sexta-feira, 25 de março de 2016

Rogerio G. V. Pereira - Sexta feira santa

* Rogerio G. V. Pereira




http://conversavinagrada.blogspot.pt/2016/03/sexta-feira-santa-esquecidos-de-que.html

quinta-feira, 24 de março de 2016

Rui Mota - O livro é um coração vermelho




  • Rui Mota 



O livro é um coração vermelho
Assinalou-se pela primeira vez a 26 de Março de 1988, por iniciativa da Sociedade Portuguesa de Autores, o Dia do Livro Português. A data escolhida remete para a impressão do primeiro livro em Portugal, o Pentateuco, em 1487, e teve como objectivo valorizar o livro e os autores nacionais. Passados que estão quase 30 anos sobre a primeira comemoração, qual é a situação hoje do livro em Portugal?


Alguns exemplos ajudam a ilustrar. Hoje, o mercado é dominado por dois grandes grupos editoriais (o Grupo Porto Editora e a LeYa), que detêm 30 editoras ou chancelas, com o facto acrescido de dominarem a chamada literatura geral, dominando também a edição dos livros escolares, tendo assim condições para determinar as regras do jogo, desde as pequenas mas não menos significativas, como espaços distintos na Feira do Livro de Lisboa, até outras bem maiores e que fazem com que o jogo acabe quando levam a bola para casa, colocando limitações na própria distribuição comercial dos livros, dificultando o seu acesso a centenas de pequenas editoras, muitas delas destinadas a encerrar pouco depois de começar.


Essa concentração da edição, e essas imposições, põem em causa a diversidade. Como a árvore que cai na floresta sem ninguém a ouvir, muito do que se cria em Portugal não chega a estar verdadeiramente disponível, apesar do esforço de autores e editores para romper as barreiras da mercantilização. O comércio livreiro é também objecto da concentração, com um número reduzido de empresas a concentrar a larga maioria das vendas. Acrescendo à concentração da distribuição na Fnac e nas chamadas grandes superfícies, vale a pena referir que as livrarias Bertrand, o Círculo de Leitores e a Wook pertencem ao Grupo Porto Editora. As restantes livrarias, incapazes de impor as margens comerciais que essas grandes empresas conseguem para si, encontram-se em evidente desvantagem,e muitas têm acabado por encerrar, mesmo livrarias históricas, como amiúde se pode ver nas notícias. O livro é só mais um produto, exposto apenas enquanto houver expectativa de o vender.


Esta realidade coexiste com avanços tecnológicos que tornaram a publicação de um livro muito mais barata, ao possibilitar a tiragem de um número mais reduzido de exemplares com custos unitários similares aos de tiragens maiores. Isso ajuda a explicar o facto de se continuar a publicar muito (cerca de 15 mil livros em 2014 foram registados), criando a ilusão de que não há problema nenhum de diversidade.


Os livros que têm sucesso comercial, salvo raras excepções, devem grande parte da sua difusão a outros factores externos ao próprio livro – e às próprias livrarias –, com evidente destaque para o papel que a televisão desempenha na promoção dos «seus» autores. Também dessa forma se cria o «gosto» do «público», se limita a diversidade e se impõe balizas ideológicas.


Sucessivos governos têm também contribuído, de diferentes formas, para agravar esta situação, cortando apoios financeiros, limitando os orçamentos das bibliotecas, alterando legislação que contribui para acelerar a concentração, dificultando assim gravemente a promoção do livro e da leitura.


É então com este contexto altamente adverso e complexo que quem escreve, edita e comercializa do lado de cá da luta de classes se confronta: com as décadas de política de direita da responsabilidade de PS, PSD e CDS, brutalmente agravada com a acção do governo PSD/CDS, que, espalhando o desemprego e a pobreza, roubando nos salários e nos rendimentos, destruindo postos de trabalho e serviços públicos, maltratando a cultura, procurou garantir que o livro não desse o seu contributo no processo libertador do Homem.


Quando se comemorou o primeiro Dia do Livro Português, com um conjunto de iniciativas que incluía uma feira do livro, encontro com autores, cinema e música, foram recebidos milhares de textos de crianças de vários níveis de escolaridade sobre o livro e a leitura. Um deles, de uma criança de 9 anos, apresentava esta definição: «um livro para mim é um coração novo muito vermelho». Precisão científica. De facto, o livro, carregado de vermelho, pode trazer consigo um coração novo. Coração que bate mais forte quando bate com outros na mesma cadência.

http://avante.pt/pt/2208/argumentos/139582/

Domingos Lobo Esteiros, 75 anos depois


  • Domingos Lobo
Quando o real se transformou
em arte socialista




1941, ano da publicação de Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, é, apesar da desregulação social e política que a guerra estabelece, e da opressão generalizada, um período de alguma agitação no meio político e literário, tanto pelo agudizar das contradições que o conflito vem instalar nas relações entre as diversas classes sociais, manifestando-se de forma mais incisiva nas zonas industriais e de latifúndio, quer pela ameaça real de a guerra se expandir para Leste (a Alemanha preparava-se para invadir a URSS), quer pela contínua resistência que as forças progressistas travam contra o fascismo luso, a partir de acções de massas, na denúncia do agravar da repressão, do desemprego, das condições de vida e de trabalho e o flagelo da fome que atingia sobretudo as classes economicamente mais frágeis.


Os alemães, fazendo pressão sobre o governo de Salazar, tendo por causa o volfrâmio, torpedeiam o cargueiro Ganda e os vapores Corte Real e Cassequel; com mais subtileza, mas prefigurando a mesma intenção de cerco e influência, a Universidade de Oxford, obedecendo a uma «sugestão» do governo inglês, atribui a Salazar o título de doutor honoris causa; há greves de estudantes e dos operários têxteis da Covilhã. O País sofre a acção de um ciclone devastador.


No campo da acção e intervenção cultural, nesse ano de 1941, Alves Redol publica Marés, Fernando Namora Terra, Bento de Jesus Caraça Conceitos Fundamentais da Matemática, João José Cochofel Sol de Agosto, Joaquim Namorado Aviso à Navegação, Manuel da Fonseca Planície, Mário Dionísio Poemas e Sidónio Muralha Beco; inicia-se a publicação dos cadernos de poesia Novo Cancioneiro. Livros que vêm contribuir, face ao comprometimento social que expressam, para uma mais apurada, interventiva e abrangente reflexão sobre as complexidades relacionais entre a arte literária e o real avassalador desses dias de brasa; o mundo objectivo do trabalho e da exploração que o envolve, fazendo com que essa relação se torne mais clara, dialéctica e consciente, impondo uma visão humanista do mundo e uma linguagem que se opunha aos desvarios modernistas de Marinetti e D’Annúnzio, que os escribas salazarentos de serviço adoptariam como modelo de intervenção literária e filosófica (António Ferro, Augusto de Castro, Fernanda de Castro, João Gaspar Simões, António Quadros, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, etc.), e às confusões estético/conservadoras dos presencistas, que correspondiam «a um certo ambiente de cepticismo quanto aos ideais oitocentistas e republicanos de progresso que se relaciona com o colapso do liberalismo em 1926, e por isso os presencistas aspiram, em geral, a uma literatura e uma arte desarticuladas, se não mesmo alheadas, de qualquer doutrina directamente interventora».1 Pressupostos teóricos, estéticos e políticos em tudo opostos aos do neo-realismo.

O aparecimento de Esteiros, edição que exibia uma belíssima e expressiva capa desenhada por Álvaro Cunhal, vem aprofundar o caminho de descoberta e denúncia social, iniciado com Gaibéus, de Redol, incidindo a obra de Soeiro e a sua especulação político-social sobre os universos da exploração do trabalho infantil, cujas coordenadas mais abjectas escapavam às consciências burguesas e a grande parte da intelectualidade urbana.


Soeiro Pereira Gomes introduz no discurso literário deste exemplar romance, dados sociológicos novos, uma linguagem sensível e arguta que mergulha fundo nesse nicho de desprezível exploração, dado que exercida sobre os mais indefesos elementos da base social, levando o leitor a tomar consciência dessa realidade, da vida agreste desse núcleo sobre o qual o fascismo exercia toda a sua inumana brutalidade, exibindo sem disfarce a infâmia ideológica e funcional que o estruturava – essas vulneráveis ilhas humanas, ainda não inscrito no corpo diegético do neo-realismo: o mundo da infância e da pré-adolescência, da miséria que invade, desde o berço, esse território que queríamos de descoberta e construção do ser, invadido de forma violenta pela ganância que vai destruindo sonhos, capacidades, modos outros de crescimento e realização pessoal e colectiva; um mundo do desenrasca, da luta quotidiana por um naco de pão para enganar a maligna, do trabalho escravo nos telhais, da rebeldia, da ternura, do companheirismo, da aventura e da transgressão – esse universo épico, que o verbo dorido e sensitivo de Soeiro Pereira Gomes trata e percorre com objectividade e plena maturidade formal e sintáctica; a expressiva utilização do linguajar das gentes da beira Tejo, doseando de modo exemplar o drama e o jocoso popular com a agudeza de análise das contradições da burguesia, o gradual cinismo que os títeres em presença estabelecem entre si, Castro vs. Zé Vicente, para melhor definirem os campos da usura e o espaço que a ambos cabe na refrega da cupidez. Castro usando, sabido e matreiro, controlada impudência; Zé Vicente, exercendo sem rebuços a violência física e económica sobre os assalariados, que dependiam da parca jorna, ganha de sol a sol nos telhais, para iludir a fome: «Se eu pudesse baixar, um escudo que fosse, àquela gente...», pensa Zé Vicente, a pressentir-se já apeado da pileca e da pose afidalgada de outrora – intuindo a ameaça que a Fábrica Grande representa para os seus modos de vida e de exploração. Zé Vicente, espoliado do espaço em que assenta o seu telhal, regressará à condição de pobreza e à proletarização; Castro, vendo partir para a Fábrica os braços que tanta falta lhe fazem nos campos, pressente que outros tempos virão, que o progresso social que a Fábrica representa, começará a invadir o seu espaço, que o medo, a cobiça, o seu sorriso enigmático e cínico, e o seu modo de exploração feudal poderão ter os dias contados.2


Uma galeria mínima, mas exemplar, de senhores deste microcosmos da margem Norte do Tejo, que Soeiro Pereira Gomes caracteriza de forma acutilante, juntando-lhe um bando de subalternos menores que contribuem, sujando as mãos e traindo a classe a que, por origem, pertencem, para que a exploração perdure e se torne norma: mestre Zarolho, o Cabo de Mar, os rendeiros da Quinta Alta e a GNR, braço armado do poder fascista.


Soeiro cria, com Esteiros, um fresco denunciador da sordidez que o fascismo luso exibia nas suas invisíveis margens (onde os tiques da ignomínia foram mais profundos e duradouros), na análise que constrói, ancorado nos traços significantes da matéria social e histórica que dominava a Europa – o feroz capitalismo ungido no terror –, no modo como elabora, a partir das personagens principais (Gineto, Gaitinhas, Maquineta, Sagui) a representação realista e modelar desse período, das circunstâncias atípicas em que a sua acção (partindo do particular para o colectivo) nele se desenvolve, marcando as componentes teóricas que condicionaram o desenvolvimento do País nessa fase histórica (1930/40), fazendo-o através do narrador e da coerência ideológica com que este intervém na diegese, num permanente e eficaz registo crítico, autodiegético, expondo dialecticamente o conflitual evoluir do discurso literário. Soeiro é, em Esteiros e, mais tarde em Engrenagem, um intelectual, como o definia Gramsci, que conseguiu juntar teoria e prática, transformando a sua escrita em processo histórico real.

Inventariando as condições de vida e de trabalho de uma comunidade, a dos putos dos telhais e dos seus progenitores, em circunstâncias específicas (a da aprendizagem, por métodos extremos, do modo de exploração capitalista), Soeiro Pereira Gomes diz-nos da luta que é necessário travar contra o poder burguês, a sua visão do mundo, desse modo estabelecendo parâmetros para a superação dos cercos impostos por uma política de terror, despótica e discricionária que lhe dá guarida, suporte e protecção.


Nas determinantes estéticas e conceptuais de Esteiros, para além do preclaro alinhamento com a corrente neo-realista sendo, na produção literária do movimento, uma das suas obras de referência, e do qual Soeiro é um dos principais obreiros, revela-se a determinante eficácia com que consegue superar as contradições herdadas do realismo burguês, refazendo alguns tiques estéticos do naturalismo, introduzindo no discurso um vigoroso e assertivo exercício de análise social; as circunstâncias e consequências das contradições sociais da burguesia, clarificando opostas concepções da vida e do mundo, os critérios de classe que se expressam através dos códigos da linguagem (o filho do Castro é Arturinho ou o menino, o Gaitinhas, que com ele brinca, é apenas o João ou o rapaz) recorrendo aos métodos analíticos do marxismo3 e aos princípios filosóficos e humanistas do realismo socialista, que Soeiro, com hábil sageza, inscreve no corpo textual.


Também os afectos, a cumplicidade, as condições económico-sociais como entrave a que os sonhos se cumpram, mesmo os sonhos mais ingénuos que se derretem pelos declives da impotência, atravessada de raiva e de ternura: – E o teu pai? – perguntou Gineto.


O filho de Madalena olhou a névoa que ensombrava o horizonte...


– Está muito longe. – E a medo, como se revelasse um crime: – Queria que eu fosse doutor.


A voz de Gaitinhas era de lágrimas cristalizadas. E Gineto teve pena que ser doutor não fosse coisa que se roubasse.

«A consciência do homem não só reflecte o mundo objectivo, mas cria-o»4 É a partir desta consciência, da encenação do real e das suas circunstâncias, as atmosferas e as tipicidades de um determinado tempo e lugar e da ideologia que lhe dá suporte – em Esteiros a componente estético/ideológica tem uma das suas expressões mais representativas –, que Soeiro parte para a tarefa de criar esse universo em que pode espelhar a sua particular reflexão sobre o mundo e idealizá-lo melhor e mais justo, desenhando nos sonhos de Gaitinhas-cantor, que irá pelo mundo à procura do pai, esse supremo desígnio: voltar, dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais. Ou seja, encenando a matriz social em que as necessidades materiais vivam a par com as necessidades lúdicas, físicas e culturais, que permitam aos oprimidos libertar-se do jugo dos opressores. Soeiro tem plena consciência do papel activo e crítico que cabe ao escritor que quer agir sobre o real como contributo para a tarefa comum de transformar a vida.


Os grandes escritores do neo-realismo, ou a ele ligados por laços de companheirismo militante, inscreveram em alguns textos a condição social dos jovens, a partir das suas raízes de classe, elo mais fraco na cadeia de exploração capitalista, fazendo-o com ductilidade, lirismo, expressivo afecto. Os meninos pobres ou, como as sacrossantas almas neoliberais propagam, useiras e vezeiras em criar módulos semânticos que diluam a realidade, filhos de famílias desfavorecidas, como se a ganância capitalista fosse um jogo de roleta e a pobreza um contínuo jogo de azar, percorrem, com maior ou menor grau de intervenção crítica dos seus autores, alguns títulos do melhor que a literatura em português produziu no século XX: Capitães da Areia, de Jorge Amado; Bonecos de Luz, de Romeu Correia; Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos, de Alves Redol e Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira.


Em Micropaisagem, do livro O Aprendiz de Feiticeiro, Carlos de Oliveira deixa-nos este impressivo testemunho: A paisagem da infância não é nenhum paraíso perdido mas a pobreza, a nudez, a carência de quase tudo. É desta certeza, desta nudez e da carência de quase tudo, da situação social dos putos da beira Tejo, que o autor de Contos Vermelhosnos diz com extrema serenidade discursiva, mas atingindo o cerne do sistema que conduz a este estado de coisas – daí a sua recorrente actualidade.


Soeiro traz para a literatura portuguesa, inscrevendo-a na modernidade, um modo singular de abordagem dos fenómenos estruturais da usura capitalista, um estilo que dilui no discurso ficcional os propósitos sócio-políticos que a determinam, fazendo-o com hábil sagacidade, com evidente optimismo, não escamoteando os aspectos sórdidos da realidade que descreve, penetrando esse universo cercado dos homens, mulheres e crianças que do rio e suas margens tiram o parco sustento, abordando com pertinaz sensibilidade as linhas definidoras de um onirismo infantil e da prática adulta da sobrevivência.


Soeiro Pereira Gomes traz para Esteiros problemas novos, que a estética de afirmação libertária amplia, que configuram a representação de agentes singulares, esse coro de meninos/homens, que actuam na trama romanesca como intérpretes de um período histórico imoral e violento: crianças sujeitas a escravidão de classe num tempo de terror. Os jovens protagonistas de Esteiros são heróis positivos, dado que vítimas de uma engrenagem social poderosa que eles, com a rebeldia dos verdes anos tentam, no modo ingénuo de fugir ao cerco, subverter com pequenas, marginais tropelias. Personagens que agem e respiram dentro do seu espaço e do seu meio social: o rio, os telhais, os becos e os casebres onde habitam, os pomares que assaltam, o lodo dos esteiros. Um mundo onde as suas pequenas espertezas de meninos não fariam eco, não fora o facto de terem nascido em condições adversas, de extrema pobreza, e num tempo injusto e, por essa circunstância, estarem vulneráveis, sujeitos a todas as formas de espoliação e cerco. É a análise fecunda, a arguta sensibilidade que implica ao descodificar a particularidade social e política que descreve, o modo narrativo, o lírico/épico como envolve no discurso este núcleo de homens e crianças, que vivem e lutam por sobreviver num mundo e num tempo que lhes é hostil, que torna Soeiro Pereira Gomes um dos autores mais relevantes do período intenso e estrutural do nosso neo-realismo, o seu dinâmico humanismo, na vertente do realismo dialéctico, trazendo a literatura, a sua voz ficcional, como mais tarde o fará Manuel Tiago, para o vasto território da luta de classes e das mais justas expectativas políticas e sociais do nosso povo.

Soeiro transporta para Esteiros alguns elementos definidores da arte realista, encenando no seu corpo discursivo uma análise objectiva, crítica e duríssima sobre o tempo histórico que ficciona; no rigor com que olha e descreve a realidade que percepciona, na linguagem que utiliza para expressar e combater a intolerância e a ignomínia, no modo sensitivo como percorre os quotidianos sofridos da malta dos telhais, seus desesperos e medos, os seus parcos dias de festa, na Feira, lugar de sonho e de respiração, o tempo breve da felicidade em que se tornam, por escassos momentos, de novo meninos fascinados pelas luzes do carrossel, pelos ruídos mágicos que envolvem o terreiro, pelos bolos ou pelos olhos solares da Rosete, e os dias sofridos no Telhal Grande, de sol a sol, descalços, pisando brasas e vertendo sangue, ao mando das vozes cavernícolas do Má-Cara e do Carraça: – Traz mais bolas, filho dum boi! Se vou aí, inté te borras todo; Langão!, Carreguem-lhe no peso.... É um olhar fecundo, humano, que o autor de Engrenagem verte sobre este mundo agreste, no modo seguro como estrutura este seu primeiro romance – Soeiro tinha 32 anos à data da sua publicação –, no apuro oficinal como a denúncia de um tempo social e de um regime político opressor nele se incorporam; nos sintagmas estilísticos, na abordagem esquemática do seu ordenamento fabular, na relação que estabelece entre a literatura e a realidade histórica – é já o realismo socialista, pontuado por uma hábil, inventiva voz lírica, que nesta obra-prima desponta.


Obra que devolve, como nenhuma outra, à nossa consciência colectiva, o tempo da rebeldia e da ternura, as falhas de carinho, o medo, o companheirismo, os traços de uma infância perdida na lama dos esteiros, o mágico-simbólico dos sonhos crepusculares, esse território oculto das crianças a quem roubaram os melhores anos da vida: o crescimento harmónico, a arte de brincar, de saber escrever as cartas de amor para as Rosetes que nos acasos da vida nos sobressaltam; compreender os mecanismos que fazem andar o mundo e proceder à sua paulatina aprendizagem. Gineto, Sagui, Malesso, Guedelhas, Maquineta, Coca, Gaitinhas, rapazes a descobrirem a vida, sós e aflitos, pelos caminhos cruzados do medo, da miséria, da violência dos mandantes, «Se não se calam, racho um!», o lado sórdido de um futuro pardo, minguado de horizontes: Gineto marinheiro, fugitivo dos telhais e dos açoites das sombras, salteador de laranjais, a quem o pai nem sonhar deixava; Gaitinhas que queria ser doutor e não pôde concluir a escola primária para ir trabalhar no Telhal Grande; Sangui que dormia na Capela Velha e brincava com o seu infortúnio para espantar o medo: «agora sou um santo»; a mulher que perdeu o filho nas cheias e continuava com os braços dobrados sobre o peito a engalhar o vento; a luz que de noite se acende no lugar onde as águas tragaram o Malesso; Maquineta que se quedava extasiado com o ruído das máquinas da Fábrica Grande, não sabendo que ela representava uma mais sofisticada forma de exploração; a ternura pela Doida e a sua colectiva, solidária defesa; o relógio de Maria do Bote, esse sonho antigo a desfazer-se nas mãos do agiota em troca de um naco de pão.


Mas há sempre, na literatura como na vida, cadinhos de sol, uma luz que se acende na noite: Gineto que espera, face encostada às grades da enxovia, o regresso à vida livre – afinal, foi preso por roubar laranjas, ou um pão, tanto faz. Sonha que o Gaitinhas, o Maquineta, o Sagui ou o Tom-Mix dos filmes, o virão libertar e ele possa, uma vez mais, ir à Feira e debruçar os olhos sedentos de ternura nos olhos da Rosete; Gineto sonha mas não sabe que Gaitinhas anda já pelo mundo em busca dessa estranha, misteriosa coisa que faz os homens maiores que a sua altura, e quando a encontrar é ele que virá libertá-lo e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos.



Apoios:

Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes – Publicações Europa-América/1972

Soeiro Pereira Gomes e o Futuro do Realismo em Portugal, de Álvaro Pina – Editorial Caminho/1977

Literatura e Luta de Classes, de Augusto da Costa Dias – Editorial Estampa/1975

Ilse Losa: Vida e Obra, de Ramiro Teixeira – AJHLP/2015

No Centenário do nascimento de Soeiro Pereira Gomes (2009), de Vítor viçoso, in Nova Síntese, nº.4



História da Lit. Portuguesa, de Óscar Lopes e António José Saraiva, pág. 1091, 8ª. edição/1975, Porto Editora

2 Redol traria a seu modo, estes medos (o da emancipação dos oprimidos face à opressão monarco-feudal exercida sobre eles) dos senhores da terra, os Relvas deste mundo, opondo o trabalho rural à esperança que a industrialização representava, para o romance Barranco de Cegos.

3 O conjunto das relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e às quais correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida social condiciona, na sua generalidade, o processo da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, é, inversamente o seu ser social que determina a sua consciência. In “Contribuição para a Crítica da Economia Política” Karl Marx

4 Lénine, Cadernos Filosóficos

http://avante.pt/pt/2208/temas/139581/

Pedro Homem de Mello - Remorso

* Pedro Homem de Mello

Lembro o seu vulto, esguio como espectro
Naquela esquina, pálido, encostado
Era um rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

De mãos nos bolsos e de olhar distante
Jeito de marinheiro ou de soldado
Era um rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Quem o visse, ao passar, talvez não desse
Pelo seu ar de príncipe, exilado
Na esquina, ali, de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Perguntei-lhe quem era e ele me disse:
_ Sou do monte, Senhor, e seu criado.
_ Pobre rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Por que me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente esteve um condenado?
_ Vai-te, rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!

Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço
Indiferente à raiva do meu brado
E ali ficou, de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Ali ficou... E eu, cínico, deixei-o
Entregue à noite, aos homens, ao pecado
Ali ficou, de camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado...

Soube eu, depois, ali se perdera
Esse que eu só pudera ter salvado
Ai! do rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado!


quarta-feira, 23 de março de 2016

Jorge de Sena - CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA



* Jorge de Sena

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 

É possível, porque tudo é possível, que ele seja 
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 
de nada haver que não seja simples e natural. 
Um mundo em que tudo seja permitido, 
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 
ainda quando lutemos, como devemos lutar, 
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 
ou mais que qualquer delas uma fiel 
dedicação à honra de estar vivo. 
Um dia sabereis que mais que a humanidade 
não tem conta o número dos que pensaram assim, 
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, 
de insólito, de livre, de diferente, 
e foram sacrificados, torturados, espancados, 
e entregues hipocritamente â secular justiça, 
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.» 
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, 
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas 
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, 
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, 
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, 
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. 
Às vezes, por serem de uma raça, outras 
por serem de urna classe, expiaram todos 
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência 
de haver cometido. Mas também aconteceu 
e acontece que não foram mortos. 
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, 
aniquilando mansamente, delicadamente, 
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, 
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha 
há mais de um século e que por violenta e injusta 
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, 
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria 
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. 
Apenas um episódio, um episódio breve, 
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis) 
de ferro e de suor e sangue e algum sémen 
a caminho do mundo que vos sonho. 
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la. 
É isto o que mais importa - essa alegria. 
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto 
não é senão essa alegria que vem 
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém 
está menos vivo ou sofre ou morre 
para que um só de vós resista um pouco mais 
à morte que é de todos e virá. 
Que tudo isto sabereis serenamente, 
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 
e sobretudo sem desapego ou indiferença, 
ardentemente espero. Tanto sangue, 
tanta dor, tanta angústia, um dia 
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - 
não hão-de ser em vão. Confesso que 
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos 
de opressão e crueldade, hesito por momentos 
e uma amargura me submerge inconsolável. 
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 
quem ressuscita esses milhões, quem restitui 
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 
aquele instante que não viveram, aquele objecto 
que não fruíram, aquele gesto 
de amor, que fariam «amanhã». 
E. por isso, o mesmo mundo que criemos 
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 
que não é nossa, que nos é cedida 
para a guardarmos respeitosamente 
em memória do sangue que nos corre nas veias, 
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não amaram porque lho roubaram.


Lisboa, 25/6/1959
Jorge de Sena
Poesia II
Lisboa, Edições 70, 1988

Gravura - Francisco de Goya-Os Fuzilamentos de 3 de Maio na Montanha do Príncipe Pio

terça-feira, 22 de março de 2016

PORQUE SOU COMUNISTA - por Picasso


PORQUE SOU COMUNISTA

A minha adesão ao partido comunista é a evolução lógica de toda a minha vida, de toda a minha obra. Porque, e estou orgulhoso de o dizer, nunca considerei a pintura como uma arte de simples prazer, de distracção; quis, através do desenho e da cor, pois estas eram as minhas armas, ir sempre mais avante no conhecimento dos homens e do mundo, para que esse conhecimento nos liberte um pouco mais todos os dias; tentei dizer, à minha maneira, o que considerava mais verdadeiro, mais justo, melhor, e isso era, naturalmente, sempre o mais belo – os maiores artistas sabem-no bem.

Sim, tenho consciência de ter sempre lutado pela minha pintura como um verdadeiro revolucionário. Mas agora percebi que isso não basta; estes anos de terrível opressão mostraram-me que eu devia não apenas combater com a minha arte, mas também todo eu …

Então fui ao encontro do partido comunista sem a menor hesitação, pois no fundo estive sempre com ele. Aragon, Éluard, Cassou, Fougeron, todos os meus amigos o sabem bem; e se ainda não tinha aderido oficialmente era de certo modo por  “inocência”, porque  acreditava que a minha obra e a minha adesão de coração eram suficientes, mas era já o meu partido. Não é ele que mais trabalha para conhecer e construir o mundo, para tornar os homens de hoje e de amanhã mais lúcidos, mais livres, mais felizes? Não foram os comunistas os mais corajosos tanto em França como na URSS ou na minha Espanha? Como poderia hesitar? Medo de me comprometer? Mas nunca eu me senti tão livre, pelo contrário, senti-me mais completo! E além disso, eu tinha tanta pressa de encontrar uma pátria: sempre fui um exilado, agora já não o sou; à espera que a Espanha possa enfim acolher-me, o partido comunista francês abriu-me os braços, e aí encontrei todos aqueles que mais estimo, os maiores sábios, os maiores poetas e todos aqueles rostos de insurrectos parisienses tão belos, que vi durante os dias de Agosto. Estou de novo entre os meus irmãos.
  
L’Humanité, 29-30 Outubro 1944

http://aspalavrassaoarmas.blogspot.pt/2016/03/porque-sou-comunista-por-picasso.html

segunda-feira, 21 de março de 2016

Alice no país das maravilhas matemáticas




Alice no país das maravilhas matemáticas

No 150º aniversário da primeira edição em inglês de Alice no País das Maravilhas – e no 75º da sua estreia em português (do Brasil), nada como uma volta às “maravilhas” matemáticas escondidas no celebérrimo livro de Lewis Carroll.

Apesar de muitos terem dado os parabéns à Alice e às suas loucas aventuras em 2015, quase se poderia dizer que foram parabéns de não-aniversário, como diria o próprio Lewis Carroll (1832-1898), autor do celebérrimo livro Alice no País das Maravilhas.
É que, olhando melhor, a data que aparece na primeira edição oficial do livro no Reino Unido – bem como nos EUA – é… 1866. Ou seja, The Adventures of Alice in Wonderland faz este ano 150 anos.
A razão para só agora felicitarmos é, por isso, totalmente legítima. Mas, como as coisas não podiam ser assim tão simples, é verdade que há uma primeiríssima edição de Alice, de 2000 exemplares – essa sim, datada de 1865 –, mas ela foi, segundo relata o norte-americano Gordon Norton Ray (1915-1986), especialista da época vitoriana e coleccionador de livros, rapidamente retirada do mercado porque a qualidade da impressão não era do agrado de John Tenniel, ilustrador da obra. Mas há mais complicações: apesar de a primeira edição oficial ter sido publicada em Novembro de 1865, o ano que surge na capa daquela edição é de facto 1866, como se de um absurdo erro de lógica ao estilo de Lewis Carroll se tratasse. Quinze anos mais tarde, em 1871, Lewis Carroll publicaria a sequela, Alice do Outro Lado do Espelho.
Seja como for, em 1931 – há 75 anos, portanto – também era publicada a primeira tradução de Alice no País das Maravilhas em português, pela mão do escritor brasileiro Monteiro Lobato (o mesmo do Sítio do pica-pau amarelo). Temos assim não um, mas dois números redondinhos para desejar muitos anos de vida à pequena-grande heroína destas estrambólicas aventuras.
O livro tornou-se um best-seller quase instantâneo entre miúdos e graúdos e desde então já foi traduzido para 180 línguas e adaptado para o cinema, em particular por Walt Disney e Tim Burton.
A personagem central de Alice no País das Maravilhas é inspirada numa menina chamada Alice a quem, reza a história, Charles Dodgson, matemático e diácono britânico, contara pela primeira vez, de improviso, as aventuras da sua homónima imaginária durante um passeio de barco no Tamisa em 1862. Todavia, naquela primeira versão do relato faltavam episódios fundamentais – tais como o lanche com o Chapeleiro Louco ou o sorriso do Gato de Cheshire a flutuar no ar. Dodgson demoraria três anos a aperfeiçoá-lo e publicaria a versão final sob o pseudónimo de Lewis Carroll.
Absurdo universal

Por que é que as aventuras de Alice continuam a ser tão fascinantes ao fim de 150 anos? Parece óbvio que o lado absurdo das situações em que a menina cheia de curiosidade se vê envolvida não é alheio à atracção que estes textos exercem sobre os leitores – mesmo quando estes não percebem totalmente do que se trata.

“Não há quase nenhum enigma ou problema fascinante para o intelecto humano que não [surja] nestes livros num clima de louca alegria e de difícil compreensão”, escrevia há uns meses o ensaísta norte-americano Adam Gopnik na revista New Yorker.
E a seguir, exemplificava: “Quando Ted Cruz [candidato às primárias do Partido Republicano para as presidenciais deste ano nos EUA] explicou recentemente (…) que não pode existir um consenso científico sobre o aquecimento global porque os cientistas são supostamente críticos – sendo portanto que o que é consensual não pode ser científico –, estava a produzir uma absurdidade aparentemente lógica” digna do próprio Humpty Dumpty.
As aventuras de Alice no país das maravilhas já foram interpretadas à luz da linguística, do mundo da infância, da psicanálise, da lógica, da política, da sociologia. E, a partir dos anos 1960, o norte-americano Martin Gardner, divulgador da ciência conhecido pela sua célebre coluna Mathematical Games na revista Scientific American, foi o primeiro a descodificar, ao longo de várias edições do seu igualmente célebre The Annotated Alice, muitos dos enigmas matemáticos e jogos de palavras contidos nos livros de Alice.  
Todavia, o papel da matemática – e em particular da álgebra – nestes livros foi relativamente descurado até recentemente. Diga-se que, quando Lewis Carroll publicou o seu primeiro Alice, era professor de matemática na Universidade de Oxford há uns dez anos. Ora, precisamente nesse local e nessa época, a álgebra moderna – uma álgebra mais abstracta, contra-intuitiva – estava a nascer. E o diácono Dodgson era um religioso e um matemático muito conservador.
Subtexto crítico

Haveria assim, nos livros de Alice, um subtexto de crítica ao que estava a acontecer na sua área de estudo e ensino por parte do seu autor?

Foi em 1984 que Helena Pycior, matemática e historiadora da Universidade do Wisconsin (EUA), emitiu essa hipótese. Num artigo publicado na revista Victorian Studies, esta cientista argumentava que “os livros de Alice encarnam as apreensões de Dodgson, o matemático, acerca da chamada álgebra simbólica, o principal contributo britânico para a matemática da primeira metade do século XIX”.
Vinte anos depois, Melanie Bayley, da Universidade de Oxford, estava a fazer um doutoramento em literatura da época vitoriana quando quis perceber o que teria levado Lewis Carroll a enriquecer de tal maneira a versão inicial de Alice, ao ponto de lhe duplicar o número de páginas.
Houve um artigo que interessou esta investigadora mais do que os outros: o texto que Helena Pycior publicara em 1984. “O século XIX foi um período turbulento para a matemática”, escreveu Melanie Bayley em 2009 na revista New Scientist, “com muitos novos conceitos controversos tais como os números imaginários [um sistema numérico onde os números negativos têm uma raiz quadrada] a serem cada vez mais aceites pela comunidade dos matemáticos”.
E dá mais um passo: “Ao colocarmos Alice no País das Maravilhasneste contexto, torna-se claro que Dodgson, um matemático teimosamente conservador, terá usado algumas das cenas acrescentadas para fazer uma sátira dessas novas ideias radicais.”
Melanie Bayley faz notar que Lewis Carroll era um ferrenho defensor do rigor do raciocínio patente n’Os Elementos de Euclides, o matemático da antiguidade grega que nos deu as bases da geometria e da trigonometria. A partir de “verdades irrecusáveis” (axiomas), a geometria euclidiana enuncia e demonstra, com passos lógicos simples, teoremas complexos.
Para Lewis Carroll, diz Melanie Bayley, a nova matemática abstracta era absurda. E, para a criticar, argumenta, recorreu, no Alice, à técnica euclidiana dita de “redução ao absurdo”. Como? Levando as premissas dessa nova matemática até às suas últimas consequências lógicas, “com resultados malucos”, explica Melanie Bayley. “O resultado é Alice no País das Maravilhas, conclui.
O lanche dos quaterniões

Claro que a tese de Melanie Bayley é apenas uma teoria. Mas a explicação de alguns dos episódios do livro à luz desta interpretação das intenções de Lewis Carroll revela-se bastante convincente.

Um dos exemplos que a cientista analisa por este prisma é o muito conhecido episódio do lanche do Chapeleiro Maluco e da Lebre de Março.
Segundo Bayley, o que está a ser posto em causa nesta cena são uns estranhos números de quatro componentes (quatro dimensões) chamados “quaterniões”. Inventados em 1843 pelo matemático britânico William Hamilton, seguem regras complicadas de multiplicação. Em particular, esta operação não é comutativa neste sistema numérico: a ordem dos factores altera o resultado.
Apesar de parecerem totalmente abstrusos, os quaterniões têm aplicações práticas. “Recentemente, têm sido reconhecidos como uma das maneiras mais eficazes de comunicar informação sobre rotações a um computador”, lê-se por exemplo no site do Departamento de Matemática da Universidade Brown, nos EUA. Mas já na época de Carroll a importância dos quaterniões tinha sido reconhecida, na medida em que permitiam calcular rotações de forma puramente algébrica (o que significa, justamente, que hoje estes cálculos estão ao alcance de um programa de computador).
Todavia, salienta Melanie Bayley, Hamilton tinha passado anos a trabalhar com números com apenas três termos (uma para cada dimensão do espaço), mas só conseguia fazê-los efectuar rotações num plano e não no espaço tridimensional. E foi ao acrescentar uma quarta dimensão aos quaterniões que conseguiu o resultado pretendido. Só que, como Hamilton não percebia bem o que era essa quarta dimensão, achou natural supor que representava o tempo.
O que fez o céptico Lewis Carroll aos pobres dos quaterniões? Transformou os seus três primeiros termos respectivamente num Chapeleiro Maluco, numa lebre (de Março) igualmente louca e num arganaz (uma espécie de rato) cheio de sono, todos sentados bem juntinhos num dos cantos de uma grande mesa cheia de loiça para lanchar.
Onde está o Tempo? Alice é informada que o Tempo não veio à festa porque ele e o chapeleiro se zangaram um com o outro no mês de Março – e que, ainda por cima, para se vingar, o Tempo não deixa, desde então, a hora avançar para além das seis da tarde.
“Lendo esta cena com a matemática de Hamilton em mente”, escreve Melanie Bayley, “(…) esses três personagens não conseguem levantar-se da mesa, sendo obrigados a deslocarem-se constantemente à sua volta [ou seja, no plano da mesa] à procura de chávenas e pires limpos”. E infelizmente, como Alice não consegue substituir o Tempo, a sua presença só contribui para aumentar a confusão.
“Atrever-me-ia a dizer que, sem a feroz sátira de Dodgson dirigida aos seus colegas, Alice no País das Maravilhas nunca se teria tornado famoso e Lewis Carroll não seria recordado como o mestre sem rival da ficção do absurdo”, conclui a cientista.
https://www.publico.pt/ciencia/noticia/alice-no-pais-das-maravilhas-matematicas-1726556?page=-1

Texto do livro em 
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/alicep.pdf