quarta-feira, 8 de maio de 2024

Carmo Afonso - Repitam: não existe uma relação entre imigração e criminalidade

 *Carmo Afonso  

Estão a transformar uma discussão sobre criminalidade violenta e racismo numa discussão sobre imigração.

Após os ataques contra imigrantes no Porto, temos assistido a várias declarações de titulares de cargos públicos que exigem uma reflexão. Reforço que todas as forças políticas condenaram os ataques, mas, como escrevi na última crónica, o Chega deu-lhe um contexto de justificação. Ventura falou na onda de “ataques, roubos e outros crimes” na Baixa do Porto, “muitas vezes cujos autores são imigrantes” e “num problema de imigração descontrolada em Portugal”. Também pôs em causa que tivessem motivação racial. Sem novidades. Era previsível que André Ventura fosse incapaz de condenar os ataques a imigrantes sem os desculpabilizar.

Mas não foi apenas Ventura que relacionou imigração com criminalidade. Esta ligação, que já tinha sido amplamente estabelecida por Pedro Passos Coelho na campanha eleitoral da AD, parece estar presente em força no espaço público.

Rui Moreira condenou os ataques e pediu a extinção da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e sugeriu que a Assembleia da República investigasse esta agência nacional que “continua morta perante o aparente descontrolo dos fluxos migratórios”. Não se consegue perceber a relação entre os ataques racistas e a extinção da AIMA, mas há uma coisa que é clara: Rui Moreira considera que a imigração está descontrolada. O presidente da Câmara do Porto tinha criticado qualquer tentativa para justificar ou explicar os ataques. Mas deixou a semente do mal: caracterizou a imigração como estando descontrolada e apelou à extinção de uma agência que representa um passo em frente na forma como o país trata a imigração. Tenham presente que o extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) deixou uma memória trágica pela atuação policial e repressiva. O que pretende Rui Moreira? Recuar naquilo que representou um avanço?

Também a procuradora-geral da República, Lucília Gago, afirmou esta semana que jovens “desenraizados” e “indocumentados” poderão, com alta probabilidade, vir a denotar necessidades educativas manifestadas na prática de factos criminalmente relevantes. Está aqui presente, outra vez, uma ligação entre imigração e criminalidade. Lucília Gago, sempre tão parca nas palavras em relação aos assuntos de que os portugueses lhe pedem explicações, achou que este era um bom momento para falar do tema “imigrantes”, para prever que os jovens imigrantes poderão vir a cometer crimes. Era tudo o que o país não precisava de ouvir.

Carlos Moedas também falou e para apoiar o que Rui Moreira tinha dito. Condenou os ataques no Porto, mas partiu daí para uma consideração superlativa: afirmou-se envergonhado por viver num país que deixou de ter uma política de imigração. Referiu também a necessidade de se saber quem são imigrantes de que o país precisa e que tipo de mão-de-obra. Pois é, encontramos aqui o mesmo veneno. Falo da incapacidade de condenar os ataques sem os relacionar com a imigração. Isto é muito grave.

O que se sabe dos ataques é que foram praticados por portugueses, que esses portugueses estão ligados a grupos de extrema-direita, com destaque para um dos suspeitos, que tem ligações ao grupo liderado pelo neonazi Mário Machado, o 1143. Sabe-se também que tiveram motivação racial. Nada disto tem que ver com imigração ou com políticas de imigração.

Podemos, e devemos, falar de racismo e de xenofobia e dos grandes responsáveis pelo aumento do discurso racista e xenófobo no espaço público. Mas porque haveríamos de falar de imigração? Estas pessoas estão a transformar uma discussão sobre criminalidade violenta e racismo numa discussão sobre imigração. Ao fazerem-no, estão a virar costas ao problema e ainda aproveitam para falar naquilo que de facto verdadeiramente as incomoda e preocupa: que entrem demasiados imigrantes.

No caso dos ataques racistas no Porto, os imigrantes foram as vítimas. Se discutimos a gravidade do que aconteceu, não podemos desviar o assunto para a situação das vítimas. Isto é sobre a gravidade dos atos dos agressores.

No caso dos ataques racistas no Porto, os imigrantes foram as vítimas

Não existe relação entre imigração e criminalidade, a menos que consideremos os crimes cometidos por elementos racistas da extrema-direita contra imigrantes. Dizer o contrário não é válido nem aceitável. Na verdade, é como dizer que existe uma relação entre o uso de saias curtas e o crime de violação. Mesmo que existisse, não seria o uso de minissaia que deveríamos discutir.


Público 2024 05 08

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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