OPINIÃO
29 maio 2024
A empresa dona dos hipermercados
Continente, a Sonae, anunciou em março que o ano passado obteve um lucro de 357
milhões de euros. A semana passada publicitou que este ano, nos primeiros três
meses, já soma 25 milhões de euros em lucros, um pouco melhor que em igual
período de 2023.
O Jornal de Notícias de quarta-feira
passada explicou que em 2021 o trabalhador (a empresa trata-o, num comunicado,
por “colaborador”, mas parece, pelo relato que se segue, que ele trabalhava
mais e colaborava menos) meteu a farda de trabalho num saco de plástico para a
levar quando se preparava para sair. Foi retido e confrontaram-no com a
acusação de roubo do dito saco de plástico. O trabalhador devolveu o saco de
plástico, que custou à empresa 2 cêntimos, e saiu.
O Continente, porém, achou que o caso
não devia acabar aqui: decretou uma suspensão de 15 dias ao trabalhador, a
perda de 15 dias de antiguidade e a cassação de metade do salário de um mês: os
tais 365,7 euros. Note-se que este “colaborador” trabalhava há imensos anos no
Continente, tinha a classificação de “operador especializado” e auferia um
salário de 735 euros, apenas mais 70 euros que o salário mínimo nacional de
2021.
O trabalhador não colaborou na sua
própria punição e recorreu, inconformado, para o Tribunal de Sintra. Pois o
douto juiz (ou juíza, não sei) que analisou o caso achou que a punição imposta
ao trabalhador era “proporcional, adequada e necessária”.
O trabalhador continuou a não colaborar e
recorreu para a Relação. Desta vez o tribunal achou que “roubar” meio salário a
um homem por ele ter “roubado” um saco de 2 cêntimos nada tinha de
proporcional, adequado ou necessário e mandou o Continente reverter a decisão e
pagar o que devia ao seu empregado.
Depois foi o Continente a recorrer
para o Supremo, onde perdeu em toda a linha - só que, entretanto, passaram-se
três anos e, imagino, o ambiente para aquele trabalhador, que entretanto se
reformou, deve ter sido bem difícil.
Num comunicado que o Continente
emitiu depois da notícia ser conhecida é dito que esse “colaborador” trabalhou
23 anos na empresa, que teve “outros processos” sublinhando que, neste caso do
saco de plástico, o primeiro tribunal e o Ministério Público, na Relação e no
Supremo, deram razão ao hipermercado - assim como quem insinua: “Nós não
estamos malucos, até houve vários magistrados do nosso lado.”
E aqui está o ponto onde queria
chegar: como é possível tantos doutos e respeitáveis togados acharem razoável,
ou, melhor, acharem “proporcional, adequada e necessária” uma suspensão de 15
dias e a apreensão de metade de um salário por causa da porcaria de um saco de
plástico de dois cêntimos?
Como é evidente, não há aqui uma
questão técnico-jurídica que impelisse, sem apelo nem agravo, uma decisão
favorável à impudência do Continente, pois quer o Tribunal da Relação quer o
Supremo Tribunal encontraram os fundamentos jurídicos para dar razão ao
trabalhador.
Como também é evidente, as posições
que estes juízes e procuradores da República tomaram basearam-se sobretudo na
convicção que formaram sobre a credibilidade dos testemunhos que ouviram, dos
factos que apuraram e do discernimento ideológico com que traduzem o mundo nas
suas inteligências.
Há, parece-me, uma geração de
magistrados que, à partida, está mentalmente disponível para acreditar mais num
administrador ou num diretor de Recursos Humanos de uma grande empresa do que
num trabalhador que ganha pouco mais do que o salário mínimo.
Há uma geração de magistrados que
acha “proporcional, adequado e necessário” o livre arbítrio com que as grandes
empresas andam a tratar os trabalhadores “menores”. Dá ideia que, desde que não
os espanquem, quase tudo é aceitável para meter essa “escumalha na ordem”.
Há uma geração de magistrados que,
claramente, foi educada num preconceito de classe, no fiel respeitinho pelo
grande “empreendedor” (para os pequenos empresários a coisa fia mais fino) e na
preconceituosa desconfiança para com o “colaborador”.
Quando essa geração de magistrados
for maioritária nos Tribunais da Relação e no Supremo, trabalhadores que tentem
levar do Continente, sem pagar, um saco de plástico de dois cêntimos só podem
esperar um veredicto: “Olho na rua! A bem da Nação.”
https://www.dn.pt/7410947079/os-tribunais-estao-mesmo-loucos/
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