segunda-feira, 20 de maio de 2024

Carlos Coutinho - Genocídios, etnocídios, massacres



*  Carlos Coutinho
 

PELO menos para mim, genocídio é hoje a palavra mais indesejável no vocabulário corrente. Mas já cá está e não me parece que, nos tempos mais próximos, a possamos excluir do nosso linguajar quotidiano, porque os factos, hoje em dia, quase sempre se transformam em notícias e estas não distinguem entre ouvidos sensíveis, ouvidos hipersensíveis – meus! – e os ouvidos de mercador.

Idiossincraticamente, caibo nas três categorias, embora seja a segunda e a terceira sejam as que mais se me podem aplicar.

É verdade que nem sempre consigo discernir entre genocídio, morticínio, massacre, limpeza étnica, pogromes e outras devastações demográficas, porque estas são mais que muitas na História da Humanidade, variam de extensão e de metodologia, continuam em diversos pontos do planeta e não me parece que vão acabar tão depressa, mas genocídio, no meu entendimento, é outra coisa e, de momento, só tenho indícios de um, o que os israelitas estão a perpetrar em Gaza.

Claro que entre os sodomitas e gomorranos bíblicos – que tornaram o dilúvio em única solução aceitável por Jeová – e os governadores britânicos da Austrália – que davam um coelho ou uma galinha por cada cabeça de aborígene que lhe levassem –, as diferenças são abissais, porque o primeiro caso é lendário e o segundo é histórico, assim como entre os cruzados e os muçulmanos, ambos verdadeiros documentados, mas, como não sou historiador, nem antropólogo, nem filósofo, vejo com razoável justeza as definições triviais, tomando como categóricos casos já muito estudados, como, por exemplo, o genocídio armênio. Ou, muito antes, os pogromes russos e polacos.

Quanto ao conceito de etnocídio, a tipificação é mais discutível e apenas me aparece com nitidez naquilo que os alemães fizeram, entre 1904 e 1908, no que hoje é a Namíbia. Mataram sem qualquer engulho ou hesitação ética, por simples cumprimento do desígnio político germinado e maturado em Berlim, 65 mil hereros e 10 mil namaques.

E, “se mais houvera, mais matara”, como os colonos e os seus militares fizeram aos índios, visto eles não eram gente. Eram bichos parecidos com pessoas – como acontecia a qualquer etnia vista da varanda dos conquistadores britânicos, espanhóis, portugueses, holandeses, franceses, etc.

Uma perceção que me assalta de forma sufocante é a da evidência de que será tanto maior a crueldade, frieza e racionalidade mortífera quanto maior for o desenvolvimento espiritual, técnico, científico, artístico do povo em cena, como ressalta do que gerou Hitler, Goebbels, Goering, Menghele e outros monstros absolutos, depois de ter gerado génios como Goethe, Schiller, Irmãos Grimm, Tomas Mann, Brecht, Anne Zeller, Mozart, Beethoven, Hegel, Kant, Marks, Enghels, Gunther Grass, os grandes cientistas, os extraordinários construtores de catedrais como a de Colónia, a de Aachen ou a de Frankfurt.

Nunca fiz as contas, mas, para já, o que me parece é que o mundo que fala alemão é também o fala melhor e com mais vozes diferentes ao resto do mundo, seja com Einstein a relativizar a realidade seja com Freud a definir como realidade espessa a ficção narrativa do vómito psíquico.

Detenho-me, por exemplo, no termo genocídio, ao olhar para o mapa de Angola, com a sua Baixa do Cassange, ou subo para a Palestina e soletro os nomes das cidades mártires da Faixa de Gaza, lembro-me do arrasamento metódico da espanhola Guernica e dos dois dias de bombardeamento ininterrupto anglo-americano da alemã Dresden, que matou 22 mil civis, assim como da incineração de Hiroxima, com os seus 160 mil mortos a que se juntaram os 80 mil de Nagasaki, três dias depois.

Não me violenta a consideração de que genocídio é o “extermínio deliberado de um povo – normalmente definido por diferenças étnicas, nacionais, raciais, religiosas e, por vezes, sócio-políticas – a tal engenharia social –, no total ou em parte.

À nossa e escala e saltando por cima de todo sangue que fizemos correr pelas razões invocadas, há pelo menos três factos recentes que não devemos permitir que continuem obnubilados na nossa história. A saber:

3.8.1959 – Os marinheiros e os estivadores do porto de Bissau ao serviço da Casa Gouveia entram em greve, exigindo melhores salários e melhores condições de vida. “A PIDE, o cabo de mar e outras forças” encarregaram-se de resolver o problema, deixando no chão cerca de 100 cadáveres.

1953 – Em fevereiro, o mesmo tipo de assassinos com as mesmas obediências, mas acrescentando o envenenamento e o afogamento a sua sanha, procedem a uma limpeza que pode ter causado 132 mortos e ficou registado co mo o Massacre de Batapá.

1973 – Pelo menos 385 pessoas foram assassinadas na aldeia de Wiriyamu pela 6.ª Companhia de Comandos de Moçambique, além das que morreram na “limpeza” da zona, do local, que ocorreu nos três dias seguintes ou devido aos interrogatórios que seguiram o episódio. O massacre

As tropas portuguesas dizimaram um terço dos 1350 habitantes de cinco povoações (Wiriyamu, Djemusse, Riachu, Juawu e Chaworha) integradas numa área designada como “triângulo de Wiriyamu”, afetando um total 216 famílias em 40 povoações.

A chamada Operação Marosca foi instigada pela PIDE e “guiada” pelo agente Chico Kachavi, que foi assassinado mais tarde, enquanto o massacre era investigado. Os soldados foram instruídos por Kachavi de que “a ordem é para matar todos”, incluindo mulheres e crianças.

Mandava quem podia e obedecia quem devia.

Como Salazar gostava.

 2024 05 20

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