* Viriato Soromenho-Marques
(Diário de Notícias 11 maio 2024)
Quando em 1968 as forças do Vietname
do Norte e da guerrilha Vietcongue iniciaram a sua poderosa Ofensiva do Tet,
contra as tropas de Saigão e dos EUA, tinha eu acabado de completar 10 anos.
Lembro-me, vivamente, de como, apesar
da censura, o trabalho dos repórteres ocidentais revelava cruamente, em imagens
ainda hoje icónicas (como a da execução, à queima-roupa, de um prisioneiro
comunista), a brutalidade da guerra. Nos lares de meio mundo, era possível ver
as baixas e o sofrimento dos militares vindos das grandes cidades e do
recôndito rural dos EUA. Nessa altura, a expressão “quarto poder” não era um
exagero retórico, como o Caso Watergate o voltaria a provar em 1972. Contudo,
os poderes que contam - o dinheiro e o seu braço político - aprenderam a
prevenir, com mais ou menos sofisticação, essa liberdade capaz de manifestar a
exuberância nua dos factos.
Sem o poder da imprensa livre, a
Guerra do Vietname teria continuado e Nixon completaria tranquilamente o seu
mandato.
Pouco antes da Ofensiva do Tet, a
filósofa Hannah Arendt publicou na revista New Yorker um presciente ensaio
intitulado Verdade e Política. Arendt salienta que o poder político tem uma
incompatibilidade radical com a mais elementar manifestação da verdade, aquela
que se limita a relatar e situar os acontecimentos nas coordenadas do espaço e
do tempo: a verdade factual. A filósofa identifica até um conjunto de
profissões e papéis sociais cuja essência consiste em testemunhar e defender a
objetividade factual, correndo os seus praticantes o risco de ficarem sozinhos,
ocupando “um ponto de vista fora do campo político”. O filósofo, o cientista, o
artista, o historiador imparcial, o juiz, a testemunha e o repórter são, para
ela, protagonistas de diferentes formas de dizer e defender a verdade factual.
Os factos suscitam opiniões e
interpretações, mas não se confundem com elas. O conteúdo absoluto e único dos
factos, é, contudo, muito frágil. Depende de validação, como ocorre nas
testemunhas oculares de um crime chamadas a tribunal. Um exemplo: podem existir
várias e contraditórias interpretações sobre as causas da I Guerra Mundial, mas
nenhum revisionismo histórico pode anular a verdade factual absoluta de que a 4
de agosto de 1914, foi a Alemanha que invadiu a Bélgica e não o contrário.
A verdade factual está hoje em perigo por toda a parte. As democracias liberais, em recuo, cada vez mais subordinadas a interesses financeiros globais, não escapam à vontade de selecionar apenas os “factos” que satisfaçam as interpretações convenientes. A precariedade crescente da comunicação social torna-a mais vulnerável e menos independente. O assassinato deliberado de jornalistas em Gaza, pelo Exército israelita, mostra como até democracias podem ultrapassar a rudeza das autocracias.Em contracorrente, o jornalista Bruno Amaral de Carvalho publicou um livro singular: A Guerra a Leste. 8 Meses no Donbass, Caminho. Ele ousou mostrar as vozes e os rostos, as vítimas, as pessoas de carne e osso, do outro lado da Guerra da Ucrânia. Começou a conhecer o Donbass, em 2018, quando o ataque do Governo de Kiev à sua população a leste, silenciado no Ocidente, provocava a fuga de refugiados para a Rússia. A invasão de 2022 tem atrás de si uma série causal que só os factos ajudam a compreender. São um sinal de esperança, os verdadeiros repórteres que preferem arriscar testemunhar os factos, recusando serem meros repetidores de interpretações prontas a usar.
https://www.dn.pt/6555146601/a-batalha-pela-verdade-factual/
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