* Alexandre Hoffmann
21 NOVEMBRO, 2023
A estupidificação de parte das lideranças mundiais tem resultado, sobretudo, de dois processos distintos: o esvaziamento da social-democracia na construção de soluções capazes, face à heterogeneização de um mundo convulso, social, política e economicamente falando, e à mediatização, carregados em ombros pela imprensa, dos movimentos, e de seus líderes, que agrupam em sua órbita as correntes políticas populistas e fascistas.
O falhanço da política social-democrata
Num mundo e num momento de profundas convulsões sociais e económicas, a terceira via e as suas políticas frugais e de circunstância, que tentam manter um irrealizável equilíbrio entre a sobrevivência do sistema capitalista e o desenvolvimento dos povos, configuram uma alternativa que se tem vindo democraticamente, nas actuais fronteiras das definições e conceitos de democracia ocidental, a esgotar-se. Com a sua amplitude ideológica, e convenientemente esparsa, os campos políticos da democracia burguesa aumentaram a sua esperança média de vida, arrebanhando os eleitorados possíveis, mediante a manipulação em seu favor do concreto de cada realidade eleitoral e, sobretudo, a definição a tempos e espaços e ao sabor dos ventos dos dias das suas falsas bandeiras e posicionamentos políticos. Porém, com todas as experimentações e combinações políticas e de governo, possíveis e imaginárias, mas sempre subservientes aos interesses do grande capital, da exploração e do imperialismo, e às respectivas instituições internacionais que preconizam tais ideais, resultaram num cenário absolutamente escabroso para os povos dos países dito desenvolvidos e emergentes. Perante a situação de inflação e retraimento económico, de empobrecimento generalizado e de profundas convulsões sociais, o surgimento dos movimentos neofascistas e populistas, não resulta de uma necessidade orgânica e de base, mas antes como o seguro de vida do sistema capitalista, e inclusivamente, a prazo, da via social-democrata e da direita tradicional, que saberão esperar, durante o triunfo fascista, o seu regresso. Antes penar do que desaparecer, que a alternativa preconizada pelos movimentos populares determinaria, não por imposição mas por experimentação, o seu fim, assim o liberalismo económico surge como um mal menor.
Discursos messiânicos como resposta às crises económicas e sociais
Líderes populistas brotando em cada esquina são a versão modernizada de figuras sacras e virgens surgindo em árvores. Se as políticas dos campos da social-democracia não surtem os efeitos desejados na vida das pessoas, pese embora as proficientes oportunidades que lhes vão sendo entregues nos vários e consecutivos plebiscitos eleitorais, a descrença no sistema promove o espaço para curas milagrosas e discursos messiânicos. A iliteracia política, uma erva daninha entre o povo ocidental, promovida, e em muito bem-querida, pelo capitalismo, num fervor de falsa modernidade que em muito também lhe convém, o que importa a política afinal?, desbrava caminhos até ao poder, promovendo um desinteresse e apatia generalizada pelos processos políticos e democráticos em primeira instância, e posteriormente num desespero, perante a carestia de vida, que num ímpeto de sobrevivência se lançam parte dos povos marginalizados em apoio a estes movimentos inorgânicos, crendo que nestes discursos aparentemente salvadores, de anticorrupção e de anti-sistema, assentes mediante a necessidade e circunstância em bodes expiatórios. Afinal se esta gente é pobre, a culpa é do cigano ou do negro ou do emigrante, do subsídio ou do sindicato, enfim, do “socialismo”. Mas por que razão parece teimar colar este argumentário vazio?
O papel da imprensa
A imprensa pública e estatal, que assim-assim vai cumprindo o seu papel constitucional dentro de um estado de direito, é aparentemente o único inimigo comum na cruzada fascista e neofascista, no que toca à imprensa de uma forma geral, entenda-se. Não é por mera coincidência que, de forma transversal, se encontre a premissa neste tipo de projectos ultraliberais a intenção programática de encerramento ou privatização dos órgãos de comunicação estatais, e, por sua vez, o enaltecimento dos seus pares de iniciativa privada, nas mãos companheiras que alimentam os seus projectos políticos. A iniciativa privada no campo da informação, não configura, nem pode configurar, jornalismo independente, isto é, se é financiado e se tem como objectivo uma sustentabilidade económica e fomentação de lucro trata-se de um negócio e não de um serviço, que obedecerá, não aos critérios rigorosos de informação imparcial, mas sim aos interesses de regime dos seus proponentes. Está para lá, bem para lá, do curioso, quando se atenta ao tempo de antena e destaque, que grande parte da comunicação social insiste em ofertar a este tipo de movimentos e partidos políticos que giram em seu redor, exponenciando a sua força e relevância, que nunca encontra paralelo nas ruas, nos campos, nas fábricas e nas escolas, é, portanto, de realçar, para reflexão urgente, o papel da imprensa na construção destes fenómenos. Não obstante, a resposta aos seus porquês será bem mais simples do que poderá aparentar: servem os seus interesses de classe e o sistema de que ambos se alimentam.
O paradoxo dos movimentos ‘ele não’
Vão valendo os legados históricos dos movimentos de massa, que os seus processos, mesmo que intermitentes em bastantes cenários ocidentais, deixam as suas organizações, métodos e aprendizagem, ao longo das gerações. No entanto, o revisionismo encontrou, mesmo à esquerda, os seus espaços e outras terceiras vias, que construíram, ou replicaram, erros de montra com efeitos altamente contraproducentes. A desorganização e fragmentação, e até algumas fragilidades, das forças progressistas fizeram com que, não raras vezes, as frentes unitárias que se propuseram fazer frente a um determinado projecto político de regressão, encorpassem o seu discurso e acção no antagonizar de determinada figura individual, enfocando toda a energia no ataque a um conjunto de características pessoais, retirando do centro da discussão e do esclarecimento as suas propostas políticas, de construção de alternativa e de representação popular. Bastaria já o palco mediático ofertado a este tipo de agremiações e personagens, e este tipo de campanhas, centradas nestas personagens, e relembrando que não existe tal coisa como má publicidade, são do seu total interesse e conveniência, e disso é prova todo o exemplo saído dos últimos actos eleitorais, mundo fora, em que grande parte das forças democráticas resumiram o seu discurso e luta a um esvaziado “ele não”.
O projecto-comum do neoliberalismo e do fascismo
Pelas lentes de onde nos encontramos, politica e socialmente, em muito é-nos difícil distinguir a diferença, e, sobretudo as consequências, entre um projecto manifestamente liberal e um outro fascista. A sobrevivência de um está dependente da força do outro, e a teia que garante a vantagem económica e de lucro, a quem serve o liberalismo, assenta a sua estrutura e manutenção na concretização das políticas fascizantes, pelas mãos dos seus grupos políticos, que acabam, e que teimam, por financiar, sobretudo, nos ciclos recorrentes de regressão económica, decretada a tempos como impõe o capitalismo no seu normal funcionamento. Não se condene à partida o viés dos óculos com que temos aprendido estas coisas, que do lado de lá, sublinhando a importância do momento de crise, qualquer coisa à sua esquerda, mesmo bem lá para a direita, perto e encostado a si, o liberalismo apelida tudo de “socialismo”, impondo os forjados caminhos de ambição num reconstruído regime e numa fraca figura de estado como salvação, e em tudo se alinha, aqui e ali, no discurso paralelo entre uns e outros, para a destruição dos serviços públicos, para a diminuição da estrutura do estado, para o entrecorte de direitos sociais e laborais, e para a mercantilização de tudo e todos, só não há garantias de qualquer avanço, prometendo que nada desse passo em frente é necessário e fará falta. Quem já pouco tem, pouco se importa de aventurar por estes caminhos ardilosos, afinal alguma solução haverá de existir, que seja então a mais berrada e a mais gritada, mas este será, seguramente, a desgraça dos povos.
O projecto particularmente grave de Javier Milei
Aqui estamos nós a individualizar a questão, mas atente-se que é por pertinácia e circunstância dos dias vividos no país do Sol de Maio, e não por outro motivo. Porque o que aqui se escreverá de seguida, encontra paralelo e exemplo em todos os lugares, e estes projectos não são, nem configuram, nada de novo. Javier Milei, novo presidente eleito da Argentina, reúne em si um conjunto de características desejáveis, aos olhos do amedrontado capital, que replicou ali o já antes tentado, com sucesso reconheça-se, noutros países, e afastemo-nos dos exemplos concretos, amplamente sabidos por todos. Se a repetição individual é de fácil percepção, mais facilitada está-nos a vida nos projectos que encorpou a sua candidatura, que no fascismo e no liberalismo é cientificamente comprovada uma máxima, de que nada se ganha, muito se perde e, sobretudo, nada se transforma.
Javier Milei preconiza um programa político de “flexibilização” do emprego, que atirará às ruas muitos mais argentinos do que agora estão, em grande conluio com as confederações patronais, propõe a desintegração da saúde pública gratuita, promove a conceptualização abstracta da meritocracia e do estado mínimo. Anuncia-se como anarcocapitalista, odiando o estado, mas ansiando paradoxalmente ser ele o estado, proclamando a extinção de vários ministérios, muitos ligados às tutelas de questões laborais e sociais, tudo valendo para angariar a franja que engoliu o discurso de demonização da figura estatal, aproveitando para um dos maiores ataques aos trabalhadores daquele país que há memória.
Propõe uma Argentina grande e soberana, independente e interventiva, afirmando que encerrará o Banco Central, em larga medida, bem ou mal, garante relativo da independência monetária do país, apenas para enveredar por uma dolarização da economia, que não se abaixe tanto as calças ao domínio americano, não vá cair por terra tão enobrecido intento, enquanto que anuncia em simultâneo a saída da MercoSur, que em muito contribuiu para o desenvolvimento e soberania das economias sul-americanas. Para Milei, tudo e todos, neste regime democrático, são parasitas, subsidiários e oportunistas, e configuram o grande mal económico e financeiro do país, mas não nunca, o grande capital sedento e vampiresco, que pese a crise argentina, mantém incólume o seu lucro.
Tudo isto vos poderá soar, e bem, a uma replicação de vários cenários similares, uns perto outros mais afastados, uns aqui e outros acolá, mas a cada povo e nação cabe, em desditosa fortuna, ter o seu pequeno führer de bolso. Milei, que mandou clonar o seu cão, sorte que a cada existência corresponda uma só alma, imaginem a sorte, ou falta dela, de ser bicho de estimação em duas rodadas de vida de Javier Milei, e que através dos seus cães fala com deus, reveste-se das suas próprias particularidades e desideratos políticos, como a legalização de compra e venda de bebés, a proibição do aborto, a liberalização de órgãos, o armamento geral da população, o combate ao “marxismo-cultural”, seja o que isso for, o fim da escolaridade obrigatória e a subsidiação ao ensino privado, teremos já ouvido esse argumento de que “os pais possam escolher livremente onde os filhos estudam”, e, por substituição à saúde pública e gratuita, a criação de um seguro de saúde universal, por fim, que não pedirá desculpa por ter um “pénis”, não o teria de fazer, o que nos preocupa é que seja esse mesmo o seu membro mais intelectualizado.
Se parece ser certo que só o povo salva o povo, é também certo que só o fascismo poderá salvar o capitalismo, e mais à sua sanha imperialista e belicista, e à sua injusta e criminosa acumulação de riqueza. Se isto é, efectivamente, um passo atrás, então a resistência, a organização, a unidade e a luta, serão o único garante para dois à frente.
https://manifesto74.pt/a-cronica-de-um-anunciado-inverno-argentino/
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