quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Á lvaro Cubhal - dois extractos e dois desenhos



Sábado, 17 de Outubro de 2009


Um dia mais, um dia menos...


"(...) Nesse dia, como todos os dias, semana após semana, mês após mês, ano após ano, a vida decorreu no ritual de sempre.
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O silêncio da noite cotado pelos apitos da alvorada e o súbito expandir do barulho da movimentação geral da cadeia. O ruidoso e cadenciado abrir (umas atrás das outras) das fechaduras e ferrolhos das celas. O bater de tairocas dos faxinas circulando com os baldes dos despejos. O baque metálico dos baldes ao serem atirados para o chão de cimento. O fedor espalhando-se nas alas logo misturado e coberto pelo da creolina. Novos apitos, formatura, conto. A distribuição do café e do casqueiro. O deslocar em cortejo para as oficinas. De novo ferrolhos e fechaduras, agora com novo bater das portas e o isolar dos reclusos nas celas. Depois o amortecer dos ruídos e o alastrar do vazio da imensidão das alas, cortado apenas pelo bater desencontrado das tairocas e tamancos dos faxinas e o barulho de marteladas, da serra e de máquinas vindo das oficinas(...)"

Excerto de "A Estrela de Seis Pontas" de Manuel Tiago, Pseudónimo literário de Álvaro Cunhal
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Domingo, 30 de Agosto de 2009

Moços que parecem homens e nunca forma meninos

"(...) O telhal está silencioso e deserto, e o vento zune no caniço dos esteiros, negros como breu. No céu, nem uma estrela. As luzes mortiças dos saveiros, ao longe, adensam a noite.
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Mas o Gineto não tem medo. Já por duas vezes que atravessou o esteiro, com o lodo pelos joelhos, para ir roubar carvão da Fábrica Grande. No Largo da Vila já há armações para a Feira - e ele quer voltar a ver Rosete na barraca de tiro; quer comprar-lhe beijos com dinheiro que no telhal não chegou a juntar.
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Por isso, atravessa de novo o esteiro, agora cheio de água; depois rasteja e corre para junto do carvão, com que vai enchendo a saca, precipitadamente, atento aos ruídos e focos de luz. As máquinas, porém, abafam os passos dos guardas, confundidos com as trevas. Quando esboça a fuga, é tarde de mais, perante homens lestos e potentes como o Rex - o canzarrão da Quinta Alta.
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Preso e manietado, dorme no posto da Guarda Republicana, depois do interrogatório sumário. Dorme?... Não: Congemina fugas e pensa que os companheiros o virão salvar, como naquela noite de temporal em que o Boa Sorte naufragou. Não permitirão que o chefe permaneça ali, longe das ruas em que se joga e brinca, longe dos pomares carregadinhos de frutos. Ele tem, planos maravilhosos para a quadrilha, que , até então, nada mais fizera do que roubar algumas sacas de laranjas, durante o Inverno que passou.
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Mas os amigos não vêm, e a mãe, com as suas lágrimas, não consegue anular o depoimento dos guardas, dos caseiros e do Cabo do Mar, que tem uma cicatriz indelével no braço, feita pelo canivete do Gineto...
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Rolam dias iguais a todos os dias; o Outono chega, cavalgando o vento. E Gineto mantém a mesma fé de quando entrou na prisão.
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Através da cela, ouve um tropel de cavalos e alarido de muito povo, a entrecortar um sussurro distante, confuso, de música e tiros e vozes... É a Feira. Gineto anima-se, crente de que os companheiros virão buscá-lo neste dia de festa, trazendo Rosete com eles. Encosta a face às grades, espera o regresso à vida livre.
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Uma voz canta, mesmo por baixo da janela, uma canção que ele ouviu, certa tarde, no alto do Mirante. Ele grita: - Gaitinhas! Tou aqui, Gaitinhas!
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Mas a voz afasta-se. Gaitinhas-cantor vai com saguí correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais - moços que parecem homens e nunca forma meninos."

Excerto de "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes
Desenho de Álvaro Cunhal


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