Em Gaza, Israel está a bombardear o
próprio argumento da sua existência: proteger um conjunto de pessoas de serem
perseguidas.
* Alexandra Lucas Coelho
3 de Novembro de 2023
1. Vivemos algo sem precedentes. A morte em Gaza é aqui, somos nós. A Europa disse: nunca mais. E era mentira. Estamos a ver o genocídio ao minuto num campo de concentração. Milhões pelo mundo, incluindo milhares de judeus, manifestam-se pelo cessar-fogo. A UE ignora-os: só uma “pausa humanitária”. Os EUA seguem Israel na guerra, agora também com “pausa humanitária”. É a pausa do curativo antes da bomba? A última refeição dos condenados à morte?
Sempre que pego no telefone a ver
se W. e R. ainda estão vivos em Gaza, vejo mais uma criança em choque, cortada,
tirada dos destroços. Pior. Um pequeno saco de plástico com partes humanas.
Muitos sacos brancos no chão, em valas comuns. Muitos sacos com gente agarrada
a eles, numa dor que não tem regresso. Há 27 dias consecutivos que 2,3 milhões
de pessoas sem saída são bombardeadas em directo nos nossos telemóveis. Nunca
visto.
O cessar-fogo é urgente. Mas mais.
Uma força internacional de interposição em Gaza. E um boicote global ao governo
de Israel. Desde ontem — e aguardamos que a lista cresça — Bolívia, Colômbia, Chile, Bahrein cortaram
laços diplomáticos, chamaram os embaixadores ou falaram em genocídio.
2. Muitos
judeus pelo mundo percebem isso com clareza, e no último shabat milhares
ocuparam a Grand Central Station de Nova Iorque com t-shirts Não
Em Nosso Nome, cartazes Nunca Mais É Para Todos. O tributo à
memória do Holocausto estava ali, não em Israel. A vida estava ali, não a
morte. Centenas foram detidos, numa fila interminável. Desobediência civil
inédita na mesma noite em que Israel apagava Gaza do mundo, num black
out de telefone e internet.
Entretanto, nos EUA, uma anciã,
militar retirada, levanta um cartaz pelo cessar-fogo, interrompendo Blinken, enquanto vários jovens erguem as mãos
pintadas de vermelho. Noutro lugar, uma rabina levanta-se, interrompendo Biden,
para apelar ao cessar-fogo.
Judeus que estão a descolar o
judaísmo da barbárie. A libertar as pessoas para o protesto sem serem acusadas
de anti-semitismo. E ao dizerem, enquanto judeus, que nunca mais é para todos,
libertam e protegem outros judeus. Inspiram judeus em Israel a quebrar o
silêncio por dentro.
Foi Israel quem colou o judaísmo à
barbárie. Ao massacrar os palestinianos, Israel é o pior inimigo dos judeus,
além do pior inimigo de si próprio. O sionismo, claro, é muito anterior à
fundação de Israel. O seu texto-marco é de 1896. Os seus militantes recorreram
muitas vezes ao terrorismo nas décadas seguintes, como tantos movimentos
nacionalistas. Uma longa história que não cabe aqui. A primeira vez que fui a
Telavive ainda entrevistei o ancião Uri Avnery, que fora um desses ex-sionistas
armados, e caminhara até uma certa ideia de paz, usava dois pins com as
bandeiras de Israel e da Palestina.
Nunca foi tão urgente distinguir
judaísmo e sionismo, antisemitismo e antisionismo. O judaísmo é milhares de
anos anterior e está muito para além do Estado de Israel. Os judeus de Nova
Iorque que se descolam da barbárie também se descolam do sionismo em muitos
casos. Não Dois Estados. Um Estado para toda a gente, sem supremacia étnica ou
religiosa.
Autores da chamada Nova História de
Israel, como Avi Shlaim ou Ilan Pappé, falaram de como sionismo é
racismo. Como um Estado para os judeus se fez à custa de uma limpeza étnica dos
palestinianos em 1947-48, a Nakba em árabe. O mundo acabara de sair da II
Guerra. O horror sem precedentes do Holocausto ficou inscrito na própria
Declaração de Independência de Israel. E se nos primeiros tempos o Estado
judaico teve vergonha dos que se tinham deixado abater (quando não colaborado
na extinção), depois foi usando o Holocausto como arma. Enquanto tirava cada
vez mais direitos aos israelitas não-judeus. Racismo de Estado.
Há dias vi Netanyahu na sua
performance de comandante-em-negro da guerra 2023, mais uma vez invocando o
Holocausto. Qualquer pessoa que conheça Israel sabe como isso é comum. E
qualquer europeu sabe como a culpa do Holocausto tem paralisado a Europa. Não
me vou alongar sobre o que já escrevi. Como o argumento do Holocausto tem de
ser virado do avesso. Desarmado. Em vez de motivo para não travar a morte,
motivo para a travar.
Em Gaza, Israel está a bombardear o
próprio argumento da sua existência: proteger um conjunto de pessoas de serem
perseguidas. A autodestruição de Israel tem vindo a acontecer há décadas, e
2023 pode ser vista como uma solução final, ao mesmo tempo assassina e suicida.
Ao massacrar o povo que ocupou, Israel leva-se a si mesmo para um abismo
irreversível.
3. Mas a UE continua cega. “Israel é um Estado democrático guiado por princípios muito humanitários. Podemos estar certos de que o exército israelita respeitará as regras do direito internacional em tudo o que fizer, não tenho dúvidas quanto a isso.” As palavras de Olaf Scholz, líder da Alemanha, há menos de uma semana, quando 7000 corpos já tinham sido identificados em Gaza, 2000 dos quais crianças, e mais de dois milhões de pessoas continuavam bombardeadas. Li estas palavras e afinal era pior do que sermos todos maus animais. Pensei: somos a vergonha dos animais.
Toda a gente sabe que Scholz mente,
a começar por ele próprio. Aquele foi o momento em que a UE decidia não apelar
ao cessar-fogo (salvé Irlanda, brava). Em que a UE subscrevia como democrático
um Estado que está a cometer crimes de guerra, que destratou Guterres, que cuspiu na cara do mundo, dizendo
que “a ONU não tem qualquer relevância”. É em baixo disto que Scholz assina? É
com isto que a UE quer construir um futuro? Quer proteger os judeus? Proteja-os
de Israel.
Que credibilidade tem a Alemanha, a
UE depois disto? Tal como os EUA não têm credibilidade para falar de barbárie.
E tudo isto corre o risco de lhes rebentar na cara.
E quantas
vezes será preciso lembrar que o Hamas é um movimento religioso nacionalista
que recorre a terrorismo? É essa a fasquia da democracia? Contrapor o Hamas a
Israel é dizer que as (supostas) democracias têm o direito de ser terroristas.
4. Pego no
telefone e a cada minuto aumenta o abismo. Vários abismos: entre gerações,
entre eleitores e eleitos, entre Ocidente/Norte e Oriente/Sul. Os mais velhos
não ouvem os mais novos. Os governos não ouvem a rua. A gente sai à rua aos
milhares, por exemplo em Lisboa, apanha com uma carga de água, e os media resumem
a coisa a umas centenas, e aos partidos. Mais um abismo: entre os media e
as redes sociais.
Os telefones são a arma de uma
população que o mundo abandonou. A parte mais envelhecida da Europa — ou parada
no tempo, ou só cega mesmo — não terá noção das imagens nas redes que mostram o
massacre. Dos reels de um apocalipse contínuo que vêm de lá.
Mas acreditem: as pessoas no Médio Oriente e pelo mundo estão de telefone nas
mãos, a ver. As novas gerações estão a ver isto. E é como o afastamento das
placas tectónicas, dos continentes. Não ter noção das redes agora é uma
irresponsabilidade para quem tem responsabilidades políticas. Porque é lá que
estão as pessoas que não têm voz. Num gueto onde não puderam entrar jornalistas
desde 7 outubro.
A Europa tem uma bomba nas mãos.
Um 7 de outubro multiplicado há 27 dias,
entre anúncios de publicidade e a frivolidade das vidas, tudo a misturar-se
como se fosse ficção. Como se fossem trailers. Trailers de crianças a serem arrancados de escombros.
Mais crianças morreram agora do que
em todos os conflitos do mundo em três anos. Por muito e muito tempo, elas vão
assombrar-nos. Vão assombrar as crianças de agora.
5. E a barbárie
do Hamas, e os reféns? É o que muita gente ainda
pergunta ao fim de 27 dias, mal ouve falar das crianças em Gaza. Mesmo quando
esses reféns criticam a acção de Israel. Mesmo quando é claro que Israel os
está a usar na guerra. Mesmo quando os EUA, a UE, muitos poderes estão
empenhados em salvar cada uma dessas vidas. Ou seja, quando elas já têm quem as
proteja — felizmente. Ao contrário de 2,3 milhões em Gaza.
E quantas vezes será preciso
lembrar que o Hamas é um movimento religioso nacionalista que recorre a
terrorismo? É essa a fasquia da democracia? Contrapor o Hamas a Israel é dizer
que as (supostas) democracias têm o direito de ser terroristas. Que um Estado a
que o Ocidente/Norte chama democracia, com centenas de milhares de soldados,
tanques, força aérea e poder nuclear pode ser bárbaro porque o Hamas foi
bárbaro. De cada vez que se repete isto é a humanidade que se afunda.
E os milhares de trabalhadores de
Gaza agora reféns de Israel? Gente de quem não sabemos os nomes, nem quantos
são, sequer. Nada sabemos deles, ao contrário dos reféns do Hamas. Valem menos,
estas vidas de Gaza?
E as da Cisjordânia? O terror a que
três milhões estão sujeitos com 700 mil colonos que viraram milícias, e os
atacam em contínuo. Além das dezenas de milhares de israelitas que se armaram
desde 7 de Outubro com incentivo do governo. Desde as fronteiras de Gaza aos
colonatos, Israel é um paiol, com cada vez menos espaço para a compaixão, para
a morte dos outros.
E que a Europa se pergunte, também:
porque a impressiona mais a morte em Israel do que a morte em Gaza?
6. Em vez disso,
outra pergunta que ouço: porque é que os palestinianos não se revoltam contra o
Hamas? Bom. Poderá ser porque o mundo os abandonou há décadas? Porque estão
sozinhos e trancados num gueto que se tornou um campo de concentração? Porque
as Nações Unidas falharam para com eles? Porque a Europa falha há décadas em
defender o direito internacional e os direitos humanos? Enquanto Israel
plantava 700 mil colonos, a Europa repetia o mantra dos Dois Estados. Também
era o direito de Israel se defender, a colonização no século XXI? A ocupação
deveria ter bastado à Europa para agir, e nunca bastou. E só ficou pior. A
Europa e o mundo também armaram este paiol.
Israel é um fruto da Europa. Dos
pogroms da Europa, dos acordos da Europa. E a Europa precisava de ter sido tão
radicalmente fiel à democracia e aos direitos humanos que não teria contribuído
para o fortalecimento do Hamas. O 7 de Outubro não aconteceu no vazio, como
Guterres bem disse. O secretário-geral foi até onde podia no lugar em que está.
Fez o seu trabalho, como disse Craig Mokhiber, o alto
quadro da ONU que se demitiu entretanto, e ficou livre para dizer o resto, em
quatro páginas que recomendo a toda a gente.
Ele chegou a morar em Gaza, conhece
o terreno. Nunca conheci ninguém — uma única pessoa — que conhecesse Gaza e não
a sentisse como um escândalo.
Como é possível o mundo ter pensado
que aqueles milhões podiam continuar do outro lado do muro sem direito a uma
vida digna?
7. Toda uma nova
geração não entende. Já estamos a legar-lhes um planeta em colapso. Agora um
genocídio em directo para milhões.
Anteontem, vi Bisan Wizard, uma das
jovens cercadas em Gaza que comunica directamente com quem a seguir no
Instagram. Ela dizia: aproveitem a vida o máximo que puderem. Como um bilhete
numa garrafa, a cara dela no nosso telemóvel lembrava o que facilmente
esquecemos: o quanto a vida é preciosa. Gaza a dizer-nos que nos importemos com
a vida.
Que a vida do outro é a nossa vida.
A nossa história comum.
Toda a poesia que li depois de
Auschwitz, os filósofos, a arte, se isso serviu para alguma coisa em relação ao
que é a história, ao que pode ser uma consciência comum, será para olhar isto
de frente e dizer que não. Partirmos este espelho.
Se o nunca mais não é para Bisan,
W., R., e todos os palestinianos, então não é para mim. Não é para quem lê este
texto, nem para os seus filhos. Deixarmos isto acontecer é dizer que é ok
acontecer.
Israel tem de
ser isolado como Estado de 'apartheid', investigado por crimes de guerra, à luz
do direito internacional e humanitário.
8. Desde domingo
que não sei de W., esse amigo e tradutor de tantas reportagens neste jornal,
muito tempo depois prisioneiro torturado do Hamas, como já escrevi. As palavras
dele continuam a abrir-se no silêncio que passa entre elas, e de cada vez
penso: como me atrevo a dizer que sou impotente?
Também já contei que a 7 de Outubro
eu estava a ler “Eichmann em Jerusalém”, e é como se Hannah Arendt acompanhasse
estes 27 dias. Então o carteiro toca e traz-me o livrinho de uma filósofa
nascida décadas depois na Catalunha, que fala do resgate do saber, do ler, do
pensar-acção, contra a impotência.
Sim. Ganhar tempo a saber o quanto
não sabemos sobre Israel/Palestina. Se ainda temos cabeça, se ainda temos
coração, não somos impotentes.
Entre tantos livros à minha volta,
e fotografias de Jerusalém, e herbários da Palestina, está por exemplo Etty
Hilesum. Ela que se sentou naquele comboio para Auschwitz e deitou aos céus o
seu último bilhete. Está Etty, como Adania, como Darwish a levar com bombas, ou
aquele poster de há cem anos, quando se apanhavam comboios em Gaza. Há um ano,
a última vez que estive em Jerusalém, não consegui entrar em Gaza, mas R.
mandou-me uma foto de um pedacinho dos carris que sobrava lá.
Que será feito deles?
9. Israel tem de
ser isolado como Estado de apartheid, investigado por crimes de
guerra, à luz do direito internacional e humanitário. Sujeito a sanções
económicas e políticas, além do boicote dos cidadãos. Não ficarmos impotentes é
também questionar quem governa: António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, a Assembleia
da República, a União Europeia. As pessoas estão a protestar como podem. E quem
as representa? Provem que a democracia existe, que ainda vale a pena votar, que
os direitos humanos são de toda a gente. Estejam à altura da vida que chega de
Gaza, e a cada minuto não sabemos se
continua.
Jornalista e
escritora, ex-correspondente do PÚBLICO em Jerusalém
Jornalista
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