República
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A vanguarda das letras
Ultimatum de Álvaro de Campos e Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX de Almada Negreiros debruçam-se com surpreendente detalhe sobre a política, a ciência, o pensamento. E neles se abre um espaço para o que, no novo mundo que anunciam, poderia ser o lugar de uma nova literatura. Por Luís Trindade
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A vanguarda das letras
Por Luís Trindade (1)
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Ultimatum de Álvaro de Campos e Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX de Almada Negreirosdebruçam-se com surpreendente detalhe sobre a política, a ciência, o pensamento. E neles se abre um espaço para o que, no novo mundo que anunciam, poderia ser o lugar de uma nova literatura.
Um dos traços mais interessantes da forma que o futurismo teve em Portugal foi a utilização da palavra ultimatum como título de dois dos seus manifestos. O manifesto é a marca da vanguarda. Trata-se de um texto que intervém, que entra - de preferência com estrépito - pelo espaço público e se impõe ao leitor. Ao contrário de outros textos, portanto, não espera ser lido. Faz-se ouvir. Esse é o seu valor político e a sua especificidade literária. Do Manifesto Comunista de Marx e Engels ao Manifesto Futurista de F. T. Marinetti, o manifesto foi construindo uma tradição que, na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, criou momentos de indistinção entre a política e a literatura (na medida em que, para nos atermos aos dois exemplos que acabei de dar, o manifesto comunista pode ser lido como um texto do romantismo e o manifesto futurista foi uma intervenção no interior da crise política do liberalismo).
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Na cultura política portuguesa da transição do século, o significado político da forma manifesto não devia andar longe, desde a crise do mapa cor-de-rosa de 1890, do da palavra ultimatum. O ultimatum inglês que obrigou à humilhante cedência portuguesa dos territórios entre Angola e Moçambique deu a esta forma (que, em 1890, não terá passado de uma nota diplomática) uma carga dramática na vida nacional de que Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) e Almada Negreiros se apropriaram nos seus textos para a revista Portugal Futurista, em 1917.
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Tanto o Ultimatum de Álvaro de Campos, como o Ultimatum Futuristaàs gerações portuguesas do século XX se constroem assim em torno de um referente político e se organizam sistematicamente em forma de doutrina. Num como noutro, o motivo é a guerra e o objectivo o que fazer com ela (ou, mais concretamente, como aproveitar as energias aí libertadas). No primeiro caso, trata-se de uma invectiva detalhada (em secções e alíneas) contra os escritores, os intelectuais, os estadistas, as nações e as classes sociais que dividiram a Europa, em nome de uma reconstrução científica ("um acto de cirurgia sociológica") capaz de fazer nascer os super-homens de uma "humanidade matemática e perfeita" cuja vinda, e aqui reside a sua particularidade literária, Álvaro de Campos proclama "em altos gritos!".
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O esquematismo do programa de Pessoa é partilhado pelo ultimatum de Almada Negreiros que, no entanto, reduz o seu campo de análise à realidade nacional. Em resumo, o texto proclama a necessidade de "criar a pátria portuguesa do século XX", indo "buscar na guerra da Europa toda a força da nossa nova pátria". O momento não poderia ser mais propício. Porque a guerra como acontecimento destruidor teria de dar lugar a um período de reconstrução, claro, mas sobretudo porque toda essa energia chegaria em Portugal a um país absolutamente estagnado por um regime político, a República, que para Almada personificava a decadência da raça e a impotência da pátria.
Salto no futuro
Ambos os textos debruçam-se com surpreendente detalhe sobre a política, a ciência, o pensamento e até a economia do tempo, mas em ambos os casos também se abre um espaço para o que, no novo mundo que anunciam, poderia ser o lugar de uma nova literatura. No caso de Pessoa, é difícil não associar a expressão da super-humanidade na arte ("o que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros") à sua própria aventura heteronímica. Em Almada, o papel da literatura na obra de reconstrução pode à primeira vista parecer mais simples, ou pelo menos exigir algo literariamente menos elaborado que o complexo sistema desenvolvido por Pessoa.
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"Porque Portugal a dormir desde Camões ainda não sabe o novo significado das palavras." Aparentemente, a reconstrução seria qualquer coisa como a recuperação da língua, outrora a verdadeira expressão da pátria, mas entretanto desnacionalizada pela modernização. Era um dos temas preferidos dos intelectuais e escritores da época. A importância da linguística na construção das tradições nacionais ao longo do século anterior fizera das línguas um dos alicerces (a par da história e da noção de raça) do nacionalismo. Mas ao passo que, para a maior parte desses intelectuais e escritores, recuperar o português (ou seja, uma forma de vida não corrompida pela modernidade onde os valores autênticos da nacionalidade estivessem ainda preservados) era um projecto conservador, quando não reaccionário, Almada sugere um salto no futuro.
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Para que a "pátria portuguesa do século XX" fosse possível, a literatura teria de conseguir, de algum modo, traduzir uma experiência moderna. Recuperar o significado das palavras, isto é, fazer com que as mesmas palavras de sempre pudessem exprimir o mundo do presente não era afinal uma tarefa menos problemática do que a do desdobramento pessoano. Almada, porém, chegou lá de outra maneira. Onde em Pessoa houve um projecto extensivo de multiplicação poética, em Almada a experiência poética torna-se, sobretudo, intensidade, ou melhor, performance. O próprio escritor, na tradição político-literária dos manifestos, leva o seu texto e fá-lo ouvir em acto, fazendo da literatura um acontecimento.
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Recentemente, Osvaldo Silvestre, na entrada "Vanguarda" do Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, sugeriu mesmo que a figura de Almada Negreiros ocupará um lugar mais central na história do modernismo a partir do momento em que a noção de performance for devidamente valorizada. A forma do ultimatum ou do manifesto rompem com a ordem não tanto porque provoquem e insultem o poder, mas na medida em que a própria forma da sua enunciação subverte o lugar tradicional da literatura. Se o que caracteriza a vanguarda do início do século XX é o desejo de confrontar as instituições da arte burguesa - distinguindo-se assim de formas artísticas alternativas que optaram pelo isolamento -, então talvez seja possível encontrar em dois manifestos anteriores de Almada Negreiros a verdadeira expressão fundadora da vanguarda literária do início do século XX em Portugal: A Cena do Ódio e o Manifesto Anti-Dantas, escritos em 1915 e 1916, respectivamente.
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A indicação inicial de que o texto da Cena do Ódio fora escrito "durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915" - o golpe que recolocou o Partido Republicano no poder após o breve interlúdio da ditadura de Pimenta de Castro - sugere que o seu alvo é ainda político, em sentido estrito (que, naquele momento, queria dizer anti-republicano). A longa diatribe, porém, vai mais longe e mais fundo. Trata-se, no essencial, de um violento insulto à burguesia e à sua civilização. Um insulto, porém, que procura reforçar uma alternativa, ou melhor, uma margem, que é de onde fala o poeta marginal: "E como queres que eu faça fortuna/se Deus, por escárnio, me deu Inteligência,/e não tenho sequer, irmãs bonitas,/nem uma mãe que se venda por mim?"
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A questão essencial que a marginalidade de Almada quer colocar à estúpida e corrupta civilização do "rotundo e pançudo-sanguessugo" burguês é literária, e naquele momento responde directamente à ridicularização com que a literatura instituída recebeu Orpheu, a revista que, nesse mesmo ano de 1915, dera visibilidade pública ao modernismo português: "Tu arreganhas os dentes quando te falam de Orpheu/e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê./E chamas-me doido a Mim/que sei e sinto o que Escrevi." A vanguarda começava assim por definir-se em oposição à literatura dominante, como uma verdadeira experiência moderna só ao alcance da "geração portuguesa do século XX".
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Se a afirmação da geração modernista enquanto vanguarda pressupunha uma clara distinção em relação a essa literatura produzida para consumo da mediocridade burguesa, então talvez o seu manifesto mais relevante tenha sido precisamente aquele em que o alvo directo foi a própria instituição literária. Em 1916, não era possível imaginar quem a representasse melhor do que Júlio Dantas. O manifesto que contra ele escreveu Almada Negreiros teve naturalmente que ver com um artigo escrito por Dantas em 1915 que, ao contrário do coro de ataques a Orpheu, censurou precisamente aqueles que contribuíram para a notoriedade da revista atacando-a: "É justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas (...) que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo é quem os lê, quem os discute e quem os compra." Dantas tocara um ponto sensível: ignorar a vanguarda (ser surdo ao seu ruído) neutralizava-lhe os efeitos.
O futuro dos modernistas
O pretexto imediato para o Manifesto Anti-Dantas foi, porém, a subida ao palco de Soror Mariana, drama sobre Mariana Alcoforado com que Júlio Dantas ia mantendo um estatuto de autor de sucesso iniciado na passagem do século com A Severa e A Ceia dos Cardeais. O manifesto de Almada começa precisamente por tratar Dantas como o símbolo literário da corrupção geral do sistema, de que o burguês seria a manifestação social e o regime republicano a materialização política: O Dantas é um autómato que deita p"ra fora o que a gente já sabe que vai sair... Mas é preciso deitar dinheiro!" A forma do manifesto, porém, permite a Almada escrever algo mais decisivo do que ainda outra enumeração de ódios (que também aqui se podem encontrar, de resto, numa verdadeira lista do "quem é quem" no teatro português da época): a certa altura do manifesto, Almada usa a linguagem seca, prosaica, insistente, para descrever algumas cenas da peça. O resultado é a completa ridicularização de valores morais, processos narrativos e técnicas teatrais que, aparentemente, o próprio público considerava já obsoletos: "Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas."
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Dantas manteria uma posição central nas instituições literárias nacionais ainda por muitos anos (não muito distante, de resto, do próprio Almada Negreiros, no interior dessa máquina integradora - entre conservadorismo liberal e reaccionarismo fascista - que foi o Estado Novo). Após a irrupção da vanguarda futurista, porém, a sua literatura ficou progressiva e irremediavelmente marcada como coisa do passado. O futuro seria dos modernistas. De tal modo que, hoje, o nome de Dantas já raramente evoca mais do que um título de um manifesto de Almada Negreiros.
(1) Historiador/Birkbeck College
(1) Historiador/Birkbeck College
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