Quando nos
falta quase tudo, incluindo géneros alimentares, que não nos falte a
autodeterminação de género.
06 mai. 2023,
00:1867
Foi nas
vésperas das já quase cinquentenárias comemorações da revolução dos cravos –
que, pelo descarrilar da carruagem, prometem – que o Projecto de Lei nº 332/XV
foi aprovado pela Assembleia da República por 120 socialistas, 6 comunistas, 5
bloquistas, 1 animalista e 1 livre. Contra estiveram 77 sociais-democratas e 12
chegas e houve 8 iniciados liberais e 2 socialistas que se abstiveram.
Era fundamental e urgente que o projecto fosse aprovado, uma vez que a lei vem
responder a um dos problemas mais prementes da Nação.
A leitura de
algumas alíneas do dito Projecto-lei assegura-nos desde logo que é de um
importante passo no caminho para uma humanidade feliz que se trata,
assegurando-nos que, em Portugal, a utopia também é possível. Tanto que nos
remete para os slogans do Ministério da Verdade, que o English
Socialist Party of Oceania difundia, no 1984 de Orwell.
“Guerra é Paz,
Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”, é um dos mais famosos exemplos
do New Speak, Nova Fala ou Nova Língua, que os sequazes do Big
Brother cultivavam em nome da construção do melhor dos mundos e com a qual
massacravam os ouvidos e a cabeça dos pobres cidadãos oceânicos – que não
tinham nada de que se queixar, pois usufruíam de teletelas que, além de os
endoutrinarem nas boas práticas, os entretinham e vigiavam.
Talvez por isso
o 1984 de Orwell conheça agora um novo boom.
Afinal, ajuda-nos a perceber melhor o mundo que nos rodeia e a forma como está
a ser traçado o nosso “futuro radioso”. Um futuro que poderá vir a raiar
se não formos capazes de acordar do entorpecedor entretenimento que nos
proporcionam e reagir, sacudindo uma tirania que, ao contrário do pesadelo
orwelliano, nos é trazida por políticos democráticos sorridentes e
fala-baratos, por académicos com currículos pesados, por estudos
para-científicos de Observatórios, por pareceres de especialistas e animadores
televisivos, simpáticos e inofensivos. E, claro, pelos episódios grotescos e
rocambolescos da novela das nossas instituições.
“Quem controla
o Passado, controla o Futuro; quem controla o Presente controla o Passado” e “A
massa mantém a marca, a marca mantém a média e a média controla a massa”, são
mais dois dos slogans da orwelliana campanha de lavagem ao
cérebro, que também nos dirão qualquer coisa.
Sobre o
controlo do passado, é bom parar para pensar na deturpação da História de
Portugal operada nas últimas décadas, que reduz a aventura portuguesa do século
de ouro a uma crónica de violência e pilhagem indiscriminada, que equipara o
regime derrubado pelo 25 de Abril a uma variante lusa da tirania
nazi-fascista, mas que não vê no presente agravar da arrogância, da
corrupção, da displicência e da impunidade qualquer semelhança com os
donos do poder, da democracia e do país que por aqui passaram e se passearam na
Primeira República.
Distopias
Tudo isto se
tornou fácil e possível através dos media e do seu controlo.
Ainda que nos
fale eloquentemente do tempo que vivemos, o 1984 de Orwell vem
na linhagem das distopias do século XX e teve por objecto principal denunciar o
comunismo estalinista da Rússia Soviética. Logo no início, outras distopias
tinham já assinalado a inauguração da implantação forçada da utopia no mundo
real. Quatro anos depois da revolução bolchevique na Rússia, em 1921, Zamiatin
escrevia o Nós e ia parar à prisão; e, em 1932, Huxley
publicava Brave New World, inspirando-se na frase de Miranda, filha
de Próspero, o exilado duque de Milão de A Tempestade de
Shakespeare, ao ver pela primeira vez os náufragos que chegavam a terra.
“Oh Wonder!
How many goodly creatures are there here
How beauteous mankind is! Oh brave new world
That has such people in’t”
Huxley pegou no
assombro de Miranda, até aí sozinha na ilha com o pai, perante a beleza do
género humano e a bondade das suas adoráveis criaturas; e misturando utopia,
distopia, ironia, tecnologia e promiscuidade, deu-nos um admirável mundo novo,
traçado a régua e esquadro para a felicidade plena, numa sociedade organizada
por castas definidas por letras: Alfas, Betas, Deltas, Gamas e Épsilones – os
mais baixos, a massa do Lumpen.
O controle
em Brave New World era mantido através de propaganda, que
desviava a atenção e suprimia a informação relevante. A esta propaganda só
escapavam as comunidades de “Selvagens”, que viviam nas periferias
não-civilizadas. Semelhante forma de controle é também usada em Fahrenheit
451, onde se queimam os livros e se favorece a teleficção.
Nada disto é
alheio à legislação passada nas vésperas da data fundacional do regime, como se
de um símbolo da obra feita e de um princípio da obra por fazer “para cumprir
Abril” se tratasse. Não deixa de ser curioso que um sistema educativo
reconhecidamente deficiente em matéria de preparação humanista e profissional e
cheio de buracos e carências, um sistema que tem os professores em revolta há
meses e que conta com escolas onde não há sequer psicólogos, queira agora
acoitar sob a redoma da lei um Bernardo que descobriu que era Sofia, um João
que acordou Maria, uma Ricardina que quer que lhe chamem Maximino ou uma Maria
que afinal é Zé (haverá muitos casos destes, dos genuínos, fora do incentivo à
experimentação e da pressão dos ideólogos do género?) E como não podia deixar
de ser, recomenda-se também a indigitação de controleiros da discriminação de
género para acusar todos os que pequem por pensamentos, palavras, pronomes e
omissões contra o humanitário princípio de oferecer às crianças todo um leque
de identidades à escolha, independentemente daquela que lhes tenha sido
“imposta à nascença”. Com semelhante menu, há até quem se autodetermine
(li outro dia num jornal) “mulher trans, não-binária, pansexual e anarquista
relacional” … todo um programa.
Os
mistérios do sexo contados às crianças à revelia do povo
Não temos
estatísticas nem estudos credíveis que sustentem as medidas propostas. O que
temos, neste diploma, é uma cópia servil de um projecto ideológico a introduzir
nas escolas, conforme o veiculado pelo PRESSE, um “Guia de Informação e Apoio”
que se autodetermina como “um espaço, para os alunos, onde se desenvolvem
acções de informação, educação e comunicação no âmbito da educação sexual”.
Vale a pena ver.
Como em
qualquer distopia que se preze, as crianças que a partir dos sete anos se
mostrem descontentes com o sexo que lhes foi imposto à nascença e com o nome
que lhes foi atribuído no registo, podem não ter professores nem aulas,
podem não ter acompanhamento psicológico, podem não ter materiais
tecnológicos ou sequer analógicos, podem não ter actividades extra-curriculares
desportivas, musicais ou culturais mas uma coisa é certa: vão ter um
responsável, um tutor, um conselheiro, um amigo, a quem poderão pedir
orientação e manifestar o seu desconforto e desconformidade – desde
que esse desconforto e desconformidade sejam “de género”. Este
conselheiro, designado pela escola, não necessita de quaisquer credenciais
profissionais, médicas ou outras: tem apenas de ser amigo e solidário. O nome
escolhido pela criança ou adolescente terá depois de ser conhecido e respeitado
por toda a população escolar, bem como a opção de vestuário e outras expressões
da identidade autoatribuída que queira adoptar.
O PAN,
promovendo por uma vez uma tourada, insistiu que tanto os fiscais como os
formadores deveriam ter o selo ou o ferro LGBTQI+ para poderem marrar com pais,
professores, pessoal não docente e restante comunidade educativa nas sessões de
alfabetização e esclarecimento sexual por que Portugal há tanto clama.
Enfim, o
paraíso na terra.
Sublinha-se
também que, nos projectos do PAN, do Livre, e do BE, se exigem penas severas
para quaisquer “terapias de conversão” dirigidas à “correcção” da
homossexualidade ou da transexualidade, para evitar os traumas que causam (e
que causarão com certeza) e a elevada taxa de suicídios (que, com certeza, será
também real). Porém, em relação às terapias de transição de género – à
submissão a tratamentos com bloqueadores de puberdade, a tratamentos hormonais
irreversíveis e a correcções cirúrgicas – não parece haver traumas associados a
registar; ou tão pouco consequências ou taxas de suicídio dignas de nota.
Nas distopias,
o medo é o grande instrumento totalitário, mas a sua imposição é quase sempre
mais mediática, mais dirigida às consciências pela propaganda, mais incentivada
por legislação avançada do que declaradamente imperativa. E nas sociedades
ocidentais, constitucionalmente liberais, a repressão pela violência física não
é (ainda) possível – mas há sempre o império da lei…
Em Nós, de
Zamiatin, os cidadãos saíam em passeios colectivos, dando louvores ao poder;
em Brave New World, de Huxley, a sociedade buscava a felicidade
pelo conforto e pelo prazer e os cidadãos das várias castas eram agarrados e
distraídos pelo divertimento, para que a informação subversiva ou alternativa à
ordem estabelecida lhes pudesse ser sonegada sem que dessem por isso.
A presente
imposição ideológica, que descarta a biologia e outras minudências através de
um processo orwelliano aparentemente liberal, é exercida sobre uma população de
crianças e adolescentes. É parte de uma máquina de transformar em regra
situações minoritárias e marginais, com as quais há, com certeza, que ter toda
a atenção e compreensão, mas também a consciência de que não se tratam ou
resolvem por decreto nem devem generalizar-se. Entretanto, a máquina
vai-se tornando um perigo público, prometendo transformar o que aparenta ser
uma questão acessória numa questão essencial para o futuro da sociedade.
Gabriele Kuby,
em A Revolução Sexual Global – Destruição da liberdade em nome da
liberdade, explicou o processo pelo qual “os modernos e os
pós-modernos” se foram emancipando de tudo – de Deus, da natureza, da família,
da tradição e agora até da biologia. O problema é que, ficando nessa aparente
independência, orientados por coisa nenhuma a não ser pela própria vontade e
pelos próprios desejos e impulsos, se tornam muito mais vulneráveis aos fortes,
aos que controlam a informação, aos que manipulam as massas.
A oligarquia
que governa este país sabe disso. Há que acordar e reagir.
https://observador.pt/opiniao/distopia-em-tempos-de-colera/I
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