Tudo agora parece uma guerra em que vale tudo. O que acontece é que parece que sempre tem sido assim, cá dentro e lá fora.
A história americana está repleta de exemplos de comportamentos presidenciais pouco sérios em relação à Constituição, Napolitano.
Deus voltou-se de costas e chorou, Zizek.
As máquinas mandam nas casas, nas fábricas, nos escritórios, nos seus escritórios, nas plantações agrícolas, nas minas e nas ruas das cidades, onde nós peões somos incómodos que perturbam o trânsito, Galeano.
Do futebol à política (não que sejam assim tão diferentes), temos vindo a assistir treinadores a utilizarem como incentivos para melhorar a atuação dos seus jogadores, expressões/conteúdos como “Força, vamo-nos a eles, vamos matá-los!”, a comentadores desportivos a relatarem “Que grande tiro!”, “Um autêntico míssil”, “Fuzilou a baliza”, a epítetos altamente injuriosos “!!!” dirigidos aos adversários/inimigos berrados pelas claques com seus filhos ao lado, talvez com a piedosa intenção para que a educação seja convenientemente passada à geração seguinte e que assim mantenha aquelas caraterísticas rácicas que tão bem nos definem tentando deste modo compensarem um esquecimento ou engano da Criação, aos inocentes e cada vez mais repetidos separadores televisivos com o hino nacional a ser cantado pelos desportistas mais reconhecidos “Contra os canhões, marchar, marchar!” transformando um simples jogo num combate que inevitavelmente conduzirá à morte, aos desvarios estudados dos políticos que não se coibindo alto e bom som querem mandar para a prisão todos os adversários que não gostam numa imitação provinciana e desajeitada do amigo americano, esse sim que pelo menos é presidente e tem forças armadas.
Tudo isto e muito mais faz com que haja quem pense que atualmente se vive num mundo muito violento, sem regras, muito “polarizado”, em que as pessoas se agridem e insultam umas às outras, sem qualquer respeito umas pelas outras.
Tudo agora parece uma guerra em que vale tudo. Acontece que parece que sempre tem sido assim, cá dentro e lá fora.
Atente-se, por exemplo, no que nos diz o juiz americano do Supremo Tribunal de New Jersey, Andrew Napolitano:
“Quando os monarcas britânicos se queriam ver livres de adversários inconvenientes, acusavam-nos frequentemente de crimes vagos, pois podiam definir o crime da forma que bem entendessem. São Tomás More, ex-Lorde Chanceler de Henrique VIII, foi executado pelo seu silêncio. O alvo do monarca recebia um julgamento rápido e, em seguida, frequentemente uma morte pública lenta e excruciante – para enviar uma mensagem.
Cientes dos impulsos tirânicos dos monarcas e familiarizados com a história britânica, e até mesmo pessoalmente conscientes de pessoas nas colónias acusadas de crimes em Londres – onde nunca tinham estado – e transportadas para lá para serem processadas, Thomas Jefferson e James Madison, os Pais Fundadores mais responsáveis por cristalizar o ethos americano dos direitos naturais e do devido processo legal, elaboraram documentos fundadores que articulavam condenações e proibições de tirania e comportamento tirânico nos Estados Unidos.
Assim, as palavras de Jefferson na Declaração de Independência caracterizam os direitos humanos como uma dádiva do Criador, que não pode ser retirada por decreto executivo ou promulgação legislativa – mas apenas por um veredicto do júri.
E as palavras de Madison na Quinta Emenda da Constituição declaram que "nenhuma pessoa será... privada da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido processo legal". O uso da palavra "pessoa" torna óbvio que o devido processo legal se aplica a todos os seres humanos.
O devido processo legal exige um julgamento justo por júri, com advogado e a oportunidade de confrontação de testemunhas e provas produzidas pelo governo. Exige também prova de culpa para além de qualquer dúvida razoável e com certeza moral perante um júri neutro, e não perante o acusador. E exige a condenação antes da imposição de uma pena prescrita por lei.
Isto era novo e radical em 1791, quando a Declaração dos Direitos foi ratificada, mas não é novo nem radical hoje. Hoje, o devido processo legal é a base do direito americano. É o que os advogados chamam a lei da letra preta: espera-se que aqueles que estão no governo a conheçam, a compreendam e a cumpram.”
E Napolitano continua:
“A história americana está repleta de exemplos de comportamentos presidenciais pouco sérios em relação à Constituição. John Adams processou pessoas pelos seus discursos. Abraham Lincoln prendeu os seus críticos sem julgamento. Woodrow Wilson processou estudantes por lerem a Declaração de Independência à porta dos gabinetes de recrutamento. Franklin Roosevelt encarcerou americanos com base na raça. George W. Bush iniciou a vigilância em massa sem mandado. Barack Obama assassinou americanos não violentos e sem acusação no Iémen.
Alguma coisa disto aumentou a liberdade pessoal ou a segurança pública? Claro que não. Mas aumentou o medo público de um tirano na Casa Branca.
O valor constitucional subjacente é que os indivíduos são soberanos e o governo é limitado. Esta é a presunção unânime dos Fundadores na criação da República Americana. Os indivíduos são livres de exercer direitos naturais, e o governo é limitado pelo consentimento dos governados e pela Constituição que o definiu e, seguindo Jefferson, o acorrentou.
E isto exige que aqueles em cujas mãos depositamos a Constituição para salvaguarda a leiam, a compreendam e a cumpram — e cumpram os seus juramentos de a preservar, proteger e defender.”
Atente-se também no que nos diz Slavoj Zizek, quando, de uma forma ligeira e divertida, nos vai chamar a atenção para o facto de as sociedades consideradas como as mais desenvolvidas da nossa época, serem muito idênticas no que se refere ao tipo e aos métodos de desenvolvimento que prosseguem. Todas elas seguem sistemas económicos capitalistas, cada vez mais assentes na vigilância e direção eletrónica consentida ou não dos seus cidadãos, numa construção totalitária devidamente articulada, em maior ou menor grau, entre empresas privadas e estado.
Conta-nos então uma anedota que corria nos tempos da guerra fria, passada entre Richard Nixon dos EUA, Leonid Brezhnev da URSS e Eric Honecker da RDA, quando resolveram interrogar Deus para saberem qual seria o futuro reservado para os seus respetivos países.
Em resposta, Deus disse a Nixon: “No ano 2050, os EUA serão comunistas.” Nixon voltou-se de costas e começou a chorar. A Brezhnev, Deus disse: “No ano 2050, a União Soviética será uma província da China.” Brezhnev voltou-se de costas e começou a chorar. E finalmente Honecker perguntou: “E o que acontecerá à minha amada RDA?” Deus voltou-se de costas e começou a chorar.
Zizek vai depois transportar esta anedota para a atualidade, agora com novos personagens, desta vez com Putin, o presidente chinês Xi Jinping e Donald Trump. Eis a resposta de Deus para Putin: “A Rússia estará controlada pela China”. Putin voltou-se de costas e chorou. Para Xi, Deus disse: “A China continental será dominada por Taiwan”. Xi voltou-se de costas e chorou. E quando Trump faz a mesma pergunta sobre os EUA, Deus voltou-se de costas e chorou.
E já agora, relembrar a “Brevíssima Síntese da História Contemporânea” de Galeano:
“Há já uns séculos que os súbditos se disfarçaram de cidadãos e que as monarquias se preferem chamar repúblicas.
As ditaduras locais, que se dizem democracias, abrem as portas à entrada avassaladora do mercado universal. Neste mundo, reino dos livres, somos todos um só. Mas somos um ou somos nenhum? Compradores ou comprados? Vendedores ou vendidos? Espiões ou espiados?
Vivemos presos entre garras invisíveis, atraiçoados pelas máquinas que simulam obediência e mentem, com cibernética impunidade, ao serviço dos seus patrões.
As máquinas mandam nas casas, nas fábricas, nos escritórios, nos seus escritórios, nas plantações agrícolas, nas minas e nas ruas das cidades, onde nós peões somos incómodos que perturbam o trânsito. E as máquinas mandam também nas guerras, onde matam tanto ou mais que os guerreiros fardados.”