* Agostinho Lopes
Membro da Comissão Central de
Controlo do PCP e responsável pela Comissão para os Assuntos Económicos
Os mitos e os símbolos só são
perigosos e alienantes quando perdemos de vista o contexto histórico objectivo
da sua construção e se transformam naquilo que não podem/devem ser: substitutos
da acção, do combate, da luta de homens e mulheres por um mundo melhor, sem
guerras nem exploração
27 MAIO 2024 18:31
As narrativas em torno de Catarina
Eufémia sucedem-se desde o 25 de Abril na comunicação social e na edição (1).
Até esta data Catarina era apenas uma referência no Avante! e noutras
publicações do PCP (2). Depois da Revolução, em geral está presente uma
persistente dimensão do anticomunismo em tudo o que se foi produzindo: a
ocultação ou instrumentalização da «personalidade» para invectivar/atacar o
PCP. Um anticomunismo latente ou patente que não tem sossego!
A tese é simples (ou simplória):
alguém que foi herói, artista destacado, escritor, personalidade multifacetada
que se destacou pelos seus méritos, comportamentos heróicos, obra humana ao
serviço da sociedade, luta de resistência ou combate à opressão, exploração,
humilhação da sua classe ou semelhantes, não pode ser comunista! Ou estava
enganado na sua ingenuidade ou ignorância, ou o Partido o enganou, ou nunca
perfilhou o ideário comunista, ou tinha/participava em actividades do PCP mas
era sem saber, ou era mas depois deixou de ser, etc., etc... são muitas as
possibilidades! E quando não há mais nada a fazer, então faz-se uma coisa mais
simples: nega-se a sua condição de comunista ou membro do Partido, ou
proximidade do Partido. Ocultando essa sua condição. Eliminando-a da biografia.
Descobrindo divergências, zangas, confrontos entre a personalidade e o PCP.
Então se arranjar declarações, mesmo confusas, duvidosas, … de familiares ou
amigos, ou vizinhos, é ouro sobre azul!
A falta de seriedade relativamente a
membros do Partido durante a ditadura, ou no mínimo alguma razoabilidade,
deveria levar a reflectir quais os critérios e testemunhos adequados,
consistentes, para se concluir se alguém era ou não membro do PCP, quando este
e os seus militantes viviam numa rigorosa clandestinidade! E não a sua selecção
e instrumentalização ao serviço das teses que se pretende exibir. Dir-se-ia que
alguns gostariam que se exibisse um cartão, provavelmente com foto, para
comprovar a filiação comunista. Ou então validar a pertença ao PCP por
declaração em papel selado com selo branco da PIDE! Será que desconhecem que
numerosos membros do Partido, pela sua situação partidária ou como resistência
à arbitrariedade da prisão pela polícia, se recusavam a confessar pertencer ao
PCP? Basta que algum familiar diga que não era militante, passado décadas, para
não o ser? Desconhecem que, salvo situações extraordinárias, a condição de
militante era salvaguardada inclusive dentro da família e familiares próximos,
até para defesa destes? E como é que distinguem entre a credibilidade do
testemunho de amigos/vizinhos/companheiros de trabalho se uns dizem que sim e
outros dizem que não, ou ainda outros que não sabem? Ou acham que os nomes de
uma célula local ou de empresa era conhecida de toda a gente, mesmo de todos os
que a integravam? Será de perguntar talvez através de lista afixada na Junta de
Freguesia! Seria, como pretende Felícia Cabrita na sua peça: “O homem (marido
da Catarina) mantém a mesma fidelidade ao partido e passa a ter como aliada a
companheira que, ao contrário do mito que em torno dela se edificou, nunca
chegou a ser militante. Era mais uma comunista platónica.” (3) Platónica,
como?, se a mesma jornalista constata que ela desempenhava um trabalho político
de distribuição de panfletos? Se é visível dos testemunhos que recolhe o seu
papel de agitadora junto de companheiras, e mesmo de dirigente quando encabeça
o protesto que a leva à morte, assassinada pelo Carrajola? Se há outros
testemunhos de companheiras de trabalho que referem inclusive uma iniciativa de
recolha de fundos para o camarada Francisco
Miguel preso em Peniche? No filme
“Seara Vermelha” da RTP1, para lá de se “esquecerem” que o movimento do grupo
de mulheres encabeçado por Catarina é em si mesmo a presença do trabalho do PCP
e da sua Célula Local de Baleizão, insistem na tese da falta de provas da
filiação partidária de Catarina. Primeiro vem o depoimento salomónico de
Pacheco Pereira: “Era militante do Partido Comunista ou não era? Se me
perguntarem eu digo sim e não. A imagem tornou-se um símbolo e o Partido
Comunista usa essa imagem de forma simbólica. Mas os esquerdistas depois também
fizeram isso.” Depois o narrador consolida a tese: “Não existem provas
inequívocas (o que serão num caso destes, provas inequívocas?) da ligação
directa de Catarina ao Partido Comunista. Há dúvidas e incertezas, mas numa
região onde o Partido dominava a partir da clandestinidade tornam-se naturais e
particularmente relevantes alguns gestos e comportamentos.” E é claro que o
narrador afirma tal para desvalorizar/anular a “prova” que fazem as declarações
da filha de Catarina (Maria Catarina Baleizão do Carmo) – que se seguem no
documentário – ao dizer que tem na memória imagens da mãe a “distribuir
panfletos”!
Mas há o testemunho inevitável e
irrecusável e inequívoco de António Gervásio, funcionário do PCP na região,
deslocado logo após o assassinato para o distrito de Beja: “ Há gente que não
gosta do PCP e procura negar que Catarina fosse militante do PCP. É necessário
dar luta a essas mentiras. Catarina Eufémia era não só militante desde 1953,
como era membro do Comité Local de Baleizão do PCP e um dos seus membros mais
activos.” E também testemunhos de camaradas da Célula de Baleizão de Catarina,
e que com ela participaram no protesto, como Francisca Bia. (4)
Pode alguém pensar ser o caso de
Catarina uma excepcão, um acaso? Não pode, são peças numerosas e significativas
de um anticomunismo militante que não tem hora nem descanso... como o licranço!
Sempre pronto a ferrar o dente... A lista é numerosa... e não terá fim enquanto
por cá andar o PCP. Lembremos o caso recente de Maria Lamas – “a mulher
portuguesa mais importante do século XX” aqui no Expresso recordado há meses
(5), poderíamos lembrar Bento de Jesus Caraça, ou mesmo mais recentemente o de
Saramago. Mas será também de não esquecer o exemplar caso de Carlos Paredes nas
notícias da sua morte, que perfaz 20 anos no próximo dia 23 de Julho.
CATARINA EUFÉMIA E OS MITOS
Outra via para destruir o essencial
de qualquer correcta narração histórica e a sua articulação com a luta do PCP e
o PCP é através da transformação/transfiguração em mito de um
acontecimento/acontecimentos que marca, ou é marcado por uma personalidade, dissolvendo
nesse processo a heroína/herói (em geral responsabilizando o PCP por tal…) É o
que surge também nas três abordagens já referidas (1), em que se chega a
escrever: “Baleizão é uma espécie de Cova da Iria. E Catarina o mito “mariano”
dos sem-terra do Alentejo.”
Mas o problema não é o do “mito”
criado em torno de Catarina – seria natural que um acontecimento com a sua
valência histórica e exemplar na luta antifascista, pela sua envoltura
dramática e colhido pela poesia e a música de poetas e cantores, acabasse por
impulsionar essas narrativas que inevitavelmente arrastariam o PCP de forma
mais ou menos correcta… O problema é apenas a sua instrumentalização e
sobreposição à história dos acontecimentos, com o objectivo de socavar o papel
do PCP no processo histórico da luta, esvaí-lo do seu sangue revolucionário,
confrontar mesmo o PCP com a multiplicação de variantes mais ou menos
fantasiosas, e se possível afastar a “heroína/herói” da história da luta do
PCP. Neste caso, negar Catarina ao PCP, negar Catarina à luta que o PCP
organizava e impulsionava no Alentejo contra o latifúndio e a ditadura
fascista.
Os “mitos” (símbolos) são uma
invariância no reino da necessidade das sociedades humanas de todos os tempos,
ou pelo menos das que têm um tempo histórico conhecido. Inclusive, nos dias
conturbados que são os nossos. Na religião. Na política. Na cultura. No
desporto. E etc... O homem/mulher continua a não (conseguir) viver sem
mitos/símbolos. E qualquer leitura simplista ou redutora, racista ou xenófoba,
(a)histórica ou (a)cultural, ou mesmo interesseira/mesquinha perderá a enorme
riqueza humana que eles contêm. A imensa humanidade que representam,
construídos que são sobre a fome e a sede, a opressão e a injustiça, a doença e
a dor, o medo e o terror perante o ignoto, dos homens e mulheres no seu lento,
longo, complexo caminhar até hoje. Mesmo quando são coisas alienantes e
alienadas visões da história, da sociedade, da realidade.
Catarina Eufémia foi (e ainda é) um
desses mitos/símbolos que alimentaram muitos anos de combate à ditadura
fascista, na esperança da revolução que trouxesse o pão, a paz e a liberdade a
Portugal inteiro, e não só aos alentejanos. Como todos os mitos/símbolos que
revestiram o corpo de um homem/mulher, real ou inventado, foi no processo de
“construção” descarnado do seu concreto ser e viver humano, transfigurado e
exaltado de forma quase exclusiva, na sua dimensão mítica, de símbolo político
da luta do povo alentejano contra o latifúndio. A pouca “carne”/vida concreta
que transporta procura assegurar a sua existência real, verdadeira.
É assim de pouco interesse saber hoje
(como acontece com alguns escritos anti-PCP ) de muitos dos pormenores, claros
e escuros, em que mergulham por vezes a história da vida e morte de Catarina. O
crime não é mais ou menos hediondo, não se reduz ou aumenta a dimensão heróica
da sua figura. (E isto sem desvalorizar todo o aprofundamento do estudo
histórico dos dramáticos acontecimentos que deve continuar a ser feito). Ela
era uma pobre trabalhadora rural explorada pelo latifúndio. Ela resistiu e foi
morta. E assim se transformou em símbolo/mito dos comunistas e do seu Partido.
Que animaram essa luta heróica de resistência à fome, desemprego, exploração
dos latifundiários. Que tinham na Ditadura o poder político que os defendia e
que era sua emanação.
Os poetas são fervorosos construtores
de mitos e símbolos. Leiam-se os poemas de Sofia e Ary e compreendemos toda a
humanidade presente em Catarina, camponesa assassinada em Baleizão a 19 de Maio
de 1954. Para não falar da canção de Zeca Afonso construída sobre um poema de
Vicente Campinas. E faltam muitos e muitas a esta curta lista.
Os mitos e os símbolos só são
perigosos e alienantes quando perdemos de vista o contexto histórico objectivo
da sua construção (mesmo quando não conseguimos a sua integral racionalização)
e se transformam naquilo que não podem/devem ser: substitutos da acção, do
combate, da luta de homens e mulheres por um mundo melhor, sem guerras nem
exploração. Se o mito não ilude, perturba, apaga o grito presente no último
verso de Sofia para Catarina: “E a busca da Justiça continua”.
(1) Para este texto tenho apenas em
consideração as “narrativas” de três abordagens: (i) “Como morreu a ceifeira
que ficou na história”, Felícia Cabrita, SOL, 25ABR24; (ii) “Chamava-se
Baleizão, Catarina Eufémia”, Paulo Barriga, Público, 19MAI24; e (iii) “Seara
Vermelha”, documentário, José Manuel Portugal, RTP1, 17MAI24. Sendo diferentes
nos formatos e ângulos de análise, têm todos marcas do que criticamente
referimos no artigo: anticomunismo. No mínimo a tentativa de contrapor o
discurso do PCP às palavras de familiares e gente que foi próxima de Catarina,
mesmo que o texto de Felícia Cabrita o exiba de uma forma despudorada e
acintosa.
(2) A peça de Felícia Cabrita exibe
na página 11, numa fotografia intitulada “Recortes Imprensa/Regional”, quatro
fac-smiles de notícias de jornais sem verificar que são todos recortes de n.ºs
do Avante! clandestino!
(3) Página 4 do artigo de Felícia
Cabrita atrás referido.
(4) “À memória de Catarina Eufémia,
Militante Comunista Alentejana”, de António Gervásio, no livro Catarina de
Baleizão, 50 anos depois da morte, Coordenação de João Honrado, Cooperativa
Cultural Alentejana, 2004. Ver também neste livro os testemunhos de duas
companheiras de Catarina: Antónia da Graça Leandro e Mariana Cascalheira.
(5) “Ocultação”, Expresso online,
09FEV24, Agostinho Lopes.
(6) Neste caso um jornal diário,
Público de 24JUL04, em seis páginas e um Editorial sobre Carlos Paredes (ainda
o jornal era publicado no formato “Tabloide”) as únicas vezes em que se refere
PCP é no fim da peça “Depoimentos”, citando cinco curtas linhas do Comunicado
de Secretariado do CC: “A morte de Carlos Paredes constitui uma grande perda
para a arte e cultura portuguesa e também para o PCP, do qual era membro desde
1958 e militante generoso até ao fim da sua vida activa”, e na sua biografia:
“1958 – É preso pela PIDE – DGS (a polícia política do Estado Novo) sob a
acusação de pertencer ao Partido Comunista Português – de que de facto era
militante, vindo a ser libertado no final de 1959”. Foram escritos importantes
textos de Eduardo Lourenço, Manuel Alegre e Vasco Graça Moura, mas nenhum de
qualquer personalidade da área do PCP – não devia haver nenhum! Um Editorial em
que não se faz qualquer referência ao seu Partido, o PCP. E pior, no artigo
central conseguiram mesmo insultar o seu Partido e o próprio artista: “Carlos
Paredes fez da música e da guitarra portuguesa a sua vida. À esquerda e à
direita (como???), a “inteligentsia” reivindicava-o como herói da sua causa.
Foi vê-lo (a ele e a outros) actuar de graça por esse país fora no rodopio do
25 de Abril, a cantar a “liberdade” e a “justiça” em nome de partidos com
poucos escrúpulos. Estava encontrado com despesas reduzidas de manutenção, o
embaixador do nosso fado e dos valores tradicionais ou o “porta-voz” das
classes desfavorecidas na luta pelos amanhãs que cantam, conforme o exigiam a
ocasião e os interesses em causa. Ele existia e tocava, tocava sempre, e isso
bastava-lhe”. Não, nunca bastou a Carlos Paredes… que toda a vida percebeu bem
a luta e a vida do seu povo e a ela entregou parte importante da sua vida!
Parte desta Nota são do artigo “Na morte de um comunista – Máscaras do
Anticomunismo”, Agostinho Lopes, Avante!, 29JUL04.
27 Maio 2024
https://expresso.pt/opiniao/2024-05-27-catarina-mito-e-historia--dimensoes-do-anticomunismo-955c7d85
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