sábado, 6 de maio de 2023

Jaime Nogueira Pinto - Distopia em tempos de cólera

 * Jaime Nogueira Pinto

 Colunista do Observador

Quando nos falta quase tudo, incluindo géneros alimentares, que não nos falte a autodeterminação de género.

06 mai. 2023, 00:1867

Foi nas vésperas das já quase cinquentenárias comemorações da revolução dos cravos – que, pelo descarrilar da carruagem, prometem – que o Projecto de Lei nº 332/XV foi aprovado pela Assembleia da República por 120 socialistas, 6 comunistas, 5 bloquistas, 1 animalista e 1 livre. Contra estiveram 77 sociais-democratas e 12 chegas e houve 8 iniciados liberais e 2 socialistas que se abstiveram.  Era fundamental e urgente que o projecto fosse aprovado, uma vez que a lei vem responder a um dos problemas mais prementes da Nação.

A leitura de algumas alíneas do dito Projecto-lei assegura-nos desde logo que é de um importante passo no caminho para uma humanidade feliz que se trata, assegurando-nos que, em Portugal, a utopia também é possível. Tanto que nos remete para os slogans do Ministério da Verdade, que o English Socialist Party of Oceania difundia, no 1984 de Orwell.

“Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”, é um dos mais famosos exemplos do New Speak, Nova Fala ou Nova Língua, que os sequazes do Big Brother cultivavam em nome da construção do melhor dos mundos e com a qual massacravam os ouvidos e a cabeça dos pobres cidadãos oceânicos – que não tinham nada de que se queixar, pois usufruíam de teletelas que, além de os endoutrinarem nas boas práticas, os entretinham e vigiavam.

Talvez por isso o 1984 de Orwell conheça agora um novo boom.  Afinal, ajuda-nos a perceber melhor o mundo que nos rodeia e a forma como está a ser traçado o nosso “futuro radioso”.  Um futuro que poderá vir a raiar se não formos capazes de acordar do entorpecedor entretenimento que nos proporcionam e reagir, sacudindo uma tirania que, ao contrário do pesadelo orwelliano, nos é trazida por políticos democráticos sorridentes e fala-baratos, por académicos com currículos pesados, por estudos para-científicos de Observatórios, por pareceres de especialistas e animadores televisivos, simpáticos e inofensivos. E, claro, pelos episódios grotescos e rocambolescos da novela das nossas instituições.

“Quem controla o Passado, controla o Futuro; quem controla o Presente controla o Passado” e “A massa mantém a marca, a marca mantém a média e a média controla a massa”, são mais dois dos slogans da orwelliana campanha de lavagem ao cérebro, que também nos dirão qualquer coisa.

Sobre o controlo do passado, é bom parar para pensar na deturpação da História de Portugal operada nas últimas décadas, que reduz a aventura portuguesa do século de ouro a uma crónica de violência e pilhagem indiscriminada, que equipara o regime derrubado pelo 25 de Abril a uma variante lusa da tirania nazi-fascista,  mas que não vê no presente agravar da arrogância, da corrupção, da displicência  e da impunidade qualquer semelhança com os donos do poder, da democracia e do país que por aqui passaram e se passearam na Primeira República.

Distopias

Tudo isto se tornou fácil e possível através dos media e do seu controlo.

Ainda que nos fale eloquentemente do tempo que vivemos, o 1984 de Orwell vem na linhagem das distopias do século XX e teve por objecto principal denunciar o comunismo estalinista da Rússia Soviética. Logo no início, outras distopias tinham já assinalado a inauguração da implantação forçada da utopia no mundo real. Quatro anos depois da revolução bolchevique na Rússia, em 1921, Zamiatin escrevia o Nós e ia parar à prisão; e, em 1932, Huxley publicava Brave New World, inspirando-se na frase de Miranda, filha de Próspero, o exilado duque de Milão de A Tempestade de Shakespeare, ao ver pela primeira vez os náufragos que chegavam a terra.

“Oh Wonder!
How many goodly creatures are there here
How beauteous mankind is! Oh brave new world
That has such people in’t”

Huxley pegou no assombro de Miranda, até aí sozinha na ilha com o pai, perante a beleza do género humano e a bondade das suas adoráveis criaturas; e misturando utopia, distopia, ironia, tecnologia e promiscuidade, deu-nos um admirável mundo novo, traçado a régua e esquadro para a felicidade plena, numa sociedade organizada por castas definidas por letras: Alfas, Betas, Deltas, Gamas e Épsilones – os mais baixos, a massa do Lumpen.

O controle em Brave New World era mantido através de propaganda, que desviava a atenção e suprimia a informação relevante. A esta propaganda só escapavam as comunidades de “Selvagens”, que viviam nas periferias não-civilizadas. Semelhante forma de controle é também usada em Fahrenheit 451, onde se queimam os livros e se favorece a teleficção.

Nada disto é alheio à legislação passada nas vésperas da data fundacional do regime, como se de um símbolo da obra feita e de um princípio da obra por fazer “para cumprir Abril” se tratasse. Não deixa de ser curioso que um sistema educativo reconhecidamente deficiente em matéria de preparação humanista e profissional e cheio de buracos e carências, um sistema que tem os professores em revolta há meses e que conta com escolas onde não há sequer psicólogos, queira agora acoitar sob a redoma da lei um Bernardo que descobriu que era Sofia, um João que acordou Maria, uma Ricardina que quer que lhe chamem Maximino ou uma Maria que afinal é Zé (haverá muitos casos destes, dos genuínos, fora do incentivo à experimentação e da pressão dos ideólogos do género?) E como não podia deixar de ser, recomenda-se também a indigitação de controleiros da discriminação de género para acusar todos os que pequem por pensamentos, palavras, pronomes e omissões contra o humanitário princípio de oferecer às crianças todo um leque de identidades à escolha, independentemente daquela que lhes tenha sido “imposta à nascença”.  Com semelhante menu, há até quem se autodetermine (li outro dia num jornal) “mulher trans, não-binária, pansexual e anarquista relacional” … todo um programa.

Os mistérios do sexo contados às crianças à revelia do povo

Não temos estatísticas nem estudos credíveis que sustentem as medidas propostas. O que temos, neste diploma, é uma cópia servil de um projecto ideológico a introduzir nas escolas, conforme o veiculado pelo PRESSE, um “Guia de Informação e Apoio” que se autodetermina como “um espaço, para os alunos, onde se desenvolvem acções de informação, educação e comunicação no âmbito da educação sexual”.  Vale a pena ver.

Como em qualquer distopia que se preze, as crianças que a partir dos sete anos se mostrem descontentes com o sexo que lhes foi imposto à nascença e com o nome que lhes foi atribuído no registo, podem não ter professores nem aulas,  podem não ter acompanhamento psicológico, podem não ter materiais tecnológicos ou sequer analógicos, podem não ter actividades extra-curriculares desportivas, musicais ou culturais  mas uma coisa é certa: vão ter um responsável, um tutor, um conselheiro, um amigo, a quem poderão pedir orientação e  manifestar o seu desconforto  e desconformidade – desde que esse desconforto e desconformidade sejam “de género”.  Este conselheiro, designado pela escola, não necessita de quaisquer credenciais profissionais, médicas ou outras: tem apenas de ser amigo e solidário. O nome escolhido pela criança ou adolescente terá depois de ser conhecido e respeitado por toda a população escolar, bem como a opção de vestuário e outras expressões da identidade autoatribuída que queira adoptar.

O PAN, promovendo por uma vez uma tourada, insistiu que tanto os fiscais como os formadores deveriam ter o selo ou o ferro LGBTQI+ para poderem marrar com pais, professores, pessoal não docente e restante comunidade educativa nas sessões de alfabetização e esclarecimento sexual por que Portugal há tanto clama.

Enfim, o paraíso na terra.

Sublinha-se também que, nos projectos do PAN, do Livre, e do BE, se exigem penas severas para quaisquer “terapias de conversão” dirigidas à “correcção” da homossexualidade ou da transexualidade, para evitar os traumas que causam (e que causarão com certeza) e a elevada taxa de suicídios (que, com certeza, será também real).  Porém, em relação às terapias de transição de género – à submissão a tratamentos com bloqueadores de puberdade, a tratamentos hormonais irreversíveis e a correcções cirúrgicas – não parece haver traumas associados a registar; ou tão pouco consequências ou taxas de suicídio dignas de nota.

Nas distopias, o medo é o grande instrumento totalitário, mas a sua imposição é quase sempre mais mediática, mais dirigida às consciências pela propaganda, mais incentivada por legislação avançada do que declaradamente imperativa. E nas sociedades ocidentais, constitucionalmente liberais, a repressão pela violência física não é (ainda) possível – mas há sempre o império da lei…

Em Nós, de Zamiatin, os cidadãos saíam em passeios colectivos, dando louvores ao poder; em Brave New World, de Huxley, a sociedade buscava a felicidade pelo conforto e pelo prazer e os cidadãos das várias castas eram agarrados e distraídos pelo divertimento, para que a informação subversiva ou alternativa à ordem estabelecida lhes pudesse ser sonegada sem que dessem por isso.

A presente imposição ideológica, que descarta a biologia e outras minudências através de um processo orwelliano aparentemente liberal, é exercida sobre uma população de crianças e adolescentes. É parte de uma máquina de transformar em regra situações minoritárias e marginais, com as quais há, com certeza, que ter toda a atenção e compreensão, mas também a consciência de que não se tratam ou resolvem por decreto nem devem generalizar-se.  Entretanto, a máquina vai-se tornando um perigo público, prometendo transformar o que aparenta ser uma questão acessória numa questão essencial para o futuro da sociedade.

Gabriele Kuby, em A Revolução Sexual Global – Destruição da liberdade em nome da liberdade, explicou o processo pelo qual “os modernos e os pós-modernos” se foram emancipando de tudo – de Deus, da natureza, da família, da tradição e agora até da biologia. O problema é que, ficando nessa aparente independência, orientados por coisa nenhuma a não ser pela própria vontade e pelos próprios desejos e impulsos, se tornam muito mais vulneráveis aos fortes, aos que controlam a informação, aos que manipulam as massas.

A oligarquia que governa este país sabe disso. Há que acordar e reagir.

https://observador.pt/opiniao/distopia-em-tempos-de-colera/I


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