sábado, 4 de novembro de 2023

Alexandra Lucas Coelho - Quero forças internacionais em Gaza. Já. E o boicote do mundo ao governo de Israel

OPINIÃO - 

Em Gaza, Israel está a bombardear o próprio argumento da sua existência: proteger um conjunto de pessoas de serem perseguidas.

*  Alexandra Lucas  Coelho

3 de Novembro de 2023

 1. Vivemos algo sem precedentes. A morte em Gaza é aqui, somos nós. A Europa disse: nunca mais. E era mentira. Estamos a ver o genocídio ao minuto num campo de concentração. Milhões pelo mundo, incluindo milhares de judeus, manifestam-se pelo cessar-fogo. A UE ignora-os: só uma “pausa humanitária”. Os EUA seguem Israel na guerra, agora também com “pausa humanitária”. É a pausa do curativo antes da bomba? A última refeição dos condenados à morte?

Sempre que pego no telefone a ver se W. e R. ainda estão vivos em Gaza, vejo mais uma criança em choque, cortada, tirada dos destroços. Pior. Um pequeno saco de plástico com partes humanas. Muitos sacos brancos no chão, em valas comuns. Muitos sacos com gente agarrada a eles, numa dor que não tem regresso. Há 27 dias consecutivos que 2,3 milhões de pessoas sem saída são bombardeadas em directo nos nossos telemóveis. Nunca visto.

O cessar-fogo é urgente. Mas mais. Uma força internacional de interposição em Gaza. E um boicote global ao governo de Israel. Desde ontem — e aguardamos que a lista cresça — Bolívia, Colômbia, Chile, Bahrein cortaram laços diplomáticos, chamaram os embaixadores ou falaram em genocídio.

2. Muitos judeus pelo mundo percebem isso com clareza, e no último shabat milhares ocuparam a Grand Central Station de Nova Iorque com t-shirts Não Em Nosso Nome, cartazes Nunca Mais É Para Todos. O tributo à memória do Holocausto estava ali, não em Israel. A vida estava ali, não a morte. Centenas foram detidos, numa fila interminável. Desobediência civil inédita na mesma noite em que Israel apagava Gaza do mundo, num black out de telefone e internet.

Entretanto, nos EUA, uma anciã, militar retirada, levanta um cartaz pelo cessar-fogo, interrompendo Blinken, enquanto vários jovens erguem as mãos pintadas de vermelho. Noutro lugar, uma rabina levanta-se, interrompendo Biden, para apelar ao cessar-fogo.

Judeus que estão a descolar o judaísmo da barbárie. A libertar as pessoas para o protesto sem serem acusadas de anti-semitismo. E ao dizerem, enquanto judeus, que nunca mais é para todos, libertam e protegem outros judeus. Inspiram judeus em Israel a quebrar o silêncio por dentro.

Foi Israel quem colou o judaísmo à barbárie. Ao massacrar os palestinianos, Israel é o pior inimigo dos judeus, além do pior inimigo de si próprio. O sionismo, claro, é muito anterior à fundação de Israel. O seu texto-marco é de 1896. Os seus militantes recorreram muitas vezes ao terrorismo nas décadas seguintes, como tantos movimentos nacionalistas. Uma longa história que não cabe aqui. A primeira vez que fui a Telavive ainda entrevistei o ancião Uri Avnery, que fora um desses ex-sionistas armados, e caminhara até uma certa ideia de paz, usava dois pins com as bandeiras de Israel e da Palestina.

Nunca foi tão urgente distinguir judaísmo e sionismo, antisemitismo e antisionismo. O judaísmo é milhares de anos anterior e está muito para além do Estado de Israel. Os judeus de Nova Iorque que se descolam da barbárie também se descolam do sionismo em muitos casos. Não Dois Estados. Um Estado para toda a gente, sem supremacia étnica ou religiosa.

Autores da chamada Nova História de Israel, como Avi Shlaim ou Ilan Pappé, falaram de como sionismo é racismo. Como um Estado para os judeus se fez à custa de uma limpeza étnica dos palestinianos em 1947-48, a Nakba em árabe. O mundo acabara de sair da II Guerra. O horror sem precedentes do Holocausto ficou inscrito na própria Declaração de Independência de Israel. E se nos primeiros tempos o Estado judaico teve vergonha dos que se tinham deixado abater (quando não colaborado na extinção), depois foi usando o Holocausto como arma. Enquanto tirava cada vez mais direitos aos israelitas não-judeus. Racismo de Estado.

Há dias vi Netanyahu na sua performance de comandante-em-negro da guerra 2023, mais uma vez invocando o Holocausto. Qualquer pessoa que conheça Israel sabe como isso é comum. E qualquer europeu sabe como a culpa do Holocausto tem paralisado a Europa. Não me vou alongar sobre o que já escrevi. Como o argumento do Holocausto tem de ser virado do avesso. Desarmado. Em vez de motivo para não travar a morte, motivo para a travar.

Em Gaza, Israel está a bombardear o próprio argumento da sua existência: proteger um conjunto de pessoas de serem perseguidas. A autodestruição de Israel tem vindo a acontecer há décadas, e 2023 pode ser vista como uma solução final, ao mesmo tempo assassina e suicida. Ao massacrar o povo que ocupou, Israel leva-se a si mesmo para um abismo irreversível.

3. Mas a UE continua cega. “Israel é um Estado democrático guiado por princípios muito humanitários. Podemos estar certos de que o exército israelita respeitará as regras do direito internacional em tudo o que fizer, não tenho dúvidas quanto a isso.” As palavras de Olaf Scholz, líder da Alemanha, há menos de uma semana, quando 7000 corpos já tinham sido identificados em Gaza, 2000 dos quais crianças, e mais de dois milhões de pessoas continuavam bombardeadas. Li estas palavras e afinal era pior do que sermos todos maus animais. Pensei: somos a vergonha dos animais.

Toda a gente sabe que Scholz mente, a começar por ele próprio. Aquele foi o momento em que a UE decidia não apelar ao cessar-fogo (salvé Irlanda, brava). Em que a UE subscrevia como democrático um Estado que está a cometer crimes de guerra, que destratou Guterres, que cuspiu na cara do mundo, dizendo que “a ONU não tem qualquer relevância”. É em baixo disto que Scholz assina? É com isto que a UE quer construir um futuro? Quer proteger os judeus? Proteja-os de Israel.

Que credibilidade tem a Alemanha, a UE depois disto? Tal como os EUA não têm credibilidade para falar de barbárie. E tudo isto corre o risco de lhes rebentar na cara.

E quantas vezes será preciso lembrar que o Hamas é um movimento religioso nacionalista que recorre a terrorismo? É essa a fasquia da democracia? Contrapor o Hamas a Israel é dizer que as (supostas) democracias têm o direito de ser terroristas.

4. Pego no telefone e a cada minuto aumenta o abismo. Vários abismos: entre gerações, entre eleitores e eleitos, entre Ocidente/Norte e Oriente/Sul. Os mais velhos não ouvem os mais novos. Os governos não ouvem a rua. A gente sai à rua aos milhares, por exemplo em Lisboa, apanha com uma carga de água, e os media resumem a coisa a umas centenas, e aos partidos. Mais um abismo: entre os media e as redes sociais.

Os telefones são a arma de uma população que o mundo abandonou. A parte mais envelhecida da Europa — ou parada no tempo, ou só cega mesmo — não terá noção das imagens nas redes que mostram o massacre. Dos reels de um apocalipse contínuo que vêm de lá. Mas acreditem: as pessoas no Médio Oriente e pelo mundo estão de telefone nas mãos, a ver. As novas gerações estão a ver isto. E é como o afastamento das placas tectónicas, dos continentes. Não ter noção das redes agora é uma irresponsabilidade para quem tem responsabilidades políticas. Porque é lá que estão as pessoas que não têm voz. Num gueto onde não puderam entrar jornalistas desde 7 outubro.

A Europa tem uma bomba nas mãos. Um 7 de outubro multiplicado há 27 dias, entre anúncios de publicidade e a frivolidade das vidas, tudo a misturar-se como se fosse ficção. Como se fossem trailersTrailers de crianças a serem arrancados de escombros.

Mais crianças morreram agora do que em todos os conflitos do mundo em três anos. Por muito e muito tempo, elas vão assombrar-nos. Vão assombrar as crianças de agora.

5. E a barbárie do Hamas, e os reféns? É o que muita gente ainda pergunta ao fim de 27 dias, mal ouve falar das crianças em Gaza. Mesmo quando esses reféns criticam a acção de Israel. Mesmo quando é claro que Israel os está a usar na guerra. Mesmo quando os EUA, a UE, muitos poderes estão empenhados em salvar cada uma dessas vidas. Ou seja, quando elas já têm quem as proteja — felizmente. Ao contrário de 2,3 milhões em Gaza.

E quantas vezes será preciso lembrar que o Hamas é um movimento religioso nacionalista que recorre a terrorismo? É essa a fasquia da democracia? Contrapor o Hamas a Israel é dizer que as (supostas) democracias têm o direito de ser terroristas. Que um Estado a que o Ocidente/Norte chama democracia, com centenas de milhares de soldados, tanques, força aérea e poder nuclear pode ser bárbaro porque o Hamas foi bárbaro. De cada vez que se repete isto é a humanidade que se afunda.

E os milhares de trabalhadores de Gaza agora reféns de Israel? Gente de quem não sabemos os nomes, nem quantos são, sequer. Nada sabemos deles, ao contrário dos reféns do Hamas. Valem menos, estas vidas de Gaza?

E as da Cisjordânia? O terror a que três milhões estão sujeitos com 700 mil colonos que viraram milícias, e os atacam em contínuo. Além das dezenas de milhares de israelitas que se armaram desde 7 de Outubro com incentivo do governo. Desde as fronteiras de Gaza aos colonatos, Israel é um paiol, com cada vez menos espaço para a compaixão, para a morte dos outros.

E que a Europa se pergunte, também: porque a impressiona mais a morte em Israel do que a morte em Gaza?

6. Em vez disso, outra pergunta que ouço: porque é que os palestinianos não se revoltam contra o Hamas? Bom. Poderá ser porque o mundo os abandonou há décadas? Porque estão sozinhos e trancados num gueto que se tornou um campo de concentração? Porque as Nações Unidas falharam para com eles? Porque a Europa falha há décadas em defender o direito internacional e os direitos humanos? Enquanto Israel plantava 700 mil colonos, a Europa repetia o mantra dos Dois Estados. Também era o direito de Israel se defender, a colonização no século XXI? A ocupação deveria ter bastado à Europa para agir, e nunca bastou. E só ficou pior. A Europa e o mundo também armaram este paiol.

Israel é um fruto da Europa. Dos pogroms da Europa, dos acordos da Europa. E a Europa precisava de ter sido tão radicalmente fiel à democracia e aos direitos humanos que não teria contribuído para o fortalecimento do Hamas. O 7 de Outubro não aconteceu no vazio, como Guterres bem disse. O secretário-geral foi até onde podia no lugar em que está. Fez o seu trabalho, como disse Craig Mokhiber, o alto quadro da ONU que se demitiu entretanto, e ficou livre para dizer o resto, em quatro páginas que recomendo a toda a gente.

Ele chegou a morar em Gaza, conhece o terreno. Nunca conheci ninguém — uma única pessoa — que conhecesse Gaza e não a sentisse como um escândalo.

Como é possível o mundo ter pensado que aqueles milhões podiam continuar do outro lado do muro sem direito a uma vida digna?

7. Toda uma nova geração não entende. Já estamos a legar-lhes um planeta em colapso. Agora um genocídio em directo para milhões.

Anteontem, vi Bisan Wizard, uma das jovens cercadas em Gaza que comunica directamente com quem a seguir no Instagram. Ela dizia: aproveitem a vida o máximo que puderem. Como um bilhete numa garrafa, a cara dela no nosso telemóvel lembrava o que facilmente esquecemos: o quanto a vida é preciosa. Gaza a dizer-nos que nos importemos com a vida.

Que a vida do outro é a nossa vida. A nossa história comum.

Toda a poesia que li depois de Auschwitz, os filósofos, a arte, se isso serviu para alguma coisa em relação ao que é a história, ao que pode ser uma consciência comum, será para olhar isto de frente e dizer que não. Partirmos este espelho.

Se o nunca mais não é para Bisan, W., R., e todos os palestinianos, então não é para mim. Não é para quem lê este texto, nem para os seus filhos. Deixarmos isto acontecer é dizer que é ok acontecer.

Israel tem de ser isolado como Estado de 'apartheid', investigado por crimes de guerra, à luz do direito internacional e humanitário.

8. Desde domingo que não sei de W., esse amigo e tradutor de tantas reportagens neste jornal, muito tempo depois prisioneiro torturado do Hamas, como já escrevi. As palavras dele continuam a abrir-se no silêncio que passa entre elas, e de cada vez penso: como me atrevo a dizer que sou impotente?

Também já contei que a 7 de Outubro eu estava a ler “Eichmann em Jerusalém”, e é como se Hannah Arendt acompanhasse estes 27 dias. Então o carteiro toca e traz-me o livrinho de uma filósofa nascida décadas depois na Catalunha, que fala do resgate do saber, do ler, do pensar-acção, contra a impotência.

Sim. Ganhar tempo a saber o quanto não sabemos sobre Israel/Palestina. Se ainda temos cabeça, se ainda temos coração, não somos impotentes.

Entre tantos livros à minha volta, e fotografias de Jerusalém, e herbários da Palestina, está por exemplo Etty Hilesum. Ela que se sentou naquele comboio para Auschwitz e deitou aos céus o seu último bilhete. Está Etty, como Adania, como Darwish a levar com bombas, ou aquele poster de há cem anos, quando se apanhavam comboios em Gaza. Há um ano, a última vez que estive em Jerusalém, não consegui entrar em Gaza, mas R. mandou-me uma foto de um pedacinho dos carris que sobrava lá.

Que será feito deles?Quero forças internacionais em Gaza. Já. E o boicote do mundo ao governo de Israel

9. Israel tem de ser isolado como Estado de apartheid, investigado por crimes de guerra, à luz do direito internacional e humanitário. Sujeito a sanções económicas e políticas, além do boicote dos cidadãos. Não ficarmos impotentes é também questionar quem governa: António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, a Assembleia da República, a União Europeia. As pessoas estão a protestar como podem. E quem as representa? Provem que a democracia existe, que ainda vale a pena votar, que os direitos humanos são de toda a gente. Estejam à altura da vida que chega de Gaza, e a cada  minuto não sabemos se continua.

Jornalista e escritora, ex-correspondente do PÚBLICO em Jerusalém

Jornalista

https://www.publico.pt/2023/11/03/opiniao/opiniao/quero-forcas-internacionais-gaza-ja-boicote-mundo-governo-israel-2068893

 

 



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