domingo, 3 de outubro de 2010

Federico García Lorca morte e liberdade, por Eliane Gonçalves



Dossiê Lorca
Federico García Lorca morte e liberdade
Eliane Gonçalves
Si pudiera llorar de miedo en una casa sola,si pudiera sacarme los ojos y comérmelos, lo haría por tu voz de naranjo enlutado y por tu poesía que sale dando gritos ...1
(Pablo Neruda)
Na obra Confesso que vivi, Pablo Neruda diz que, de todos os poetas da Espanha, Federico era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um menino por sua alegria maravilhosa, e se pergunta: “Quem poderia crer que tivesse sobre a terra, e sobre sua terra, monstros capazes de um crime tão inexplicável?”
Há relatos2 de que o próprio general Francisco Franco tenha se surpreendido com o assassinato e se esforçado para explicá-lo, encontrando no “caos” da época motivos suficientes para justificá-lo.
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Mas uma coisa é inegável: sua morte foi “conseqüência de feridas de guerra”, como aparece em seu atestado de óbito, uma guerra que não aconteceu em campos de batalha tradicionalmente conhecidos nem foi fruto das políticas da época, mas conseqüência de seu espírito revolucionário, que buscou durante toda a vida defender os mais indefesos, as minorias, as diferenças. “Yo nunca seré político. Yo soy revolucionario porque no hay verdadero poeta que no sea revolucionario.”3 García Lorca foi revolucionário em suas idéias, em suas palavras e em sua obra.
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O menino alegre, defensor eterno de sua querida Granada, de sua terra e de sua gente, que escreveu:
Oye, hijo mío, el silencio.
Es un silencio ondulado,
un silencio
donde resbalan valles y ecos
y que inclina las frentes
hacia el suelo4
Foi silenciado por forças autoritárias que não pouparam grandes vozes espanholas. Como Federico, outros intelectuais da época foram perseguidos, processados, deportados e mortos. Apesar dos tiros que ecoaram naquela madrugada pelos vales verdes de Granada, o silêncio foi soberano e permaneceu na vida de Espanha não só durante a Guerra Civil Espanhola, mas também depois, durante o período franquista. Federico dizia não se preocupar com a morte. “No me he preocupado de nacer, tampoco me preocupo de morir”, havia dito a um amigo. Entretanto, a morte o surpreendeu. A mesma morte que, de forma jocosa mas obsessiva, simulava com seus amigos nos tempos da “resi”5 em Madrid e que muitas vezes parece ter prenunciado: “La elipse de un grito, va de monte a monte/Desde los olivos, será un arco íris negro sobre la noche azul”6 A exclamação presente no último verso deste poema revela a surpresa de uma morte não esperada:
Si muero,
Dejad el balcón abierto.
El nino come naranjas.
(Desde mi balcón lo veo.)
El segador siega el trigo.
(Desde mi balcón lo siento.)
¡Si muero,
dejad el balcón abierto!7
Embora afirmasse não ser político, ele sempre esteve envolvido com personagens ilustres da história política da Espanha. Era cunhado de Montesinos, assassinado logo depois de aceitar o cargo de prefeito de Granada, cargo que há anos não tinha um representante, e primo de Fernando de los Ríos8 , processado por Primo de Rivera logo que este assumiu o poder em 1923. Além daqueles com quem mantinha laços familiares, esteve sempre ao lado de muitos amigos que simpatizavam com o comunismo.
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Federico esteve presente em diversas manifestações de cunho altamente político. Participou publicamente das comemorações pela proclamação da República que ocorreram no dia 14 de abril de 1931. No dia 12, as eleições haviam garantido o desejo republicano do povo, depois de ter vivido uma longa ditadura com o governo Primo de Rivera. Antes, havia viajado para Nova York e presenciado o crash da bolsa que levou ao desespero milhares de pessoas. Este episódio o modificaria para sempre como pessoa e como poeta. Em 1935 Federico assinou o manifesto antifascista juntamente com Manuel Machado, Rafael Alberti e Miguel Hernández. Mais tarde, já em março de 1936, foi com seu amigo, o poeta Rafael Alberti, a um encontro da Frente Popular – que havia ganhado as eleições em fevereiro - para um ato em prol da Solidariedade Internacional. Nessa reunião, a Frente Popular se solidarizava com Luiz Carlos Prestes, que havia sido preso pelo governo de Getúlio Vargas junto com outros 17.000 trabalhadores brasileiros. Ao final da reunião, Lorca foi chamado, para que todos ouvissem a voz dos poetas espanhóis, e leu o poema “Romance de la Guardia Civil Espanhola”9 :
Los caballos negros son.
Las herraduras son negras.
Sobre las capas relucen
manchas de tinta y de cera.
Tienen, por eso no lloran,
de plomo las calaveras.
Con el alma de charol
vienen por la carretera.
Jorobados y nocturnos,
por donde animan ordenan
silencios de goma oscura
y miedos de fina arena.
Pasan, si quieren pasar,
y ocultan en la cabeza
Una vaga astronomía
de pistolas inconcretas...
Escritos anteriormente, mas dentro de um contexto de opressão como aquele, estes versos, que foram dedicados à causa da Frente Popular naquele momento, ilustraram perfeitamente a situação caótica que estava por vir.
Foto: Guerra Civil Espanhola. Federico García Lorca foi
morto por tropas falangistas no dia 19 de agosto de 1939.
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Os cavalos negros da guarda civil que pisotearam o talento de Lorca trouxeram o medo, a delação gratuita e a incerteza para a nação espanhola. Durante todo o regime de Franco ecoaram os versos finais da peça Mariana Pineda, que Lorca havia escrito em 1925:
¡Oh, qué día tan triste en Granada,
que a las piedras hacía llorar,
al ver que Marianita se muere
en cadalso por no declarar!10
A liberdade tão almejada pelo poeta e presença freqüente em sua obra se esvaiu, dia a dia, desde os primeiros momentos da guerra civil.
Teatro e poesia não se separam na obra de Lorca.
¡Yo soy la Libertad porque el amor lo quiso!
¡Pedro! La Libertad, por la cual me dejaste.
¡Yo soy la Libertad, herida por los hombres!
¡Amor, amor, amor, y eternas soledades!
Os gritos de liberdade que Mariana Pineda entoa ao final da obra dramatúrgica do poeta resumem a essência de Federico García Lorca, para quem viver era o mais importante, para quem a liberdade era um nome próprio, uma herança que deveria ser passada de geração em geração e que também se traduzia pela palavra justiça: “Siempre seré partidario de los que no tienen nada. Justicia para todos”11 .
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Seus poemas não são panfletá- rios, não são politicamente engajados. São, antes, a expressão de um amante da vida, de sua terra, de seu povo e de suas raízes. Eles cantavam os valores dos homens, independente de raça ou de credo, e por vezes mostravam aspectos da vida cotidiana em suas mais distintas representações. Entretanto, Federico não deixou de fazer críticas à hipocrisia. Criticou o conservadorismo das cidades e questionou o cristianismo que imperava em Granada. Segundo ele, a presença de Fernando e Isabel fora um “momento malísimo” na história da cidade e a burguesia que ali vivia era a pior da Espanha.12
El río Guadalquivir
va entre naranjos y olivos.
Los dos ríos de Granada
Bajan de la nieve al trigo.
¡Ay, amor
que se fue y no vino!
El río Guadalquivir
Tiene las barbas granates,
los dos ríos de Granada
uno llanto y otro sangre...13
Federico dizia que não era cigano, mas sim andaluz, ainda que isto tivesse algo de cigano14 . Em sua poesia vemos representados as personagens e os elementos desse universo, como a lua, a água, a faca, a guitarra, os cavalos:
Noche de cuatro lunas
y un solo árbol,
con una sola sombra
y un solo pájaro15 .
É também sempre recorrente o tema da morte:
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
Y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura,
Ella sueña en su baranda,
Verde carne, pelo verde,
Con ojos de fría plata.16
Em 1931, Federico publica na Revista de Occidente o poema “Muerte”, que comporia a antologia Poeta en Nueva York, publicada postumamente (1940), mas projetada em vida por Federico e considerada por ele sua melhor obra:
¡Qué esfuerzo!
¡Qué esfuerzo del caballo por ser
perro!
¡Qué esfuerzo del perro por ser golondrina!
¡Qué esfuerzo de la golondrina por ser abeja!
¡Qué esfuerzo de la abeja por ser caballo!
Os poemas que compõem essa obra foram escritos a partir de uma técnica surrealista com o objetivo de expressar seu rechaço pela civilização capitalista, pelas sociedades industrializadas, desumanizadas, não-solidárias e promotoras de injustiças sociais. A reação das pessoas à quebra da bolsa de Nova York havia causado em Federico uma enorme indignação. Ele não conseguia compreender o caos gerado por um fator de ordem econômica nem a maneira pela qual as pessoas viviam numa sociedade capitalista como aquela. Sua Granada havia sido um lugar mais acolhedor, pelo menos até aquele momento. Poeta en Nueva York é o resultado de seu desejo de não ficar impassível. Trata-se de uma obra de reivindicação social hermética, na qual o poeta se manifesta aberta e contundentemente a favor dos oprimidos.
Debajo de las multiplicaciones
hay una gota de sangre de pato;
debajo de las divisiones
hay una gota de sangre de marinero;
debajo de las sumas,
un río de sangre tierna.
Un río que viene cantando
por los dormitorios de los arrabales,
y es plata, cemento o brisa
en el alba mentida de New York.17
Em julho de 1936, Lorca volta pela última vez à sua cidade, onde é preso pelos fascistas, acusado de fazer espionagem para os russos, de ser secretário de Fernando de los Ríos e de ser homossexual. Na verdade, ele foi preso por defender os oprimidos e as minorias, por respeitar as diferenças, por defender a justiça. Foi preso por cantar a liberdade.
Se le vio, caminando entre fusiles
por una calle larga,
salir al campo frío,
aún con estrellas, de la madrugada.
Mataron a Federico
cuando la luz asomaba.
El pelotón de verdugos
no osó mirarle a la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ¡ni Dios te salva!
Muerto cayó Federico
- sangre en la frente y plomo en las entrañas.
... Que fue en Granada el crimen
sabed - ¡pobre Granada! -, en su
Granada!...18
A vida de um dos maiores poetas da literatura espanhola se desfecha como sugerem estes versos de Antonio Machado, e nesse momento a história de vida e morte de Federico García Lorca poderia ser mais uma de suas poesias ou de suas obras teatrais.
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A morte, recorrente na trama lorquiana, torna-se um elo semiótico entre os gêneros da poesia e da dramaturgia, para a solução do clímax tensivo de seus textos.
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É importante observar que muitos poemas lorquianos subvertem o subjetivismo por meio da exposição da emoção, usando o diálogo como uma estratégia dramatúrgica.
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Nesses poemas, assim como no teatro, Lorca coloca em diálogo diferentes paradigmas, que poderiam ser identificados como “conservador” e “revolucionário”. No paradigma conservador encontram-se concatenados os valores sustentados pela moral católica e burguesa do início do século XX. Já no paradigma referido como “revolucionário” estão representadas as vozes de todos aqueles que não tinham seus interesses protegidos pela jurisdição e pelos costumes da época, dentre eles as mulheres, os homossexuais e os ciganos. Sua poesia é carregada de elementos ciganos e de personagens femininas muito fortes, que por vezes rompem os modelos estabelecidos pela sociedade da época e se autodenominam Libertad.
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A identidade semântica existente entre esses três grupos estava centrada na posição que ocupavam. Estavam à margem da sociedade legal, contemplada pelo jogo político. Entretanto, essas vozes não se articulavam sob a teia coerente de teses políticas, mas ganhavam coesão por meio da sedimentação que a sensibilidade era capaz de obter dos fatos cotidianos e dos relatos jornalísticos, que constituíram a base de alguns poemas e da obra teatral “Bodas de sangre”.
Federico García Lorca deu ressonância à sensibilidade de grupos não contemplados pela moral burguesa e pela literatura. A literatura do início do século XX respeitava os preceitos de harmonia e de verdade absoluta, tão caros ao idealismo filosófico e aos dogmas da igreja católica. Como expor, então, o conflito oriundo da presença real de indivíduos e de grupos que precisam estar ausentes do quadro social dito ideal? Sua sobrevida, sua luta clamando por um espaço social inexistente só poderia ser resolvida com a morte e com o silêncio.
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O cotidiano ideal da literatura encontra em Lorca um contraponto por meio do cotidiano real do jornal, descrito de forma poética, capaz de atravessar a fronteira do relato e de assumir a atemporalidade e a universalidade do verso. Por não expor teses, mas apenas uma emoção irracional captada por sua sensibilidade, Lorca não compunha versos engajados e, portanto, não articulava uma postura poética panfletária.
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Sua poesia está imune às convulsões sociais sem deixar de estar atenta ao interior das casas, das famílias e dos grupos. Apesar de não tratar diretamente das classes sociais, é proselitista na medida em que assume as causas de todos aqueles que os quadros políticos simplesmente consideram inexistentes.
Lorca expõe esses elementos, traz à luz as suas paixões e os meios pelos quais tentam conviver com os representantes do paradigma conservador.
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O destino inevitável para esse estágio tensivo dos textos é a morte - verde, fria e prateada -, a eliminação física e o silêncio, solução poética que não deixava impune o modelo conservador, pois expunha a desarmonia escondida através de violenta mutilação, atrás do pano de fundo em que se encontravam os dogmas católicos e os pilares que a própria sociedade espanhola aceitava ver.
Esta intervenção cirúrgica presente no final das tramas gerava uma hemorragia incontrolável, que induzia tanto à catarse do leitor e do público quanto à rejeição, ao repúdio por parte de todos aqueles que se encontravam aferrados à idéia de sociedade ideal preconizada pela Igreja.
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A liberdade se reafirmava pelo silêncio que ressoava na mente de seu público ao final de sua poesia ou de sua dramaturgia, a existência negada dos anseios mais profundos das mulheres, dos homossexuais, dos amantes, da irracionalidade dos sentimentos envolvidos nas paixões. Sugeria ser a negação concretizada pela morte a recorrência trágica e fatal da intolerância e, ao representar a ferida, acaba sendo proselitista a favor das causas dos excluídos.
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Federico humano vive o destino irrefreável dado por sua própria poesia - o silêncio. A sua poesia, contudo, segue como voz inabalável de sua rica existência. 
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A MONJA GITANA
A José Moreno Villa
SILÊNCIO de cal e mirto
Malvas entre as ervas finas.
Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido
às cinco horas da tarde.
Por sua frente já mugia o touro
às cinco horas da tarde.
O quarto se irisava de agonia
às cinco horas da tarde.
De longe já se aproxima a gangrena
às cinco horas da tarde.
Trompa de lírio pelas verdes virilhas
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram cinco horas em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!
ROMANCE SONÂMBULO
A Gloria Giner e Fernando de los Ríos
VERDE que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco no mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra na cintura
ela sonha em seu balcão,
verde carne, pêlo verde,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Sob a lua gitana,
as coisas a estão olhando
e ela não pode olhá-las.
*
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha,
vêm com o peixe de sombra
que abre o caminho da alba.
A figueira esfrega o seu vento
com a lixa de seus ramos,
e o monte, gato larápio,
eriça suas pitas acres.
Mas quem virá? E por onde…?
Ela continua em seu balcão,
verde carne, pêlo verde,
sonhando com o mar amargo.
Compadre, quero trocar
meu cavalo por sua casa,
meu arreio por seu espelho,
minha faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando,
desde os portos de Cabra.
Se eu pudesse, mocinho,
esse trato se fechava.
Porém eu já não sou eu,
nem meu lar é mais meu lar.
Compadre, quero morrer
decentemente em minha cama.
De aço, se puder ser,
com os lençóis de holanda.
Não vês a ferida que tenho
do peito até a garganta?
Trezentas rosas morenas
traz o teu peitilho branco.
Teu sangue ressuma e cheira
ao redor de tua faixa.
Porém eu já não sou eu,
nem meu lar é mais meu lar.
Deixai-me subir ao menos
até as altas varandas,
deixai-me subir! deixai-me
até as verdes varandas.
Corrimões da lua
por onde retumba a água.
*
Já sobem os dois compadres
rumo às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam nos telhados
candeeirinhos de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
*
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O longo vento deixava
na boca um raro gosto
de fel, de menta e alfavaca.
Compadre! Onde está, dize-me?
Onde está a tua jovem amarga?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, cabelo negro,
nesta verde varanda!
*
Sobre a boca da cisterna
embalava-se a gitana.
Verde carne, pêlo verde,
com olhos de fria prata.
Um carambano de lua
sustenta-a sobre a água.
A noite tomou-se íntima
como uma pequena praça.
Os guardas, bêbedos,
davam murros na porta.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco no mar.
E o cavalo na montanha.
O SANGUE DERRAMADO
Não quero vê-lo!
Dize à lua que venha,
que não quero ver o sangue
de Ignacio sobre a areia.
Não quero vê-lo!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras,
Não quero vê-lo!
Que se me queima a recordação.
Avisai aos jasmins
com sua brancura pequena!
Não quero vê-lo!
A vaca do velho mundo
passava a língua triste
sobre um focinho de sangues
derramados sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Não quero vê-lo!
Pelos degraus sobe Ignacio
com toda sua morte às costas.
Buscava o amanhecer,
e o amanhecer não era.
Busca o seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Buscava o seu formoso corpo
e encontrou seu sangue aberto.
Não me digais que o veja!
Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força;
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
sobre a pelúcia e o couro
de multidão sedenta.
Quem grita que eu apareça?
Não me digais que o veja!
Não se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
mas as mães terríveis
levantaram a cabeça.
E através das manadas,
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de pálida névoa.
Não houve príncipe em Sevilha
que comparar-se-lhe possa,
nem espada como a sua espada
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
sua maravilhosa força,
e como um torso de mármore
sua marcada prudência.
Um ar de Roma andaluza
lhe dourava a cabeça
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.
Que grande toureiro na praça!
Que grande serrano na serra!
Quão brando com as espigas!
Quão duro com as esporas!
Quão temo com o rocio!
Quão deslumbrante na feira!
Quão tremendo com as últimas
bandarilhas tenebrosas!
Porém já dorme sem fim.
Já os musgos e já a erva abrem
com dedos seguros
a flor de sua caveira.
E o sangue já vem cantando:
cantando por marismas e pradarias,
resvalando por chifres enregelados,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando com cascos aos milhares
como uma longa, escura, triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir das estrelas.
Oh! branco muro de Espanha!
Oh! negro touro de pena!
Oh! sangue duro de Ignacio!
Oh! rouxinol de suas veias!
Não.
Não quero vê-lo!
Não há cálice que o contenha,
não há andorinhas que o bebam,
não há escarcha de luz que o esfrie,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que o cubra de prata.
Não.
Eu não quero vê-lo!!
BIBLIOGRAFIA
EISENBERG, Daniel. “Unanswered questions about Lorca's death”. In: Angélica [Lucena, Spain], 1, 93-107. Também disponível na página da web: http://users.ipfw.edu/jehle/ deisenbe/Lorca/Unanswered_Questions_about_Lorca's_Death.htm
GARCÍA LORCA, Federico. Romancero gitano. Madrid, Alianza Editorial, 1999.
____________. Poeta en Nueva York. Madrid, Cátedra, 1998.
____________. Poema del Cante Jondo. Madrid, Alianza Editorial, 1982.
_____________. Obras completas. Madrid, Aguilar, 1980.
_____________. Canciones. Madrid, Alianza Editorial, 1981.
GIBSON, Ian. Vida, pasión y muerte de Federico García Lorca. Barcelona, Plaza & Janés, 1998.
MACHADO, Antonio. Antologia poética. Madrid, Alianza Cien, 1995.
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1980.
NERUDA, Pablo. “Oda a Federico García Lorca”. In: Residencia en la tierra. Madrid, Cátedra, 1996.
NOTAS
1 “Oda a Federico García Lorca”, em Residencia en la tierra, de Pablo Neruda, 1935.
2Vida, pasión y muerte de Federico García Lorca, Ian Gibson.
3 Vida, pasión y muerte de Federico García Lorca, Ian Gibson.
4 “El silencio”, em Poema del Cante Jondo, 1921.
5Residência de estudantes em Madrid, onde estudou e conheceu Salvador Dali e Luis Buñuel.
6“El grito”, em Cante Jondo, 1921.
7“Despedida”, em Canciones, 1921-1924.
8Em 1931, Fernando de los Rios será ministro de estado e concederá a Lorca condições de montar “La barraca”, companhia de teatro que viajaria por todos os rincões da Espanha.
9Publicado em Primer romancero gitano, 1924-1927.
10“Mariana Pineda”, obra teatral.
11Vida, pasión y muerte de Federico García Lorca, de Ian Gibson.
12Unanswered questions about Lorca´s death, de Daniel Eisenberg.
13“Baladilla de los tres ríos, em Poema del Cante Jondo, 1921.
14Esta declaração aparece em “Itinerarios jóvenes de España: Federico García Lorca”, no apêndice da obra Romancero gitano, Alianza Editorial, 1999.
15“Murió al amanecer”, em Canciones, 1924-1927.
16“Romance sonâmbulo, em Romancero gitano.
17“Nueva York (Oficina y Denuncia)”, em Poeta en Nueva York, 1940.
18“El crimen”, em El crimen fue en Granada, de Antonio Machado, 1936.
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http://www.apropucsp.org.br/revista/rcc01_r14.htm
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