeitamente inútil e até faz parte integrante da fórmula mágica que apresenta aos fãs.
Temos aqui um problema: existem dezenas, ou centenas, de milhares de pessoas que estão disponíveis para pagar um bilhete e participar num ritual, presidido por Cristina, que supostamente as transformará em pessoas de sucesso. É difícil perceber qual a escala disto, mas é certo que, onde quer que vá, esta mulher esgota as maiores salas de espetáculo. Temos de reconhecer que são mesmo muitos os portugueses que acreditam que ouvir a Cristina Ferreira vai melhorar as suas vidas.
Isto reveste-se de gravidade. É pura e simplesmente a negação da política. Quem acredita que aquele é o caminho para uma vida melhor está a abandonar a sua condição de sujeito político; o que pensa, reivindica melhores condições de vida e está disposto a lutar por elas individual e coletivamente. As palestras de Cristina Ferreira são uma verdadeira alternativa ao ato político. Porque precisarão os trabalhadores de fazer uma greve pela melhoria das condições de trabalho se basta acreditarem que são bons?
Porque precisarão os trabalhadores de fazer uma greve pela melhoria das condições de trabalho se basta acreditarem que são bons?
Observar o fenómeno Cristina Ferreira ajuda a perceber outros fenómenos como o das igrejas evangélicas e o da ascensão da extrema-direita. Aqui, justiça seja feita a Cristina Ferreira: não costuma convidar fascistas para os seus programas e para as suas entrevistas. Mas o assunto é outro e há mesmo semelhanças entre o processo que leva as pessoas a acreditar que mudarão de vida por causa de uma talk e o que leva as pessoas a acreditar que o Chega vai resolver os seus problemas ou que o seu líder é que diz as verdades, não obstante ser apanhado a mentir quase diariamente. A sensação para quem está de fora é parecida: uma profunda incredulidade com o que se passa na cabeça daquelas pessoas. Assim, é difícil acreditar na democracia. Estamos todos à mercê das fraquezas e vulnerabilidades uns dos outros.
Quase todos os políticos portugueses já foram aos programas da Cristina Ferreira e Marcelo Rebelo de Sousa chegou a telefonar-lhe na estreia de um novo formato quando a apresentadora estava em direto. Este histórico funciona como uma legitimação das qualidades que a apresentadora anuncia ter e é também isto que vende. Não deve voltar a acontecer. A classe política tem obrigação de não contribuir para a credibilização de quem anuncia milagres e vende fantasias perigosas para quem as compra e para a própria democracia.
Cristina Ferreira sonha ser Presidente da República. Temos razões para não querer que ponha esse plano em ação. Não que seja previsível que ganhe, mas é certo que de cada vez que contamos quantos de nós puseram a cruz numa opção que demonstra que se perdeu o juízo e o bom senso chegamos a números astronómicos. Está aqui uma coisa boa que Cristina Ferreira pode fazer por Portugal: não nos obrigar a saber exatamente quantos portugueses desejam que seja presidente. Já mereceria um agradecimento.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
Advogada
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