Visões racistas
ou discriminatórias – que tratam o negro como “escravo”, “indivíduo sem alma”
ou “indivíduo comercializável” – são invariavelmente predominantes nos
dicionários de língua portuguesa
por André Cintra
Publicado
11/05/2024 11:13 | Editado 11/05/2024 12:11
Há uma
sequência de Malcolm X (1992), o filmaço de Spike Lee, que
mostra a natureza ideológica das palavras e das representações. A cena é
ambientada no pátio da prisão norte-americana de Charleston. Baines (Albert
Hall) tenta atrair Malcolm (Denzel Washington) para a Nação do Islã. Mas, antes
do convite, há uma série de perorações sobre a relação entre brancos e negros.
“Você aceitou
tudo o que o homem branco lhe disse. Ele disse que você era um pagão negro – e
você acreditou nele”, afirma Baines. “Ele disse para você idolatrar um Jesus
loiro, de olhos azuis, de pele branca – e você acreditou. Ele disse que o preto
era uma maldição – e você acreditou. Você já procurou a palavra ‘preto’ no
dicionário?”.
A dupla se
dirige à biblioteca da cadeia, onde Baines abre um dicionário e lê diversas
definições de “negro”: “destituído de luz”; “desprovido de cor”; “envolto na
escuridão – logo, muito sombrio e obscuro, como em ‘futuro negro’” (…);
“coberto de sujeira”; “imundo”; “lúgubre”; “hostil”; “proibido, como ‘um dia
negro’”; “insensato ou extremamente perverso, como em ‘magia negra’”; “indica
desgraça, desonra ou culpa”.
A estudante
secundarista Franciele de Souza Meira
Baines empurra
o dicionário até Malcolm e pede para que ele leia os diversos significados da
palavra “branco”: “a cor da neve alva”; “o reflexo de todos os raios do
espectro”; “o oposto de preto”; “sem manchas ou defeitos”; “inocente”;
“puro” (…); “sem intenções malignas”; “inofensivo”; “honesto”;
“negociação justa”; “honorável”.
A provocação dá
certo, a ponto de Malcolm decidir ler e copiar todo o dicionário, de verbete em
verbete. É o estopim para a mudança que transformará um “vigarista de
Massachusetts” num
dos líderes negros mais influentes do século 20.
Não sei se a
jovem secundarista Franciele de Souza Meira, de 17 anos, já assistiu a Malcolm
X. Moradora de Extrema (MG), essa estudante de ensino médio do Instituto
Federal de São Paulo, matriculada no campus de Bragança Paulista (SP), foi
premiada por uma pesquisa de iniciação científica que lembra a viagem de
Malcolm pelo universo das palavras.
Para mostrar o
“viés racista” da língua portuguesa, Franciele selecionou 17 dicionários,
lançados em períodos distintos. Em cada um deles, buscou a definição de “preto”
e “negro”, fazendo uma análise comparativa do discurso. Porém, das edições
antigas (como o Rafael Bluteau, de 1712) até os contemporâneos (Aurélio e Houaiss),
não houve adaptações significativas.
As visões
racistas ou discriminatórias – que tratam o negro como “escravo”,
“indivíduo sem alma” ou “indivíduo comercializável” – são invariavelmente
predominantes. Apenas três dicionários – o da Academia Brasileira de Letras
(1976), o de Biderman (1992) e o de Bechara (2011) – não associam “negro” e
“preto” a padrões pejorativos.
“As definições
encontradas em dicionários mais antigos eram esperadas de certa forma, pois
esses dicionários foram publicados quando circulava, à época, um discurso
pró-escravidão”, comenta Franciele. “Em relação aos dicionários mais recentes,
realmente fiquei surpresa por ver que havia continuidade desse discurso,
relacionando os indivíduos negros ao período escravocrata.”
Sob orientação
do professor Rafael Prearo Lima, o estudo foi batizado de “Registro de ‘Preto’
e ‘Negro’ em Dicionários de Língua Portuguesa”. Em outubro de 2023, conquistou
o primeiro lugar na Bragantec (Feira de Ciência e Tecnologia de Bragança
Paulista), onde concorreu na categoria Ciências Humanas e Linguagens.
Cinco meses
depois, em março deste ano, foi medalha de ouro na maior feira de iniciação
científica da América Latina, a Febrace (Feira Brasileira de Ciências e
Engenharia). Franciele superou outros 43 projetos finalistas da categoria
“Ciências Humanas” e recebeu a premiação em cerimônia na USP (Universidade de
São Paulo).
Inicialmente, a
estudante secundarista pensou em usar a literatura – e não os dicionários –
para denunciar esse retrato dos negros como “inferiores, menos humanos”. Ao
trocar a ficção pelo “discurso oficial”, sua pesquisa ganhou força e
contundência. “As coisas que são colocadas nos dicionários representam uma
ideia da sociedade. Eles mostrarão as definições que servem para aquela
sociedade naquele tempo”, diz Franciele. “Não esperava que todo o discurso
mostrado durante o século 20 continuasse no século 21.”
O estudo também
mostra a falta que faz a efetivação da Lei 10.639/2003, que obriga escolas de
ensino fundamental e médio a incluírem no currículo conteúdos sobre a história
e a cultura afro-brasileiras. Não dá para mudar conceitos enraizados onde
faltam novos paradigmas. A pesquisa de Franciele dá pistas do longo caminho a
percorrer.
https://vermelho.org.br/2024/05/11/como-os-dicionarios-retratam-os-negros-nos-eua-e-no-brasil/
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