Protesto de jornalistas do grupo português Global Media NUNO FERREIRA SANTOS
Crónica Acção Paralela
“Estamos ainda em democracia?”. Esta pergunta tem uma especial incidência quando se pensa no que está a acontecer aos jornais e ao jornalismo.
* António Guerreiro
10 de Maio de 2024
A palavra “extinção” começa a aparecer com alguma frequência em artigos sobre a crise – em boa verdade, uma devastação – que atinge actualmente os jornais e o jornalismo.
Encontrámo-la recentemente nos títulos de dois diagnósticos desta situação nos Estados Unidos: um, publicado no final de Janeiro na revista Atlantic, assinado por Paul Farhi, que foi um importante repórter do Washington Post; outro, no mês seguinte, da autoria de Clare Malone, na The New Yorker.
Usando um acento catastrófico que uma prudente interrogação não consegue relativizar, ambos evocam a extinção como um horizonte plausível. O primeiro pergunta: “Is American Journalism Headed Toward an ‘Extinction-Level Event?’”; a segunda insiste quase com os mesmos termos: “Is the Media
Prepared for an Extinction-Level Event?”. Não é ainda um requiem, mas está próximo.
O que se passa nos Estados Unidos, neste domínio, não é certamente muito diferente do que se passa na Europa, só que talvez num grau mais elevado e com algum avanço no tempo. O horizonte é o mesmo.
O que ficamos então a saber acerca do estado de coisas nos Estados Unidos, informados por estes e outros artigos sobre o mesmo assunto? Ficamos a saber que a hemorragia mais forte é a da imprensa regional: em média, todas as semanas morrem duas publicações e meia (jornais diários, semanários, mensais).
Num país tão extenso como os Estados Unidos, os jornais regionais tiveram sempre um papel importantíssimo e foram um factor fundamental dos equilíbrios democráticos e da vida cultural e comunitária. Quando esse espaço é ocupado pelas redes sociais, ficam à solta as teorias do complot, as fake news, os conteúdos gerados pela inteligência artificial que multiplicam a desinformação, o caos, o convite à passagem aos actos de violência. O ambiente de radicalização e pré-guerra civil que se vive nos Estados Unidos faz parte deste panorama que promove e alimenta a divisão e os extremismos.
Há uma pergunta que começa a ser posta e que leva a pensar os caminhos que estão a tomar as tradicionais democracias liberais: “Estamos ainda em democracia?”. Esta pergunta tem uma especial incidência quando se pensa no que está a acontecer aos jornais e ao jornalismo.
Alguns números fornecidos nos artigos citados: em 2023 foram eliminados nos Estados Unidos 21.400 postos de trabalho nos media tradicionais. Grandes jornais como o Los Angeles Times (que despediu mais de 20% da sua redacção) e o Washington Post não foram poupados. Este último teve no ano passado um défice de cem milhões de dólares. No entanto, tinha sido um dos que mais prosperou durante a presidência de Donald Trump. Como é sabido, o “espectáculo” Trump proporcionou aos jornais um festim permanente que lhes valeu um grande aumento de leitores.
O declínio dos meios de comunicação tradicionais já suscita esta pergunta formulada pela autora do artigo da New Yorker: “Estamos a assistir ao fim da era dos meios de comunicação de massa?”. Este declínio já começou há décadas, mas foi acelerado pela Internet, pela digitalização generalizada, pelas plataformas. As receitas publicitárias que garantiam o negócio dos jornais passaram a fluir na direcção de colossos como a Google. Quando deixa de ser possível sustentar o jornalismo como um negócio, muitas publicações usam um pseudojornalismo como operação de fachada para outros negócios e entram numa zona obscura.
De todas as “grandes regressões” que se deram desde o início deste século, esta é uma das mais velozes e contundentes. O seu efeito político é bem visível, no avanço de factores que levam à degradação do espaço público, ao enorme teor de conflito social e político, ao empobrecimento cultural. As noções de pós-verdade e pós-democracia assentam nestes terrenos onde vacila tudo o que dantes parecia seguro.
E assim estão criadas as condições para promover um mundo em que já nem serve a distinção entre o verdadeiro e o falso, nem faz apelo a uma ideologia dotada de uma coerência sistemática, como acontecia nos regimes totalitários do século XX. A mentira ideológica e a propaganda eram ainda uma peça da engrenagem da política moderna. Aquilo a que hoje se chama pós-verdade tem que ver com a hegemonia das novas fontes de informação e dos meios de produção e circulação de notícias, dados e visões do mundo que apelam à divisão e à violência, subtraindo-se a qualquer controlo editorial.
Perante isto, o jornalismo está a revelar-se tanto mais impotente quanto está obrigado a investir a sua energia na luta pela própria sobrevivência.
Livros de recitações
“Sempre achei que pedir desculpa é uma solução fácil”
Marcelo Rebelo de Sousa, referindo-se a um dos gestos de “reparação”
Da saúde mental do Presidente ou, pelo menos, da sua “irresponsabilidade”, a merecer que seja colocado sob condição de tutela, já muito se falou na última semana. E foram sobretudo os que faziam parte das suas hostes que lançaram as repreensões mais fortes. Mas, ao manifestar a sua reserva em relação ao “pedido de desculpa”, Marcelo bem intuiu que se trata de um gesto problemático. O pedido de desculpa parte de um pressuposto que, se não se cumprir, implica uma declaração de guerra: um país soberano que pede desculpa a outro coloca-o sob chantagem. Se este não aceita, se responde com o argumento do “imprescritível”, tal pedido desencadeia uma situação de hostilidade, também ela irreparável. E, no entanto, nenhum verdadeiro pedido de desculpa pode ter um carácter impositivo e não admitir resposta negativa, sob pena de acrescentar um outro dano àqueles que pretende reparar.
https://www.publico.pt/2024/05/10/culturaipsilon/cronica/jornalismo-extincao-2089557
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