Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
sábado, 26 de agosto de 2023
Carlos Matos Gomes - Truanismo — o regime de falsificação da história e dos valores
sexta-feira, 25 de agosto de 2023
Sophia de Mello Breyner - Pelo negro da terra e pelo branco do muro
* Sophia de Mello Breyner Andresen
10 de Agosto de 2002, 0:00
Há uma beleza que nos é dada: beleza do mar, da luz, dos montes, dos animais, dos movimentos e das pessoas. Mas há também uma outra beleza que o homem tem o dever de criar: ao lado do negro da terra é o homem que constrói o muro branco onde a luz e o céu se desenham. A beleza não é um luxo para estetas, não é um ornamento da vida, um enfeite inútil, um capricho. A beleza é uma necessidade, um princípio de educação e de alegria. Diz S. Tomás de Aquino que a beleza é o esplendor da verdade. Pela qualidade e grau de beleza da obra que construímos se saberá se sim ou não vivemos com verdade e dignidade. A obra do homem é sempre um espelho onde a consciência se reconhece. Quando olhamos à nossa roda as aldeias, vilas e cidades de Portugal temos de constatar que quase tudo quanto se construiu nas últimas décadas é feio. Feio e - ai de nós! - para durar. Feias as obras públicas e feias as obras particulares. As excepções à regra de fealdade são raras. Costuma dizer-se que a nossa pobreza é a origem dos nossos males. Mas o que caracteriza grande parte da nossa arquitectura desta época é o novo-riquismo. Um novo-riquismo exibicionista - quase sempre sem funcionalidade e sempre sem cultura e sem sensibilidade. Isto é especialmente triste quando comparamos o presente com o passado: de facto olhando os antigos solares de pedra e cal vemos que a nossa arquitectura soube criar nobreza sem riqueza. Daí a pureza e a dignidade de tantas casas antigas. Agora não se trata evidentemente de copiar o passado: a arquitectura é uma arte e a arte é criação e não imitação. Continuar não é imitar e imitar é sempre ofender e trair aquilo que é imitado. Mas é necessário que exista aquela consciência do passado e do presente a que chamamos cultura. Somos um país antigo. Dizem-nos que somos um país pobre. É estranho que destas coordenadas resulte uma arquitectura de novos ricos. A construção da cidade moderna traz problemas difíceis de resolver: problemas de espaço e de circulação. Mas entre nós estes problemas só existem em Lisboa e no Porto. No resto do país os problemas são quase unicamente problemas de humanidade, de bom senso, e de bom gosto ou seja problemas de moral, de inteligência e de sensibilidade e cultura. A regra a seguir é esta: uma casa para todos e beleza para todos. E a beleza não é cara. É geralmente menos cara do que a fealdade que quase sempre se chama luxo, monumentalismo, pretensão. A beleza é simplicidade, verdade, proporção. Coisas que dependem muito mais da cultura e da dignidade do que do dinheiro. Penso neste momento especialmente na terra do Algarve, com suas praias, suas grutas, seus promontórios, seus muros brancos, sua luz claríssima. É preciso não destruir estas coisas. É preciso que aquilo que vai ser construído não destrua aquilo que existe. arte é sempre a expressão duma relação do homem com o mundo que o rodeia. A arquitectura é especificamente a expressão duma relação justa com a paisagem e com o mundo social. Fora destas coordenadas só há má arquitectura. Afirma-se que é necessário desenvolver turisticamente o Algarve. Para isso será preciso construir. Mas é necessário que aqueles que vão construir amem o espaço, a luz e o próximo. Existem todas as condições para que se possa criar no Algarve uma boa arquitectura: ali temos uma paisagem e uma luz que pedem "arquitectura", ali encontramos um uso belo e tradicional do barro e da cal; ali temos uma arquitectura local lisa e pura como uma arquitectura moderna, uma arquitectura popular cujos temas o arquitecto poderá desenvolver duma forma mais técnica e mais culta: ali temos um clima que facilita a vida e propõe soluções de extrema simplicidade. Ali poderemos ter os materiais, as inovações, a técnica e a cultura do nosso tempo. Ali poderão trabalhar os arquitectos competentes que existem no nosso país. Mas é urgente evitar os seguintes perigos:- A incompetência- O saloísmo- As especulações com os terrenos- Os maus arquitectos- O falso tradicionalismo- A mania do luxo e da pompa- As obras de fachada Acima de tudo é preciso evitar a falta de amor. De todas as artes a arquitectura é simultaneamente a mais abstracta e a mais ligada à vida. Aqueles que não amam nem o espaço, nem a sombra, nem a luz, nem o cimento, nem a pedra, nem a cal, nem o próximo, não poderão criar boa arquitectura.
(Publicado em Janeiro de 1963, no nº 21 da "Távola Redonda")
https://www.publico.pt/2002/08/10/jornal/pelo-negro-da-terra-e-pelo-branco-do-muro-173555
sábado, 19 de agosto de 2023
Camo Afonso A franqueza de Eduardo Catroga e a pobreza dos portugueses
terça-feira, 15 de agosto de 2023
DN - Entrevista a João Soares, por Pedro Cruz
João Soares:
"Sócrates fez uma asneira porque quem foi líder de um partido, não se
demite dele"
Artigo originalmente publicado a 14 de abril de 2023. O DN, durante o mês de agosto, republica algumas entrevistas marcantes e mais lidas desde o verão de 2022..
João Pedro
Henriques e Pedro Cruz
15 Agosto 2023
Filho do
principal fundador do PS, João Soares, ex-deputado, ex-presidente da Câmara de
Lisboa e ex-ministro de Costa, diz que todos os ex-líderes devem ser convidados
para a festa dos 50 anos, inclusivamente Sócrates, apesar da
"asneira" de ter deixado o partido.
Onde é que
estava no dia 19 de abril de 1973? Mário Soares e a mulher Maria Barroso
estavam na Alemanha, na reunião da fundação do Partido Socialista. Maria
Barroso é, aliás, a única mulher presente na fotografia que se tornou icónica e
que marca o nascimento do partido. E os filhos, Isabel e João? João Soares
tinha 23 anos. Hoje, com 73 anos, afastado da política depois de ter sido
deputado, presidente da câmara de Lisboa e (muito esporadicamente) ministro (da
Cultura), João Soares dá nesta entrevista DN/TSF a sua visão do que foi a
fundação do PS.
Onde é que
estava no dia 19 de abril de 1973?
Eu e a minha
irmã estávamos em Paris, curiosamente, mas estávamos evidentemente a par do que
se ia passar na Alemanha. E até recebemos indicações para, no final dos
trabalhos, mandar um telegrama para o Porto, para os irmãos Cal Brandão ou para
o António Macedo, com um texto perfeitamente anódino e pré combinado que
sinalizaria que as coisas tinham corrido bem e que o desfecho tinha sido aquele
que todos eles esperávamos.
Fernanda Câncio - Clericalismo e anticlericalismo, uma introdução
* Fernanda Câncio
15 Agosto 2023
Mais de um
século após a 1ª República e no ano em que finalmente se revelou a diabólica
dimensão dos crimes de abuso na Igreja Católica portuguesa, descobrimos que um
furor clerical tomou conta dos representantes do Estado e das autarquias, e que
ser anticlerical é descrito como ódio e fobia. Há coisas do demónio.
Achava que já
tinha escrito que chegasse a
propósito da Jornada Mundial da Juventude, mas a possessão beata dos
representantes do Estado e autarquias portuguesas não permite mudar de assunto.
Não bastou,
portanto, torrar dezenas de milhões de euros numa semana de propaganda religiosa
de uma igreja, nem vermos o primeiro-ministro a determinar, definitivo e
autocrático, como "absurdas essas polémicas" - as sobre os gastos -
assegurando de seguida que o tal retorno incrível que ia haver de todo esse
investimento é "imaterial" (em lugares no céu?). Não chegou termos a
conversão televisiva do presidente da Câmara de Lisboa em porta-cruzes. Não
chegou termos todos os canais de televisão trasladados em canção da boa-nova ou
lá como se chama aquilo. Não chegou sermos setenta vezes sete vezes
esbofeteados com a certificação de que como "80% do país é católico porque Censos" quem
não for católico ou quem, sendo-o, defenda a laicidade tem mais é de ficar bem
caladinho e perguntar se querem mais um café ou um copo de água ou umas dezenas
de milhões de euros, por obséquio.
Não: tínhamos
ainda de ver uma autarquia - a de Oeiras - mandar retirar, na véspera da chegada do papa, um cartaz
que, custeado por um crowdfunding de 300 cidadãos, lembrava e
honrava, à guisa do memorial prometido que não aconteceu, as 4800 vítimas
estimadas de abuso sexual na Igreja Católica portuguesa desde 1950. Tínhamos de
ver uma autarquia - a de Loures - "convidar
para a missa" os seus munícipes, como se uma missa, católica ou de
outro culto qualquer, fosse uma espécie de concerto do Tony Carreira ou dos
Xutos oferecido pelo município para alegrar os cidadãos. Tínhamos de ver um
autarca - Moedas, de novo - a anunciar que decidira nomear um equipamento
público, a ponte sobre o rio Trancão, "Cardeal Dom Manuel Clemente", calcando as regras
municipais para a toponímia que implicam não apenas votação camarária e
apreciação pela comissão criada para esse efeito como, por regra, só atribuir o
nome de quem tenha morrido há pelo menos cinco anos (isto para não falar
da genuflexão daquele "Dom"). E tínhamos ainda de ver a
conta Twitter oficial da Câmara de Lisboa a "ocultar" (censurar,
portanto) respostas a esse anúncio que se limitavam a reproduzir o cartaz com o
número de vítimas de abuso, chegando até a bloquear quem assim respondia. Uma
conta oficial de uma autarquia a tratar como difamação, insulto ou calúnia os
números da comissão nomeada pela própria Igreja Católica.
sábado, 12 de agosto de 2023
António Rodrigues - É a dignidade, estúpido!
* António Rodrigues
4 ESQUINAS -
11 de Agosto de 2023 (Público)
O mundo que se
conta a partir do que se diz.
“Quando pedimos
trabalho, pedimos dignidade, porque o trabalho faz a dignidade da pessoa”,
bispo Oscar Ojea, presidente da Conferência Episcopal Argentina
“Guerra aos
pobres”
O Governo
italiano, liderado pela pós-fascista Giorgia Meloni, avisou, a 31 de Julho, 169
mil agregados familiares que vão deixar de receber o equivalente italiano do
rendimento social de inserção. Com uma simples mensagem do Instituto Nacional
de Previdência Social italiano, enviada por telemóvel no fim de Julho, ficaram
a saber que já não poder contar com os 780 euros mensais do “rendimento de
cidadania”, atribuídos desde 2019 e destinados sobretudo a pessoas no
desemprego.
O instituto
garante na mensagem que o corte não é generalizado, distinguindo aquilo que são
“as pessoas empregáveis e aquelas que o não são”, incluindo nesta última
categoria as famílias com pessoas portadoras de deficiência, com menores a seu
cargo ou de mais de 60 anos. Para estas haverá um subsídio de 500 euros
mensais. Os outros passam a receber 350 euros e apenas durante um ano.
Num país onde
não há salário mínimo, a mensagem do executivo é simples: o pobre que não
quiser morrer de fome terá de aceitar qualquer tipo de emprego, por mais mal
remunerado que este seja.
A oposição
apelidou a medida do Governo italiano como “uma guerra aos pobres”.
“Esta decisão
não irá fazer mais do que aumentar a pobreza e o desemprego em plena inflação”,
dizia esta semana o economista Henri Sterdyniak ao jornal francês l’Humanité. É o “triunfo da ideologia neoliberal,
com a ideia subjacente de que, se as pessoas são pobres, a culpa é delas.”
A medida do
Governo, prometida na campanha eleitoral de Outubro e anunciada com simbolismo
no Dia
do Trabalhador, agregada com a promoção de contratos de curta duração,
transforma-se num maná para as empresas que podem assim relativizar o valor do
trabalho nos seus custos fixos, ao mesmo tempo que a precariedade dos
trabalhadores lhes permite esmagar ainda mais o pagamento por esse trabalho.
O poderoso
cobarde de Peshawar
Em Peshawar, no
Leste do Paquistão, um líder político local galvanizava a multidão com um
discurso ultraconservador, agressivo, desafiador. Estávamos a poucos dias da
invasão do Afeganistão pelas forças aliadas com os Estados Unidos à cabeça, no
Outono de 2001, em resposta ao ataque terrorista contra o World Trade Center e
o Pentágono.
Quem o via de
longe no seu estrado, entusiasmado com o seu radicalismo de apoio aos taliban e
de ataque ao imperialismo corrupto, teria dele uma ideia de líder corajoso,
disposto a encabeçar uma multidão contra o demónio ocidental com a faca entre
os dentes.
Finda a
manifestação, a polícia interveio. As pessoas dispersaram, os oradores
dispersaram, a imprensa dispersou, até que um dos jornalistas se viu de repente
perante um agente da autoridade brandindo com raiva o pingalim e pensou que
iria sentir na pele os lanhos abertos por essa herança do Império Britânico. Só
quando sentiu nas costas uma mão se apercebeu de que, atrás de si, chorando,
dobrado de medo, balbuciando desculpas, estava o mesmo orador que, minutos, no
contrapicado do palco, parecia um gigante vociferador.
Cada vez que se
ouve a extrema-direita expelindo perdigotos contra os migrantes como os grandes
causadores de todos os males do mundo, é preciso recordar a imagem do poderoso
cobarde de Peshawar. Esta semana, veio-me à memória o episódio quando o
vice-presidente do Partido Conservador britânico, Lee Anderson, usou linguagem
colorida para dizer aos requerentes de asilo que se não gostam de ser metidos
na “prisão flutuante” que o Governo de Rishi Sunak lhes arranjou, “they
should fuck off back to France”.
Como escreve Andrew Stroehlein,
director dos media europeus da Human Rights Watch, estamos
perante “a mais preguiçosa forma de política”, praticada pelos “políticos sem
escrúpulos” que estão sempre prontos a aproveitar-se da fragilidade alheia para
ganho pessoal. Até porque “atacar os vulneráveis é simples; resolver problemas
é difícil”.
Mãe
migrante
A década de
1930 transformou a América. Foram anos duros. De pobreza extrema, fome,
exploração. Foram os anos de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck
(prémio Pulitzer em 1940), das famílias de agricultores que perderam as terras,
por causa da seca e das tempestades de pó, e partiram em busca de trabalho à
jorna nas terras dos outros.
Foi também a
década do New Deal, de Roosevelt, ambicioso programa de projectos
públicos e reformas legislativas destinadas a aquecer a economia americana
depois do desastre da Grande Depressão. A agência encarregada de promover o
programa, a Farm Security Administration, contratou na altura 15 fotógrafos de
renome para documentar o êxodo dos agricultores em busca de trabalho nas
plantações.
Entre eles
estava Dorothea Lange, que já tinha fotografado as condições dos desempregados
e sem-tecto da Califórnia. Do trabalho comissionado a Lange saiu uma das
imagens mais icónicas dessa época e da história da fotografia, o retrato Mãe
Migrante, de 1936. Uma das imagens da série que a fotógrafa fez com
Florence Owens Thompson, num acampamento em Nipomo, Califórnia.
“Vi e
aproximei-me de uma mãe faminta e desesperada, como se tivesse sido atraída por
um íman. Não me lembro como lhe expliquei a minha presença ou a minha câmara,
mas lembro-me de que não me fez qualquer pergunta”, contou, anos mais tarde, a
fotógrafa, citada no site do MoMA.
Mãe Migrante e
as cinco outras imagens que fez de Florence e dos filhos são parte importante
da exposição que lhe é dedicada em Turim, Dorothea
Lange. Racconti di Vita e Lavoro, em exibição no
Camera – Centro Italiano para a Fotografia, até 8 de Outubro.
Um jornalista
localizou a mulher 40 anos depois, a viver num parque de atrelados em Modesto,
Califórnia. Sentia-se envergonhada por essa imagem que a transformara em ícone
de uma época de desesperança. Os filhos dela tinham outra perspectiva, viam na
imagem a dignidade de uma mulher em tempos de adversidade e angústia.
A angústia e
o aviso
São Caetano é o
padroeiro do pão e do trabalho. A cada 7 de Agosto, pobres e desempregados
passam pelas igrejas para pedir ao santo que lhes traga emprego e comida. Em
situações de profunda crise económica, como a que a Argentina hoje atravessa (a
inflação chegou, em Junho, a 115,6%), as filas de crentes multiplicam-se.
O trabalho “não
é um objecto de compra e venda, não é um objecto de consumo”, afirmava esta
semana o presidente da Conferência Episcopal Argentina, Oscar Ojea, ao diário Página/12. “Quem não trabalha sente que
sobra, que não vale nada; sente-se ferido na sua dignidade.”
Entre quem não
tem emprego, quem é explorado no trabalho ou não consegue chegar ao fim do mês,
a angústia generaliza-se. Com a existência cada vez mais fragilizada, o elo
mais fraco no mercado laboral torna-se presa fácil na luz maximizada dos faróis
empresariais: coelhos atordoados a que se pode oferecer até a ilusão de uma
cenoura em troca de trabalho.
“Quando falamos
de paz, falamos de justiça”, explicava o bispo. “Quando falamos do pão, falamos
de um direito universal de todos os seres humanos.” E deixava o aviso: “Quando
lutamos verdadeiramente para que todos possam ter trabalho e para que sejam
respeitados todos os trabalhadores, mesmo aqueles que não podem viver na
plenitude dos seus direitos”, estamos a trabalhar em prol da paz.
“Na verdade,
quando pedimos ao santo do pão e do trabalho pão e trabalho, estamos a pedir
paz”, porque a paz não é uma coisa abstracta, uma palavra com significado
teórico sem realização física. “A paz constrói-se no concreto, no amor do
concreto”, sublinhava o bispo. Não esqueçamos que 85% das pessoas que passam
fome hoje no mundo vivem em países afectados por guerras e conflitos.
https://www.publico.pt/2023/08/11/mundo/cronica/dignidade-estupido-2059877
António Guerreiro . Deus ex Media
CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
11 de Agosto de 2023 (Público)
A relação entre
os media e a religião, ou antes, entre os media e
o catolicismo romano, é um ângulo de análise imperativo para perceber o
acontecimento da Jornada
Mundial da Juventude. Ali, até os confessionários foram concebidos e
“instalados” (no sentido em que se fala de uma instalação artística) para serem
telegénicos e resultarem numa “bela” exibição fotográfica e televisiva: eis o
eloquente emblema da negociação entre o público e o privado, em que o primeiro
goza de grandes vantagens. Esta mediatização, de preferência sob a forma da
televisualização, é um fenómeno aceite e promovido nas cerimónias cristãs, mas
não é uma prática judaica nem islâmica.
O filósofo
Jacques Derrida dedicou a este assunto uma longa intervenção, num colóquio em
Paris, em 1997, que teve por título “Surtout pas de journalistes!” (“Sobretudo
nada de jornalistas!). Tal injunção, imagina Derrida recorrendo a uma óbvia
anacronia, teria sido aquela que Deus, do Velho Testamento, inculcou
tacitamente em Abraão, quando o mandou subir ao monte onde deveria sacrificar
Isaac, o seu único filho. Para designar o fenómeno fundamentalmente cristão da
mundialização televisiva da religião, Derrida engendra um neologismo que evoca
a sede romana: “mundialatinização”. No entanto, esta “mundialatinização” está
sempre ligada, na sua produção, a fenómenos nacionais. Isso tornou-se muito
óbvio na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. Derrida sugere até que o tão
famoso “regresso do religioso” tem de ser avaliado e compreendido em função
destas manifestações eminentemente mediáticas.
Como não podia
deixar de ser, há um preço a pagar por isto, que a televisão, sobretudo, cobra
com juros altíssimos. Consistem esses custos no triunfo do Kitsch.
É conhecida uma frase do gramático Pierre Fontanier (1765-1844), no seu tratado
sobre as figuras do discurso, sobre os tropos, onde ele diz, ecoando uma
afirmação de Boileau, que se produzem mais figuras de estilo, num só dia, no
mercado parisiense de Les Halles, do que em toda a Eneida. Do
acontecimento religioso da semana passada podemos dizer o mesmo: produziu-se
mais Kitsch, em Lisboa, durante uma semana, do que em décadas de
produção literária e artística.
O Kitsch monumental
esteve bem patente nos palcos-altares e em toda a parafernália para ser
tele-vista. Quem conhece os gostos e os instrumentos do Kitsch ideológico,
encontrava ali material para frutuosas comparações. Mas se quisermos analisar o
acontecimento quanto ao fluxo de Kitsch produzido, temos de ir
além da concepção tradicional que vê esse conceito por um prisma meramente
estético que usamos para identificar os objectos de uma arte de massa,
estereotipada, de “mau gosto”. Devemos uma noção de Kitsch muito
mais alargada, que não se fica pelas propriedades formais de certos objectos,
ao escritor vienense Hermann
Broch, que foi ao ponto de elaborar filosoficamente o que seria o Kitsch como
“modo de vida”, abrindo assim essa noção ao registo mais vasto da atitude existencial
e a um tipo de actividades e experiências humanas. Aquela emoção estética a que
assistimos, a satisfação emocionada com que cada imagem, cada testemunho, cada
relato, cada comentário, cada citação, diziam uma única coisa, “vejam como é
belo e emocionante!”, é um gesto que consiste em olhar-se ao espelho do
embelezamento, fazendo surgir imediatamente a mentira do Kitsch.
Este “vejam
como é belo!” ou “vejam como nos satisfazemos de emoção pela emoção que nós
próprios produzimos” é uma ilustração perfeita do modo como Broch definiu
o Kitsch: a subversão da ética pelo efeito estético. Não é o
acontecimento em si que é Kitsch, não estou a sugerir que um
acontecimento religioso como aquele que teve lugar em Lisboa tem, em primeiro
lugar, um vínculo necessário com o Kitsch.
Kitsch é
a sua encenação, o modo como ele é produzido e reproduzido pelos media,
isto é, o discurso e as imagens de segundo grau que ele engendra e que, muito
embora fazendo parte da lógica da mediatização cristã, muito facilmente vão para
além dos seus próprios fins. Há momentos em que o Kitsch se
pode tornar uma coisa nauseabunda e é difícil imaginar que a própria hierarquia
da Igreja não o reconheça e não se sinta incomodada por ela. A vida Kitscht
visa fazer coincidir a esfera do ideal com a esfera da realidade, aquilo a que
Broch chamou “a ligação entre o céu e a terra”. Momentos desses, sobretudo nas
televisões, fluíram ao longo da semana numa torrente imparável. Foi um dilúvio.
Livro de
recitações
“Cada um
fala a sua língua, mas entendemo-nos todos porque é a linguagem do amor”
In Expresso online, 3/08/2023
Tomo, um pouco
ao acaso, este título de uma breve reportagem do Expresso onde
se citam as declarações de um “peregrino” a uma jornalista. Kundera, que seguiu
a lição de Hermann Broch, para a analisar o “Kitsch ideológico”
dos regimes totalitários, concluindo que no mundo idealizado do Kitsch “a merda não
existe”, deu este exemplo: uma criança a correr feliz atrás de uma bola num
prado florido não tem em si nada de Kitsch. O Kitsch nasce
a partir do momento em que alguém diz ou representa assim esse acontecimento:
“Vejam como é belo uma criança a correr atrás de uma bola num prado florido!”.
Este redobramento, que visa relatar uma verdade emocionante, através do
embelezamento, da mentira da linguagem emocional estereotipada e portanto
induzida, é aquele que podemos ver neste título (a não ser que ele tenha um
sentido irónico), que é apenas uma gota no vasto oceano do Kitsch produzido
ao longo de uma semana pela
https://www.publico.pt/2023/08/11/culturaipsilon/cronica/deus-ex-media-2059609
segunda-feira, 7 de agosto de 2023
Carlos Matos Gomes - A religião do Ocidente não é a deste papa
* Carlos Matos Gomes
2023 08 07
Ese algum ou alguma dos e das coristas que matraquearam vulgaridades e sopraram bolas de sabão sobre a Jornada Mundial da Juventude tivesse perguntado qual a causa pela qual os jovens participantes estariam dispostos a lutar?
Os grandes eventos devem suscitar interrogações. Conta-se que quando Moisés desceu do Sinai com a tábua dos 10 Mandamentos, anunciando que estes lhe haviam sido entregues por Deus, um dos assistentes lhe terá perguntado porque não viera Deus em pessoa transmiti-los. A história não relata o que aconteceu ao interpelante.
As religiões são sempre a transmissão de uma mensagem através de um mensageiro. Os céticos consideram que os mensageiros são os autores das mensagens. e procuram decifrar as mensagens. Os crente acreditam no que os reconforta, o mensageiro é apenas um cantor de canções de embalar. As suas palavras são meros sons que lhes ameniza as angústias. Nas religiões das sociedades mais complexas os crentes que constituem a massa não têm direito de fazer perguntas incómodas aos grandes mensageiros. Resta-lhes ouvir e acreditar no que já acreditavam. Mas há, ou haveria a possibilidade de perguntar o que pensa quem está a meu lado. Não ouvi nem vi alguém a perguntar.
Eu perguntaria o que pensam os jovens católicos (em particular dos franceses) dos jovens suburbanos que participaram nos incêndios e conduziram os motins de há um mês nas cidades francesas. E o que pensam os jovens católicos (em particular os norte-americanos) do embargo a Cuba, da invasão do Iraque, do Afeganistão, e da Síria, esta que até tem uma respeitável comunidade cristã, e o que pensam os jovens italianos sobre os migrantes do norte de África, e aos jovens de África perguntaria o que pensam da extração de matérias-primas dos seus territórios por grandes companhias ocidentais e assim por diante, incluindo o que pensam os sul-americanos da desflorestação da Amazónia ou do genocídio dos indígenas. Havia tantas perguntas a fazer aos jovens que vieram a Lisboa!
Mas no. Os grandes meios de comunicação não estão interessados nas causas das coisas, mas no espetáculo das coisas. Reduziram a interpretação de um grande acontecimento social e político ao mais rasteiro folclore. À semelhança, aliás, do que fazem com o futebol, outro grande fenómeno social, um fenómeno social total, como as religiões, motivador de emoções, gerador de grandes negócios, de interesses de toda a ordem e que é reduzido pelos fabricantes de alienação a qualquer coisa do género: vinte e dois tipos/as de calções a correr atrás de uma bola. Perguntar a um jovem participante nas JMJ porque veio a Lisboa e ficar todo contente ao ouvir a resposta: Ver o papa, equivale a interpelar um adepto do futebol e perguntar-lhe porque veio e ele responder: Vim ver o Ronaldo. As horas em que as câmaras de televisão seguiram o carro do papa são as mesmas em que seguem o autocarro das equipas de futebol a caminho do estádio! Não é um acaso, é uma estratégia de neutralização de questões.
Não existe inocência nas abordagens que a comunicação social de massas faz aos grandes eventos, nem sequer a da incompetência dos repórteres e diretores de comunicação. O primarismo das questões é deliberado, nem é novo, aliás. Comparar o papa da Igreja Católica a uma estrela do futebol até tem antecedentes anedóticos aqui em Portugal, na figura do comendador Santos da Cunha, governador civil de Braga, beato e queirosianamente populista, que numa celebração do 28 de Maio de 1926 se virou para Salazar e lhe atirou com esta pérola: «Vossa Excelência é o Eusébio do governo!» Os atuais comunicadores, com Marcelo Rebelo de Sousa à cabeça não desmerecem de Santos da Cunha bem poderiam ter dito: Vossa santidade é o Messi da nossa Igreja!
Mas a JMJ foi e é mais do que aquilo que as instituições de poder político e religioso pretendem que os cidadãos dela se apercebam. A mensagem do papa esteve e está em contra corrente da ideologia dominante no Ocidente. Daí tudo ter sido feito para a silenciar debaixo do ruído dos fait divers, das bênçãos das criancinhas e dos atiradores nos telhados.
A mensagem do papa Francisco nas Jornadas Mundiais da Juventude centrou-se no “outro”, nos outros, na ideia de aceitar os outros, de servir os outros, numa proposta de generosidade. Esta mensagem é herética, porque a ideologia dominante no Ocidente é centrada no “eu”, no individualismo. Por isso a mensagem centrada no outro foi diluída pelos intérpretes numa calda de vulgaridades e de ridículo que começou logo com a sacudidela de Marcelo à chegada. Estava dado o mote pelo mais alto magistrado da Nação Católica aos jovens católicos. O papa é um boneco. Pensem no papa como uma representação do vosso mundo e não como um estímulo para questionarem os seus fundamentos.
Gostaria de perguntar o que pensam os jovens vindos para JMC do facto de Adam Smith, o filósofo considerado o pai das teorias económicas do capitalismo liberal, a religião dominante à escala global imposta pelo Ocidente cristão, autor de «A causa da riqueza das nações» considerar que o egoísmo das pessoas redunda no bem comum. Que o egoísmo é, então, o motor da sociedade cristã!
Adam Smith não se ficou pela simples enunciação do valor cristão do egoísmo. Explicitou as virtudes do individualismo e do egoísmo: “Na verdade, o indivíduo geralmente não tem intenção de promover o interesse público, nem sabe o quanto o promove. Ao preferir sustentar a atividade doméstica e individual que a destinada à sociedade exterior, ele tem em vista apenas a sua própria segurança; e, ao dirigir essa atividade de maneira que a sua produção seja a de maior valor possível, ele tem em vista apenas o seu lucro. O indivíduo é guiado por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção.”
Isto é, para o grande teorizador do capitalismo em que vivemos, que tem por referência moral o cristianismo nas suas várias igrejas, incluindo a católica romana, “o facto de este fim (o lucro da sociedade) não fazer parte da intenção dos indivíduos nem sempre é o pior para a sociedade. Ao procurar o seu próprio interesse, o indivíduo frequentemente promove o da sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo.”
Em resumo, o modelo de sociedade que os cristãos — Adam Smith era um cristão fervoroso — impuseram o mundo enaltece o egoísmo como meio de realização individual e o bem da sociedade apenas é considerado um eventual ganho complementar. As faculdades de economia das universidades católicas e cristãs em geral assentam as suas lições na teoria do egoísmo de Adam Smith e não na generosidade.
O que pensam estes jovens católicos do modelo de sociedade fundado por Adam Smith e que até ao presente tem aprimorado e radicalizado os seus princípios de lei da selva e de fé na “mão invisível”, a metáfora que se tornaria a figura mais famosa do liberalismo económico, da concorrência, da vitória dos mais fortes e com menos escrúpulos?
https://cmatosgomes46.medium.com/a-religi%C3%A3o-do-ocidente-n%C3%A3o-%C3%A9-a-deste-papa-c018f5a01245