* Hugo Dionísio
Porque é que alguém, por se sentir tão zangado com a política, admite que se justifica tornar-se fascista, racista e reaccionário; mas esse mesmo alguém, que adere à cultura do ódio e da demagogia, não percebe que, alguém que tudo perde, até a sua dignidade e a esperança, por se encontrar do outro lado do mundo, tem direito e enveredar pela resposta violenta! Como se justifica tão desproporcional e contraditória consideração?
500 anos de imperialismo, pilhagem, exploração desenfreada e escravatura deixam marcas indeléveis no carácter das populações, nas suas crenças, moral e costumes. Não era possível, de qualquer modo, sucessivas gerações estarem sujeitas a toda uma ideologia justificadora do expansionismo, mercantilismo e imperialismo e, no final, permanecerem com as suas almas intocadas pelos valores – ou falta deles – que motivaram tal ideologia apropriadora.
Daí que, a exposição à ideologia expansionista do capitalismo ocidental na sua fase imperialista, resulte num misto de crenças – quando não crendices – próprias de uma sociedade em transição para uma identidade mais conforme com os valores que diz promover.
Uma das características que mais define o actual estado de espírito de uma parte importante – quiçá maioritária – das populações ocidentais, dominadas pela ideologia anglo-saxónica, a que se convencionou apelidar “liberal”, consiste na incapacidade total para compreender o lugar do outro, nomeadamente daquele que se encontra do outro lado de uma barricada ideológica, comunicacional e semiótica, criada pelos poderes de facto para dividir.
Não admira que tal suceda. Afinal, já em tenra idade, os poderes capitalistas emergentes foram tão rápidos a apropriar para si o ideário religioso que justificava a evangelização. Quem nunca leu, nos livros de História, as justificações dadas pelos Estados que, saídos do feudalismo, já se encontravam numa fase de expansionismo das suas respectivas burguesias? Era por demais evidente o espírito de cruzada que justificava, em grande parte, a decisão de conquistar de Ceuta. É claro que, dizem-nos historiadores como António Sérgio e o próprio materialismo histórico, que a razão fundamental foi a económica. Contudo, não podendo, simplesmente, dizer-se ao povo que “vamos a Ceuta para tomarmos o que é do outro”, até porque roubar era feio e pecado, havia que desumanizar o inimigo e, à data, qual o melhor pretexto que o religioso? “Inimigos da verdadeira fé”, “infiéis”, “hereges”, tudo serviu para justificar o processo de expansão.
Quando já não se tratava dos sarracenos, mas de povos pagãos, como sucedeu em África ou nas Américas, nada que fosse mais simples: “evangelizar” ou “salvar as almas” constituíram os mais comuns pretextos em matéria de propaganda. À medida que avançava o Renascimento, o iluminismo, se desenvolvia a era mercantil e, com ela, o surgimento de uma certa sofisticação ocidental, cultural e tecnológica, resultante do imenso capital apropriado à força, o pretexto religioso foi sendo abandonado em prol de motivações mais consentâneas com os novos tempos.
Neste quadro assistimos ao surgimento dos pretextos civilizatórios, chamando “selvagens” a todos os que se visava explorar. Já em África, os alemães diziam para si próprios que estavam ali para “civilizar” os negros. O mesmo disseram os portugueses, holandeses, belgas e outros. Todos queram as imensas riquezas africanas ou americanas, mas o objectivo mesmo era o de “civilizar”. Tratava-se de um imenso ímpeto “altruísta”, mas que resultou sempre em tráfico negreiro, genocídio, subdesenvolvimento e guerra com fartura. Nesta matéria, até essa data, nenhum Império foi tão longe como o britânico.
Este imenso “altruísmo” vivia muito do racismo. O racismo e o supremacismo branco, que foi sendo utilizado para desumanizar os inimigos e tornar aceitáveis as violências contra eles praticadas. Não nos admiremos, pois, que, após quase 8 séculos de tentativas frustradas de conquista da Rússia, por parte dos impérios ocidentais – que acontecem ao ritmo de 1 a 2 vezes por século -, o que não falte para aí seja russofobia e racismo anti eslavo. Os próprios nazis ucranianos, hoje tão brindados no Ocidente, são os primeiros a dizer que têm estudos que “confirmam que os ucranianos têm sangue europeu e os russos não”. Sintomático.
A esta crescente russofobia não serão alheias as declarações de Pistorius, o Ministro Alemão da Defesa. Alemão que é como quem diz, que sabemos bem a quem ele responde de facto. E o que diz Pistorius? Disse: «temos de nos habituar novamente à ideia de que o perigo de guerra pode estar a pairar na Europa. E isso significa: temos de nos tornar aptos para a guerra. Temos de estar aptos para a defesa. E posicionar a Bundeswehr e a sociedade para isso», disse esta corajosa salsicha ao programa da pública ZDF «Berlin direkt». Que morram os filhos dos outros!
Este tipo de tiradas já vem, como cereja no topo do bolo, de uma preparação ideológica mais típica do imperialismo estado-unidense do que de qualquer outro. Afinal, todo o desmoronamento para o precipício a que hoje assistimos, acontece no quadro de uma substituição do ímpeto justificador “civilizatório” dos séculos XVIII, XIX e inícios do XX, pelo ímpeto “democrático” ou “humanista”, ao abrigo do qual se justificam guerras, sanções, embargos e todo o tipo de agressões, porque “eles são uma autocracia”, “uma ditadura” ou “violam direitos humanos”. Como se, alguma vez, fosse aceitável fazer o mal, em nome do bem.
No caso do Médio Oriente, assistimos a uma escalada no mesmo tipo de ideologia: o “eles são terroristas”, ou seja, já no quadro de uma lógica securitária. Seja o religioso, o civilizatório, o humanista ou o securitário, todos estes pretextos visam o mesmo tipo de objectivo: desumanizar quem se ataca, para que se torne aceitável fazê-lo. E o facto é que funciona.
E funciona tão bem que o cidadão europeu e americano, em geral, surge tão moralmente condicionado e tão cognitivamente desarmado, por séculos de propaganda desumanizadora (95% dos filmes de Hollywood representam os árabes como terroristas, bandidos, ignorantes ou desorganizados) e estigmatizadora dos povos que se querem dominar, que deixa de possuir qualquer defesa contra estes processos, sendo facilmente presa de justificações falaciosas e sem fundamento material, moral, democrático, civilizacional ou religioso.
Este bloqueio emocional, que horas a fio de TV produzem no carácter de um indivíduo acrítico, produz uma total incapacidade deste se colocar no lugar das vítimas. Veja-se só esta contradição: uma parte crescente da população ocidental acha justificável votar na extrema-direita reacionária, fascista, racista, apenas porque se sentem zangados com o estado das coisas. Incapazes de perceber – em função da muralha cognitiva que construíram – de onde vem o tal “estado das coisas”, justificam a adesão a ideologias extremistas, ao ódio, à ignorância e também à violência porque “nada muda”, “os políticos são todos corruptos”, “cada vez isto está pior”.
Mas são estes mesmos, ao quais justificam o seu comportamento incivilizado com as “dificuldades”, os que mais atacam a adesão do povo de Gaza a organizações mais ou menos apologistas da ação violenta e militar. Quer dizer, um tipo chega sem dinheiro ao final do mês, mas não passa fome nem vive na rua, acha que tem direito a estar tão zangado que pode tornar-se fascista, racista e reacionário; mas um árabe que perde a sua casa, a sua família, a sua liberdade, a sua pátria e a sua dignidade, todos os dias, várias vezes ao longo de mais de 75 anos, já não tem direito de optar por soluções mais extremas e violentas!
É preciso ter uma incapacidade para a fraternidade, para a compaixão, para a compreensão e para a solidariedade, capaz de destruir todos os laços sociais. Eis a razão, pelaxual, também as sociedades ocidentais se estão a desagregar, vítimas deste individualismo narcisista atroz.
Fechados nas suas bolhas, acham tudo aceitável, se não os afectar; quando são afectados, tudo passa a ser aceitável. Eis também, por que razão consideram que um qualquer direito de defesa justifica tão elevado nível de atrocidade e tão desproporcionada resposta.
Não admira que andem atrás de políticos que dizem que acabam com os subsídios, que muitos deles recebem, com os serviços públicos, que todos usufruem, ou, com os direitos laborais que lhes permitem gozar férias e feriados. Para tudo olham como sendo distante e apenas afectando os outros.
Mas não, e a prova é, uma vez mais, o que se passa aqui. A mesma “democracia” que diz que um país é democrata, mas que pode, mesmo assim, descarregar o equivalente a duas bombas de Hiroxima em cima de um campo de concentração com 40 km de cumprimento por 10 de largura, é a mesma “democracia” que assiste a uma administração – Biden – deslocar a maior mobilização militar para o Médio Oriente desde 2003, o ano da infame – e, porém, “aceitável – invasão do Iraque. E tal mobilização que indicia intenções que vão muito para além da simples “defesa” do Estado sionista, para que “se defenda” até tudo matar, denunciando, sim, perspetivas belicistas que podem resultar na terceira guerra mundial e, tudo isto, sem qualquer respaldo parlamentar.
Tal como nos vassalos europeus quando, por ordem de uma burocracia europeia não eleita, os respectivos governos aceitaram intrometer-se numa cruzada contra a Rússia sem qualquer discussão ou escrutínio na casa da democracia, que é o parlamento.
O mesmo “estado de direito” que dizem ser Israel – que convive com dezenas de anos de ocupações violentas, extorsão e prisões arbitrárias de todos os que se opõem permitindo o mais evidente abuso de direito, e que transforma a legitima defesa (defesa de quê?) num direito a exterminar -, é o mesmo “estado de direito” que, já no Ocidente, permite que a burocracia de Bruxelas censure a informação em Portugal e que empresas americanas de comunicação (redes sociais) nos persigam a liberdade de opinião com as suas “regras da comunidade”.
É que, se pensam que o que se faz aos outros não tem influência em nós… vejam bem a História, porque o que permitimos aos outros, é o que permitimos a nós próprios, quando a justificação aparecer. E por isso é que, cada vez mais, se comprova a verdade universal a que Che Guevara aludia: enquanto não formos todos livres, ninguém é livre!
Porque podemos sempre ser alvos da mesma opressão que hoje justificamos contra os outros!
Hugo Dionísio 2023 11 01
https://canalfactual.wordpress.com/2023/11/01/a-justificacao-da-opressaoporque-e-que-alguem-por-se-sentir-tao-zangado-com-a-politica-admite-que-se-justifica-tornar-se-fascista-racista-e-reaccionario-mas-esse-mesmo-alguem-que-adere-a-cultur/
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