segunda-feira, 27 de maio de 2024

Agostinho Lopes - Catarina, mito e história – dimensões do anticomunismo

 


OPINIÃO

* Agostinho Lopes

Membro da Comissão Central de Controlo do PCP e responsável pela Comissão para os Assuntos Económicos

Os mitos e os símbolos só são perigosos e alienantes quando perdemos de vista o contexto histórico objectivo da sua construção e se transformam naquilo que não podem/devem ser: substitutos da acção, do combate, da luta de homens e mulheres por um mundo melhor, sem guerras nem exploração

27 MAIO 2024 18:31

As narrativas em torno de Catarina Eufémia sucedem-se desde o 25 de Abril na comunicação social e na edição (1). Até esta data Catarina era apenas uma referência no Avante! e noutras publicações do PCP (2). Depois da Revolução, em geral está presente uma persistente dimensão do anticomunismo em tudo o que se foi produzindo: a ocultação ou instrumentalização da «personalidade» para invectivar/atacar o PCP. Um anticomunismo latente ou patente que não tem sossego!

A tese é simples (ou simplória): alguém que foi herói, artista destacado, escritor, personalidade multifacetada que se destacou pelos seus méritos, comportamentos heróicos, obra humana ao serviço da sociedade, luta de resistência ou combate à opressão, exploração, humilhação da sua classe ou semelhantes, não pode ser comunista! Ou estava enganado na sua ingenuidade ou ignorância, ou o Partido o enganou, ou nunca perfilhou o ideário comunista, ou tinha/participava em actividades do PCP mas era sem saber, ou era mas depois deixou de ser, etc., etc... são muitas as possibilidades! E quando não há mais nada a fazer, então faz-se uma coisa mais simples: nega-se a sua condição de comunista ou membro do Partido, ou proximidade do Partido. Ocultando essa sua condição. Eliminando-a da biografia. Descobrindo divergências, zangas, confrontos entre a personalidade e o PCP. Então se arranjar declarações, mesmo confusas, duvidosas, … de familiares ou amigos, ou vizinhos, é ouro sobre azul!

A falta de seriedade relativamente a membros do Partido durante a ditadura, ou no mínimo alguma razoabilidade, deveria levar a reflectir quais os critérios e testemunhos adequados, consistentes, para se concluir se alguém era ou não membro do PCP, quando este e os seus militantes viviam numa rigorosa clandestinidade! E não a sua selecção e instrumentalização ao serviço das teses que se pretende exibir. Dir-se-ia que alguns gostariam que se exibisse um cartão, provavelmente com foto, para comprovar a filiação comunista. Ou então validar a pertença ao PCP por declaração em papel selado com selo branco da PIDE! Será que desconhecem que numerosos membros do Partido, pela sua situação partidária ou como resistência à arbitrariedade da prisão pela polícia, se recusavam a confessar pertencer ao PCP? Basta que algum familiar diga que não era militante, passado décadas, para não o ser? Desconhecem que, salvo situações extraordinárias, a condição de militante era salvaguardada inclusive dentro da família e familiares próximos, até para defesa destes? E como é que distinguem entre a credibilidade do testemunho de amigos/vizinhos/companheiros de trabalho se uns dizem que sim e outros dizem que não, ou ainda outros que não sabem? Ou acham que os nomes de uma célula local ou de empresa era conhecida de toda a gente, mesmo de todos os que a integravam? Será de perguntar talvez através de lista afixada na Junta de Freguesia! Seria, como pretende Felícia Cabrita na sua peça: “O homem (marido da Catarina) mantém a mesma fidelidade ao partido e passa a ter como aliada a companheira que, ao contrário do mito que em torno dela se edificou, nunca chegou a ser militante. Era mais uma comunista platónica.” (3) Platónica, como?, se a mesma jornalista constata que ela desempenhava um trabalho político de distribuição de panfletos? Se é visível dos testemunhos que recolhe o seu papel de agitadora junto de companheiras, e mesmo de dirigente quando encabeça o protesto que a leva à morte, assassinada pelo Carrajola? Se há outros testemunhos de companheiras de trabalho que referem inclusive uma iniciativa de recolha de fundos para o camarada Francisco

Miguel preso em Peniche? No filme “Seara Vermelha” da RTP1, para lá de se “esquecerem” que o movimento do grupo de mulheres encabeçado por Catarina é em si mesmo a presença do trabalho do PCP e da sua Célula Local de Baleizão, insistem na tese da falta de provas da filiação partidária de Catarina. Primeiro vem o depoimento salomónico de Pacheco Pereira: “Era militante do Partido Comunista ou não era? Se me perguntarem eu digo sim e não. A imagem tornou-se um símbolo e o Partido Comunista usa essa imagem de forma simbólica. Mas os esquerdistas depois também fizeram isso.” Depois o narrador consolida a tese: “Não existem provas inequívocas (o que serão num caso destes, provas inequívocas?) da ligação directa de Catarina ao Partido Comunista. Há dúvidas e incertezas, mas numa região onde o Partido dominava a partir da clandestinidade tornam-se naturais e particularmente relevantes alguns gestos e comportamentos.” E é claro que o narrador afirma tal para desvalorizar/anular a “prova” que fazem as declarações da filha de Catarina (Maria Catarina Baleizão do Carmo) – que se seguem no documentário – ao dizer que tem na memória imagens da mãe a “distribuir panfletos”!

Mas há o testemunho inevitável e irrecusável e inequívoco de António Gervásio, funcionário do PCP na região, deslocado logo após o assassinato para o distrito de Beja: “ Há gente que não gosta do PCP e procura negar que Catarina fosse militante do PCP. É necessário dar luta a essas mentiras. Catarina Eufémia era não só militante desde 1953, como era membro do Comité Local de Baleizão do PCP e um dos seus membros mais activos.” E também testemunhos de camaradas da Célula de Baleizão de Catarina, e que com ela participaram no protesto, como Francisca Bia. (4)

Pode alguém pensar ser o caso de Catarina uma excepcão, um acaso? Não pode, são peças numerosas e significativas de um anticomunismo militante que não tem hora nem descanso... como o licranço! Sempre pronto a ferrar o dente... A lista é numerosa... e não terá fim enquanto por cá andar o PCP. Lembremos o caso recente de Maria Lamas – “a mulher portuguesa mais importante do século XX” aqui no Expresso recordado há meses (5), poderíamos lembrar Bento de Jesus Caraça, ou mesmo mais recentemente o de Saramago. Mas será também de não esquecer o exemplar caso de Carlos Paredes nas notícias da sua morte, que perfaz 20 anos no próximo dia 23 de Julho.

CATARINA EUFÉMIA E OS MITOS

Outra via para destruir o essencial de qualquer correcta narração histórica e a sua articulação com a luta do PCP e o PCP é através da transformação/transfiguração em mito de um acontecimento/acontecimentos que marca, ou é marcado por uma personalidade, dissolvendo nesse processo a heroína/herói (em geral responsabilizando o PCP por tal…) É o que surge também nas três abordagens já referidas (1), em que se chega a escrever: “Baleizão é uma espécie de Cova da Iria. E Catarina o mito “mariano” dos sem-terra do Alentejo.”

Mas o problema não é o do “mito” criado em torno de Catarina – seria natural que um acontecimento com a sua valência histórica e exemplar na luta antifascista, pela sua envoltura dramática e colhido pela poesia e a música de poetas e cantores, acabasse por impulsionar essas narrativas que inevitavelmente arrastariam o PCP de forma mais ou menos correcta… O problema é apenas a sua instrumentalização e sobreposição à história dos acontecimentos, com o objectivo de socavar o papel do PCP no processo histórico da luta, esvaí-lo do seu sangue revolucionário, confrontar mesmo o PCP com a multiplicação de variantes mais ou menos fantasiosas, e se possível afastar a “heroína/herói” da história da luta do PCP. Neste caso, negar Catarina ao PCP, negar Catarina à luta que o PCP organizava e impulsionava no Alentejo contra o latifúndio e a ditadura fascista.

Os “mitos” (símbolos) são uma invariância no reino da necessidade das sociedades humanas de todos os tempos, ou pelo menos das que têm um tempo histórico conhecido. Inclusive, nos dias conturbados que são os nossos. Na religião. Na política. Na cultura. No desporto. E etc... O homem/mulher continua a não (conseguir) viver sem mitos/símbolos. E qualquer leitura simplista ou redutora, racista ou xenófoba, (a)histórica ou (a)cultural, ou mesmo interesseira/mesquinha perderá a enorme riqueza humana que eles contêm. A imensa humanidade que representam, construídos que são sobre a fome e a sede, a opressão e a injustiça, a doença e a dor, o medo e o terror perante o ignoto, dos homens e mulheres no seu lento, longo, complexo caminhar até hoje. Mesmo quando são coisas alienantes e alienadas visões da história, da sociedade, da realidade.

Catarina Eufémia foi (e ainda é) um desses mitos/símbolos que alimentaram muitos anos de combate à ditadura fascista, na esperança da revolução que trouxesse o pão, a paz e a liberdade a Portugal inteiro, e não só aos alentejanos. Como todos os mitos/símbolos que revestiram o corpo de um homem/mulher, real ou inventado, foi no processo de “construção” descarnado do seu concreto ser e viver humano, transfigurado e exaltado de forma quase exclusiva, na sua dimensão mítica, de símbolo político da luta do povo alentejano contra o latifúndio. A pouca “carne”/vida concreta que transporta procura assegurar a sua existência real, verdadeira.

É assim de pouco interesse saber hoje (como acontece com alguns escritos anti-PCP ) de muitos dos pormenores, claros e escuros, em que mergulham por vezes a história da vida e morte de Catarina. O crime não é mais ou menos hediondo, não se reduz ou aumenta a dimensão heróica da sua figura. (E isto sem desvalorizar todo o aprofundamento do estudo histórico dos dramáticos acontecimentos que deve continuar a ser feito). Ela era uma pobre trabalhadora rural explorada pelo latifúndio. Ela resistiu e foi morta. E assim se transformou em símbolo/mito dos comunistas e do seu Partido. Que animaram essa luta heróica de resistência à fome, desemprego, exploração dos latifundiários. Que tinham na Ditadura o poder político que os defendia e que era sua emanação.

Os poetas são fervorosos construtores de mitos e símbolos. Leiam-se os poemas de Sofia e Ary e compreendemos toda a humanidade presente em Catarina, camponesa assassinada em Baleizão a 19 de Maio de 1954. Para não falar da canção de Zeca Afonso construída sobre um poema de Vicente Campinas. E faltam muitos e muitas a esta curta lista.

Os mitos e os símbolos só são perigosos e alienantes quando perdemos de vista o contexto histórico objectivo da sua construção (mesmo quando não conseguimos a sua integral racionalização) e se transformam naquilo que não podem/devem ser: substitutos da acção, do combate, da luta de homens e mulheres por um mundo melhor, sem guerras nem exploração. Se o mito não ilude, perturba, apaga o grito presente no último verso de Sofia para Catarina: “E a busca da Justiça continua”.

(1) Para este texto tenho apenas em consideração as “narrativas” de três abordagens: (i) “Como morreu a ceifeira que ficou na história”, Felícia Cabrita, SOL, 25ABR24; (ii) “Chamava-se Baleizão, Catarina Eufémia”, Paulo Barriga, Público, 19MAI24; e (iii) “Seara Vermelha”, documentário, José Manuel Portugal, RTP1, 17MAI24. Sendo diferentes nos formatos e ângulos de análise, têm todos marcas do que criticamente referimos no artigo: anticomunismo. No mínimo a tentativa de contrapor o discurso do PCP às palavras de familiares e gente que foi próxima de Catarina, mesmo que o texto de Felícia Cabrita o exiba de uma forma despudorada e acintosa.

(2) A peça de Felícia Cabrita exibe na página 11, numa fotografia intitulada “Recortes Imprensa/Regional”, quatro fac-smiles de notícias de jornais sem verificar que são todos recortes de n.ºs do Avante! clandestino!

(3) Página 4 do artigo de Felícia Cabrita atrás referido.

(4) “À memória de Catarina Eufémia, Militante Comunista Alentejana”, de António Gervásio, no livro Catarina de Baleizão, 50 anos depois da morte, Coordenação de João Honrado, Cooperativa Cultural Alentejana, 2004. Ver também neste livro os testemunhos de duas companheiras de Catarina: Antónia da Graça Leandro e Mariana Cascalheira.

(5) “Ocultação”, Expresso online, 09FEV24, Agostinho Lopes.

(6) Neste caso um jornal diário, Público de 24JUL04, em seis páginas e um Editorial sobre Carlos Paredes (ainda o jornal era publicado no formato “Tabloide”) as únicas vezes em que se refere PCP é no fim da peça “Depoimentos”, citando cinco curtas linhas do Comunicado de Secretariado do CC: “A morte de Carlos Paredes constitui uma grande perda para a arte e cultura portuguesa e também para o PCP, do qual era membro desde 1958 e militante generoso até ao fim da sua vida activa”, e na sua biografia: “1958 – É preso pela PIDE – DGS (a polícia política do Estado Novo) sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista Português – de que de facto era militante, vindo a ser libertado no final de 1959”. Foram escritos importantes textos de Eduardo Lourenço, Manuel Alegre e Vasco Graça Moura, mas nenhum de qualquer personalidade da área do PCP – não devia haver nenhum! Um Editorial em que não se faz qualquer referência ao seu Partido, o PCP. E pior, no artigo central conseguiram mesmo insultar o seu Partido e o próprio artista: “Carlos Paredes fez da música e da guitarra portuguesa a sua vida. À esquerda e à direita (como???), a “inteligentsia” reivindicava-o como herói da sua causa. Foi vê-lo (a ele e a outros) actuar de graça por esse país fora no rodopio do 25 de Abril, a cantar a “liberdade” e a “justiça” em nome de partidos com poucos escrúpulos. Estava encontrado com despesas reduzidas de manutenção, o embaixador do nosso fado e dos valores tradicionais ou o “porta-voz” das classes desfavorecidas na luta pelos amanhãs que cantam, conforme o exigiam a ocasião e os interesses em causa. Ele existia e tocava, tocava sempre, e isso bastava-lhe”. Não, nunca bastou a Carlos Paredes… que toda a vida percebeu bem a luta e a vida do seu povo e a ela entregou parte importante da sua vida! Parte desta Nota são do artigo “Na morte de um comunista – Máscaras do Anticomunismo”, Agostinho Lopes, Avante!, 29JUL04.

27 Maio 2024

https://expresso.pt/opiniao/2024-05-27-catarina-mito-e-historia--dimensoes-do-anticomunismo-955c7d85

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