segunda-feira, 14 de março de 2016

Almeida Faria - Ainda e sempre o Alentejo -

25

A mata dos eucaliptos é um silêncio de mar ao meio do dia; meio-dia, hora branca, meio-dia para todos, almoço para quem no tem; o deus do caos não tem aqui lugar, no seio dos eucaliptos acenando do alto uma luz de presença e de rumor do sol; perto cresce o viveiro dos eucaliptos finos, difíceis e pequenos, plantados com raiz funda durante o ano anterior, e dos pinheiros que os homens semearam e com força cresceram desde o ano anterior ao anterior; qual um golpe de machado certeiro e muito seco, estala um distúrbio ao longe de entre os ramos, um vibrar de asas para o vento e qualquer coisa de larvar com pêlos germinando; é o fogo; vem sobre os seixos respirando redondo um ritmo compassado e muito fundo num rugir de animais de dentro da floresta; nas águas houve círculos de peixes, um touro chorou dentro do mito e um cavalo com as crinas testeiras incendiadas e o peito branco de suor morreu sob uma nuvem; o fogo cobria a terra e o ar as águas, as cópulas dos elementos eram longas e lentas; dizem que o chefe que escapou ao fogo não voltou; um touro o levou e não o trouxe vivo; o seu gémeo e ele no ventre da virgem ficaram para sempre; o fogo estava ali, porém vinha de sempre, desde quando a terra se vestira de gente, de faunas e de flores, de florestas; no instante do fogo o medo se apossou dos homens da planície, a quem os deuses Ataegina e Corneus desapareceram; foi certamente então que vieram estrangeiros e lhes tiraram tudo, violaram as mães, estupraram as filhas; depois do fogo não mais nasceram sémenes das flores e as serpentes fugiram para as águas, os seus olhos não mais arrebataram aves, e os gatos, sós como crianças deixadas nos portais das ruas de noite sem ninguém, miaram para ninguém; as águas infiltradas queimaram as raízes; porém foram plantadas muitas cruzes e elas frutificaram amplamente; dum fogo assim nasceu o Alentejo, e nele uma tragédia despida de horizontes; horizontes de fogo; mar de fogo; o fogo; fogo no Alentejo; pelas manhãs de verão, quando o calor fatiga como agora e, na vila, a gente se recolhe à sombra dos portais, ou em noites varridas de invernos e de ventos, quando em volta das braseiras se juntam as famílias (a pata do vento cobre a vila, com chuva nos telhados e a névoa, como um fantasma branco, doloroso e mudo, corre as ruas desertas, brilhantes de humidade, por onde passos fogem ao silêncio das casas; oh, medo que tudo invades e tudo deixas morto, a alma, se ainda existe, está nos corpos fechada, com gordura por cima, e braseiras e sono; o tempo já não é «número do movimento» e a ordem deste, o ritmo, não é mais, pois tudo está aqui como preso da morte; a vila dorme, dorme; quem imagina a vida de tantos seres pequenos, sem interesse e contudo querendo ser humana? O mísero empregado de cartório, de armazém, que à noite, sob essa luz mortiça e alta e sem calor do tecto, escreve e labora contas que os mortos só conferem, se conferem; ele trabalha, no seu trabalho sórdido, despido de horizontes e de esperança, para um certo senhor invisível, absurdo, que o vigia e domina pelos olhos da fome; sai do emprego tarde, gelado, sem paixão, aguentando a vida na sua iniquidade; para quê este trabalho, para quê estes escravos? (escravo, não te esqueças que és escravo, que a tua condição não é certa nem justa, antes velha, imunda e destrutível; não hesites, que o tempo não consente a hesitação; não penses na mulher nem nos teus filhos, mas só nos filhos dos teus filhos, nos netos que nascerem quando estiveres já morto, e que nascerão livres se quiseres; crê, escravo, quer; não adormeças de tal modo que um dia acordes escravo já para além da morte; não confies tudo à eternidade; o tempo não consente que continues dormindo pelo eterno a dentro; acorda, vive, vê; não te enroles no sono como na mulher quente; não te esqueças do tempo; que te lembres a tempo; põe o despertador antes das sete; estamos na primavera e às sete é já dia; toma cuidado não acordes demasiado cedo; é preciso, porém, estar preparado antes de vir o dia, e ouvir os mais pequenos movimentos da noite, com os seus velhos monstros paquidérmicos; é necessário que durmas vigilante, que descanses desperto; e que saibas o sabor negro do tempo; e que sejas por fim o próprio tempo) o senhor será sempre senhor, enquanto for; longe, talvez, nas remotas cidades, homens lutam e esperam por qualquer coisa outra; é possível, e achamos até que fazem bem; mas nós, os que aqui vegetamos enterrados há tanto, sujeitos a esta rotina sem apelo, por que esperaríamos senão pelo jantar? Senhor, tem piedade dos que arrotam de fome, e salva-os ao menos, como esperam, desta pocilga, lá, em outra parte; porque, se para isto nos fizeste, criaste, que havemos de pensar de ti senão bem mal, que podes limpar as mãos da bela obra feita? Que ao menos o jantar não esteja hoje salgado, e que a chuva e o vento acabem cedo, e que durmamos esta noite em paz; que ainda assim as nossas digestões sejam mais fáceis, e que o almoço de amanhã não esteja, Senhor Deus, salgado), subitamente surge um grito de sereia crescendo e decrescendo como quem pede auxílio; é o fogo, um desastre, uma faísca verde que caiu num montado e o incendiou de raiva; e os bombeiros acorrem, levantam-se se dormem, interrompem a merenda, o almoço, o jantar, deixam os seus trabalhos e, seguros, sem uma hesitação no olhar firme, correm para o quartel, vestem-se e partem; e os miúdos os seguem, vão gritando; e a vila agita a vida; Jó os segue também e pede que os deixem ir com eles, vai com eles; os carros vermelhos atravessam a vila buzinando, tocando, com o jeep e a maca de socorros atrás; o fogo agita a vida; e a vila acorda, vive, nasce sob o baptismo inicial do fogo.


Almeida Faria
 (A Paixão – 1963)

http://aspalavrassaoarmas.blogspot.pt/2016/03/ainda-e-sempre-o-alentejo-almeida-faria.html

Sem comentários: