Fólio de Diário/Relação da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia de Álvaro Velho (atrib.), 1497-1499. Cópia de meados do séc. XVI Fólio da Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel sobre a Descoberta do Brasil, 1500. IAN/Torre do Tombo Verdadeira Informação das Terras do Preste João, Impresso em 1540 Fernão Mendes Pinto [1514-1583], Peregrinação |
A literatura portuguesa de viagens radica na actividade dos descobrimentos marítimos e na necessidade pragmática de registar rotas, condições atmosféricas, acidentes da costa e todos os elementos que pudessem facilitar a repetição e prosseguimento dos percursos entretanto efectuados.
Assim, os roteiros e os diários de bordo, documentos técnicos para orientação náutica, são os antecedentes desta literatura, que, no entanto, começa já nesses textos a emergir em comentários que alargam a pura notação descritiva, em apontamentos de pitoresco, em descrições surpreendidas ou em segmentos narrativos que dão conta de certo empenho na relação entre o sujeito perceptivo e o mundo que lhe vai sendo revelado.
Livro das Armadas: Nau da Carreira da Índia |
Estão neste caso, no séc. XVI, o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, e o Roteiro do Mar Roxo, de D. João de Castro; mas a primeira obra de interesse decisivo, e importante, é, neste capítulo, o Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, atribuído a Álvaro Velho, que permanece como um dos textos fundamentais de toda a literatura de viagens, seguido da Carta a D. Manuel sobre o Descobrimento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha.
Na sequência destas obras, ou, talvez melhor, na sequência da regularidade e multiplicação das viagens (dado que a sua divulgação era restrita e, em muitos casos, como parece ter acontecido com o texto de Caminha, se tornava confidencial pela política de sigilo dos descobrimentos), aparecem autênticas relações de itinerários e percursos, por mar ou por terra, mas matricialmente desencadeados pelas viagens ultramarinas, que aliam por vezes o interesse documental a procedimentos narrativos que adquirem, sobretudo para o leitor de hoje, efeitos de ordem literária. São disso exemplo, numa produção que na cultura portuguesa é vastíssima, a Verdadeira Informação do Preste João das Índias (1540), do Pe. Francisco Álvares, o Tratado das Cousas da China (1570), de Frei Gaspar da Cruz, o Itinerário da Terra Santa (1593), de Frei Pantaleão de Aveiro, a Etiópia Oriental (1609), de Frei João dos Santos, ou o Itinerário da Índia por Terra (1611), de Frei Gaspar de São Bernardino.
Por outro lado, os escritores «canónicos» (escrevendo com uma intenção determinadamente literária) centraram muitas das suas obras na problemática da viagem dos descobrimentos, como é o caso de Gil Vicente nomeadamente no Auto da Índia e, sobretudo, de Luís de Camões que dela faz a trama fundamental em Os Lusíadas. Também os cronistas não podem deixar de reelaborar essa matéria, por vezes em páginas que são das mais importantes, mesmo sob o ponto de vista estético, deste capítulo: Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Guiné, João de Barros na Ásia.
Caso particular desta literatura é a proliferação que, durante a segunda metade do séc. XVI, e até mais tarde, conhece um género específico das nossas letras, o do relato de naufrágios (constituído por uma narrativa específica e exclusiva de naus que naufragam, com descrição pormenorizada das reacções humanas a que o naufrágio dá lugar, e do esforço trágico, por vezes baldado, pela sobrevivência); o mais antigo que se conhece, de 1554, é o do Galeão Grande São João, conhecido por Naufrágio de Sepúlveda, de autor anónimo; outros, porém, merecem beneficiar igualmente da atenção da análise literária, pela raríssima capacidade de escrita do patético, pela descrição paralela do movimento físico e psicológico, pela aliança de uma crença inabalável na missão militar e religiosa do espírito de conquista com um pendor pessimista e desenganado que neles figuram a contra-epopeia lusíada: Relação do Naufrágio da Nau Santiago, de Manuel Godinho Cardoso, Relação do Naufrágio da Nau São Bento, de Manuel de Mesquita Perestrelo, Relação do Naufrágio da Nau Conceição, de Manuel Rangel. Publicados em folhetos avulsos, são reunidos no séc. XVIII por Bernardo Gomes de Brito na História Trágico-Marítima, em dois volumes (1735-36).
Em toda esta literatura, porém, avulta uma obra excepcional, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, mas escrita antes de 1580.
E será importante não esquecer a fecundidade com que esta literatura tocou a posterior produção portuguesa, quer na consagração de «topoi» diversos (como no caso do «romance marítimo», iniciado entre nós por Francisco Maria Bordalo, com Eugénio, de 1846, e bastante cultivado na segunda metade do século XIX), quer em desenvolvimentos temáticos que ocupam os vários géneros, quer ainda em particularizações que têm a ver com escolhas individuais de autores, mas também com períodos específicos da cultura, ou de homenagem ou de deploração da época dos descobrimentos, em viagens de exploradores oitocentistas ou de escritores de todas as épocas, em reescritas de consonância ideológica (Afonso Lopes Vieira, Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa, 1940), de evocação nostálgica (Sophia de Mello Breyner Andresen, Navegações, 1988) ou de intenção paródica (António Lobo Antunes, As Naus, 1988).
© Instituto Camões, 2001
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