quarta-feira, 29 de maio de 2024

Pedro Tadeu - Os tribunais estão mesmo loucos?

 * Pedro Tadeu, Jornalista

OPINIÃO 

29 maio 2024  

A empresa dona dos hipermercados Continente, a Sonae, anunciou em março que o ano passado obteve um lucro de 357 milhões de euros. A semana passada publicitou que este ano, nos primeiros três meses, já soma 25 milhões de euros em lucros, um pouco melhor que em igual período de 2023.

 Esta fantástica contabilidade do grupo liderado por Cláudia Azevedo é capaz de ter de sofrer uma retificação em baixa pois o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o Continente terá de devolver a um funcionário do hipermercado a quantia de 365,7 euros que reteve do salário desse homem.

O Jornal de Notícias de quarta-feira passada explicou que em 2021 o trabalhador (a empresa trata-o, num comunicado, por “colaborador”, mas parece, pelo relato que se segue, que ele trabalhava mais e colaborava menos) meteu a farda de trabalho num saco de plástico para a levar quando se preparava para sair. Foi retido e confrontaram-no com a acusação de roubo do dito saco de plástico. O trabalhador devolveu o saco de plástico, que custou à empresa 2 cêntimos, e saiu.

O Continente, porém, achou que o caso não devia acabar aqui: decretou uma suspensão de 15 dias ao trabalhador, a perda de 15 dias de antiguidade e a cassação de metade do salário de um mês: os tais 365,7 euros. Note-se que este “colaborador” trabalhava há imensos anos no Continente, tinha a classificação de “operador especializado” e auferia um salário de 735 euros, apenas mais 70 euros que o salário mínimo nacional de 2021.

O trabalhador não colaborou na sua própria punição e recorreu, inconformado, para o Tribunal de Sintra. Pois o douto juiz (ou juíza, não sei) que analisou o caso achou que a punição imposta ao trabalhador era “proporcional, adequada e necessária”.

 O trabalhador continuou a não colaborar e recorreu para a Relação. Desta vez o tribunal achou que “roubar” meio salário a um homem por ele ter “roubado” um saco de 2 cêntimos nada tinha de proporcional, adequado ou necessário e mandou o Continente reverter a decisão e pagar o que devia ao seu empregado.

Depois foi o Continente a recorrer para o Supremo, onde perdeu em toda a linha - só que, entretanto, passaram-se três anos e, imagino, o ambiente para aquele trabalhador, que entretanto se reformou, deve ter sido bem difícil.

Num comunicado que o Continente emitiu depois da notícia ser conhecida é dito que esse “colaborador” trabalhou 23 anos na empresa, que teve “outros processos” sublinhando que, neste caso do saco de plástico, o primeiro tribunal e o Ministério Público, na Relação e no Supremo, deram razão ao hipermercado - assim como quem insinua: “Nós não estamos malucos, até houve vários magistrados do nosso lado.”

E aqui está o ponto onde queria chegar: como é possível tantos doutos e respeitáveis togados acharem razoável, ou, melhor, acharem “proporcional, adequada e necessária” uma suspensão de 15 dias e a apreensão de metade de um salário por causa da porcaria de um saco de plástico de dois cêntimos?

Como é evidente, não há aqui uma questão técnico-jurídica que impelisse, sem apelo nem agravo, uma decisão favorável à impudência do Continente, pois quer o Tribunal da Relação quer o Supremo Tribunal encontraram os fundamentos jurídicos para dar razão ao trabalhador.

Como também é evidente, as posições que estes juízes e procuradores da República tomaram basearam-se sobretudo na convicção que formaram sobre a credibilidade dos testemunhos que ouviram, dos factos que apuraram e do discernimento ideológico com que traduzem o mundo nas suas inteligências.

Há, parece-me, uma geração de magistrados que, à partida, está mentalmente disponível para acreditar mais num administrador ou num diretor de Recursos Humanos de uma grande empresa do que num trabalhador que ganha pouco mais do que o salário mínimo.

Há uma geração de magistrados que acha “proporcional, adequado e necessário” o livre arbítrio com que as grandes empresas andam a tratar os trabalhadores “menores”. Dá ideia que, desde que não os espanquem, quase tudo é aceitável para meter essa “escumalha na ordem”.

Há uma geração de magistrados que, claramente, foi educada num preconceito de classe, no fiel respeitinho pelo grande “empreendedor” (para os pequenos empresários a coisa fia mais fino) e na preconceituosa desconfiança para com o “colaborador”.

Quando essa geração de magistrados for maioritária nos Tribunais da Relação e no Supremo, trabalhadores que tentem levar do Continente, sem pagar, um saco de plástico de dois cêntimos só podem esperar um veredicto: “Olho na rua! A bem da Nação.”

https://www.dn.pt/7410947079/os-tribunais-estao-mesmo-loucos/

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