No dia 23 de Março deste presente anno de
1748 pelas 6. horas, e três quartos da manhã, E dos horrorosos estragos, e
lamentaveis ruinas, que tem padecido a Cidade de Valença, Capital daquelle
Reino, e mais Lugares circumvisinhos, conforme as noticias communicadas até o
dia 27 do mesmo mez ao Capitaõ General, Arcebispo, e Intendente, e as que successivamente
vaõ chegando á Corte de Madrid, de donde se communicaraõ a esta de Lisboa_.
LISBOA. ´Na Officina de Francisco Luiz Ameno
Impressor da Congregaçaõ Cameraria da S. Igreja de Lisboa. Anno M. DCC. XLVIII _Com as licenças necessarias_.
Hum dos mais espantosos, e formidaveis
instrumentos, de que a indignação divina usa para castigar aos homens, saõ os
terremotos. He este fatal Meteóro hum ingrato filho da terra, que devendo a
esta a sua origem, e nascimento, tirannamente se lhe conspira, abrindo-a em
horrorosas cavernas, e patenteando-lhe os seus profundos interiores: he hum tiranno,
inseparavel companheiro da morte, que precipita nas dilatadas sepulturas, que
abre, innumeraveis vidas: hum violentissimo instrumento, que iguala os montes à
terra, e a terra ao Abysmo; e finalmente he huma invisivel furia, que fórma da
terra bocas para tragar os viventes, e darlhes a sepultura primeiro que a
morte. Diversas foraõ as opinioens filosoficas sobre a geraçaõ deste fatal
Meteóro. Seneca no primeiro livro das suas questoens naturaes, Melezetrio, e
Anaximenes com outros antigos Filosofos disseraõ que os terremotos se
originavaõ, quando nas concavidades da terra entrando alguma porçaõ grande de
ar, que se augmente, succede fecharse a caverna por onde entrou, e porque naõ
acha sahida, ficando violento, faz tremor. Thales Milesio, o qual affirmou, que
a terra nadava nas aguas subterraneas, disse que o terremoto procedia das
tempestades, que se originavaõ nas mesmas aguas. Democrito seguio diversa
opiniaõ, porque affirmou, que o terremoto nascia da grande violencia, com que a
agua pluvial se despenha para as concavidades da terra. Os Filosofos, que
seguiraõ a opiniaõ de ser o mundo animado, ensinaraõ que este horroroso movimento
naõ era mais que a desigual pulsaçaõ das arterias, e obturaçaõ dos meatos
vitaes da terra.
Outros escreveraõ, que nas entranhas da
terra cahem pedaços disformes de montes por concavidades, talvez carcomidas das
aguas, e que estes fazendo estremecer a
superficie, saõ a causa do tremor. Outros se persuadiraõ, que a abundancia das
exhalaçoens, e humidos vapores, que se geraõ na terra, quando saõ em tal
abundancia, que parece já naõ cabem, buscaõ desafogo; e ou arrebenta, ou treme,
ou se move a terra para os lançar fóra do ventre. Outros finalmente seguiraõ
diversas opinioens, que por brevidade omittimos; porèm os Filosofos modernos,
que com melhores luzes tem penetrado os occultos segredos da natureza, explicaõ melhor a geraçaõ deste Meteóro. Dizem que
se origina do fogo subterraneo, o qual comunicandose por occultos caminhos a
algumas cavernas cheyas de enxofre, salitre, carvaõ, e sal amoniaco as inflama,
de que nasce promptissimamente hum fogo impetuoso, que converte em hum instante
as materias salitrosas em vento; e como este naõ possa sofrer prizaõ alguma,
busca com violencia a porta, que a natureza lhe negou.
Daqui nasce impellir com furia os
fundam[~e]tos dos montes, e abrindo brechas pelas partes, que menos lhe
resistem, vencer tudo o que se lhe oppoem, até conseguir a natural liberdade,
de que se origina o tremor da terra, que em taes casos se sente com tanto
perigo de muitos, e horror de todos. Evidentemente se prova esta opiniaõ, com o
que se experimenta nas minas, que voaõ pela violencia da polvora. Inflamase
esta na oculta parte, que fabricou o Artifice no fundamento de huma torre, e appetecendo
pela oppressaõ, que padece mayor lugar, disbarata tudo o que encontra, e
fazendo tremer a terra visinha, leva pelos ares os edificios, que lhe
embaraçavaõ a liberdade. Toda esta violencia tem a polvora pelo salitre
misturado com enxofre, e carvaõ, de que se compoem: logo achandose nas
concavidades da terra estes, e outros materiaes mais poderosos, que duvida póde
haver, para que encendidos pelo fogo subterraneo hajaõ de fazer estes, e
mayores estragos; manifestando deste modo a natureza a sua indignaçaõ, quando
se vê privada da sua natural liberdade? Naõ movem os terremotos, como a
experiencia nos ensina, todo o globo da terra, mas sim algumas particulares
Regioens, o que horrorosamente testificaõ todos os seculos passados. Em o anno
de 346. tendo o Imperio Constantino Arriano, padeceo Rhodes hum taõ formidável terremoto,
que quasi se vio toda reduzida a ruinas.[1] S[~e]tio também Roma este mesmo
tremor por espaço de tres dias, e doze Cidades da Italia de hum só impeto se
sumergiraõ. No anno de 364. morrendo o Imperador Constancio Arriano se desfez
com hum horrivel terremoto grande parte de Constantinopla:[2] Honorio affirma,
que do mesmo tremor se viraõ arruinadas muitas Cidades do Oriente. Vindo Carlos
Magno no primeiro anno do seu Imperio à Cidade de Espoleto, houve hum terremoto
taõ violento, que cahiraõ por terra innumeraveis edificios, e entre elles o tecto
da Basilica de Saõ Paulo juntamente com as traves.[3] Tendo o Imperador
Theodosio o dominio do Imperio Romano, se vio em grande consternaçaõ a Cidade
de Constantinopla por causa de hum espantoso tremor de terra, que durou quatro
mezes continuos.[4] Possuindo o mesmo Imperio Tiberio Cesar, se submergiraõ em
huma noite na Asia doze Cidades pela violencia deste Meteóro.[5] No infausto
dia de 7 de Setembro de 1590. experimentou Vienna de Austria os crueis effeitos
deste inimigo do mundo, abrindo-a em horriveis bocas, e prostrando em terra a
torre de Santo Estevaõ, outra fundada na Ponte da Cidade, o Templo da Abbadia Escotense,
e outros muitos edificios.[6] He a Italia a parte da Europa mais sujeita ás
furias dos terremotos, como saõ testemunhas as muitas reliquias das Cidades
arruinadas. Perseguindo os Colonnas ao Papa Bonifacio VIII. levantou-se por
muitos dias em Italia hum taõ grande tremor de terra, que excedeo a todos, que
vivem nas tradiçoens, e nos escritos.[7] Em o anno de 1456. em que descançava a
Tiara Pontificia na cabeça de Callisto III. acommetteo a Italia outro terremoto
taõ excessivo, que Napoles, Capua, Apulha, com Toscana, e Veneza eraõ humas continuas
ruinas.[8] No anno de 1116. sentio Italia o mesmo mal por espaço de 40. dias
com tanta violencia, que mudou huma Villa para outro Lugar pouco distante.[9]
No anno de 1117. se subverteo por hum horrendo terremoto a Cidade de Calina em
Sicilia, servindo de sepultura a muitas mil pessoas infelices.[10] Muitos
exemplos de Cidades submergidas á violencia de terremotos podera narrar, se o
discurso, que pede huma breve Relaçaõ o permitisse. Discorrera sobre as ruinas
da Cidade de Sisinoe,[11] da Ilha de Peloponeso,[12] da Cidade de
Lisimachia,[13] de Antiochia,[14] em cujas ruinas morreraõ 15U homens; de
muitas Cidades do Oriente destruidas no quarto anno do Imperio de Constancio;
de muitos Lugares, e Villas de Finicia[15]; do tremendissimo terremoto, que padeceo
a Syria,[16] em cujo estrago perderaõ miseravelmente a vida muitas mil pessoas,
como refere Eutropio; da lastimosa consternaçaõ, em que se viraõ os moradores
da Cidade de Liorne do dominio do Graõ Duque de Toscana, no grande tremor que
sentio aquella Cidade aos 17 de Janeiro de 1742; e finalmente da grande ruina que
experimentou a Cidade de Lima no Reino
do Peru, no anno de 1747. a quem hum grande tremor sepultou huma grande parte.
Porèm deixo estes, e outros exemplos, que pela sua antiguidade ou saõ
desprezados, ou naõ saõ cridos; por que este presente anno nos offerece hum
destes estragos taõ lamentavel, que ao mesmo tempo nos faz lembrar, e esquecer
os antigos. Este he o que experimentou o Reino de Valença, na sua Capital
(_Valença_) e outros povos circumvisinhos no dia 23 de Março deste presente
anno de 1748 pelas 6 horas, e 3 quartos da manhã, segundo as noticias
communicadas até o dia 27 do mesmo mez ao Capitaõ General, Arcebispo, e
Intendente, e as que successivamente vaõ chegando á Corte de Madrid, de donde
se communicaraõ a esta de Lisboa. Referem estas, que no mesmo dia, e hora a
cima dita tremêraõ todos os edificios daquella Capital por espaço pouco mais de
hum minuto. Que a torre grande da Igreja Metropolitana da mesma Cidade chamada
o _Micalete_ sem embargo da grande fortaleza da sua fabrica tremeo nove vezes,
dando outros tantos golpes o badallo do sino mayor, cuja novidade consternou, e
poz em grande perturbaçaõ a todo o povo. Que na antiga Cidade de _Xativa_,
chamada hoje _S. Filippe_, que dista nove legoas da Capital, se experimentou
igual tremor ao mesmo tempo, e ainda com mayor violencia, porque se arruinou
parte do seu antigo Castello, ficou mui abalada, e maltratada a sumptuosa
fabrica da sua Igreja Collegiada, em que se trabalhava havia mais de cem annos,
ameaçando ruina a mayor parte das casas, e edificios daquelle povo. Que no Convento
dos Mercenarios se despegou a meya laranja, e se sobverteo o seu claustro, e a
escada. Que o dos Francìscanos Descalços ficou inhabitavel. Que as Religiosas
de S. Clara temendo a ruina total do seu Convento largaraõ a clausura havendo
executado o mesmo os moradores daquella Cidade procurando, e tomando asylo nas
casas mais pobres, e barracas dos seus quintaes, aonde formaraõ tendas de
campanha para sua habitaçaõ. Que na _Costera de S. Filippe_, que consta de
muitos povos, se submergiraõ inteiramente os dous chamados _Selent_, e
_Forrente de Boil_, sem que atégora se possa saber certamente o numero das
pessoas, que morreraõ nelles, ficando muito maltratados os mais circumvisinhos.
Que na Villa de _Montesa_ distante duas
leguas de _S. Filippe_, situada na falda de huma montanha, em cuja eminencia
havia hum Castello forte, aonde estava a Real Casa, e sagrado Convento de N. S.
de Montesa, e S. Jorge de Alfama, se experimentou o mayor estrago,
arruinando-se o Castello, e sepultando tres pessoas, que se achavaõ na
principal torre delle, e a Igreja, a tempo que o Prior dava a Communhaõ aos
noviços, morrêraõ todos em numero de 21 pessoas, e livraraõ sómente cinco, que estavaõ
alguma cousa distantes. Alli ficou sepultado o Archivo com os seus importantes
papeis, e documentos da Religiaõ; as preciosas Reliquias, ornamentos, e vasos
sagrados da Igreja, sendo o mais lamentavel naõ se ter ainda descuberto entre
as ruinas as sagradas fórmas, nem a Custodia, ou ambula, em que estava exposto
o Senhor ao tempo desta ruina: e á sua proporçaõ padeceo semelhante estrago o
resto das mais officinas. Que nos Lugares de _Anna_, _Alcantara_, _Valada_, e outros
povos distantes se sentio o mesmo estrago, destelhando-se algumas casas, e
arruinando-se outras, porque apenas fica Templo, nem edifício seguro nelles.
Que na Villa de _Enguera_ se arruinou a Igreja sepultando ao Cura, e mais tres
pessoas, que estavaõ nella. Aqui se deve advertir hum raro effeito da
Providencia divina, e he que tendo sahido pouco tempo antes da dita Villa para
restituirse a Valença, o Procurador do Convento do Soccorro da Ordem de S.
Agostinho montado em hum cavallo, e acompanhado de hum moço de pé, em distancia
de hum quarto de legua vio abrirse a terra, e sobverterse o criado, e
immediatamente succedeo o mesmo ao dito Religioso, que achando-se meyo
enterrado, o arrojou o furacaõ a huma azenha immediata, da qual sahio sem
acordo, e maltratado, e tornando logo a buscar o moço, e o cavallo, já naõ
achou sinal de nenhum delles, nem ainda vestigios do sitio em que os tinha
perdido, por cuja causa voltou a _Enguera_, aonde entrou prégando penitencia, e
contando o successo a todo o povo, que se achava em igual afflicçaõ. Queda Villa
de _Carcagente_ se sabe que a Igreja novamente fabricada se abrio, e tornou
logo a unir, cahindo dentro nella a grimpa do campanario, e o seu Cura morreo
de susto. Que de _Alcira_ se sabe terem padecido muito os Conventos de S.
Agostinho, e S. Bernardo, e a Igreja de S. Maria, arrancando a estatua de S.
Bernardo Martyr, que era de pedra, de extraordinaria grandeza, que estava sobre
a ponte, estendendo-se este damno ás mais Villas, e Lugares da ribeira de _Xùcar_.
Que no lugar de _Chella_ se abrio a Igreja de maneira, que entrou o Sol dentro
nella, e tornando-se a unir, ficou (ao que parece) boa, ainda que alguma cousa
arruinada; e que abrindo-se igualmente a terra pela parte do rio, que passa por
este lugar, sorveo a agua, deixando-o seco. Que _Venisa_, _Xabea_, _Calpe_,
_Denia_, e _Gandia_, que estaõ na costa do Mediterraneo, e Poente de Valença,
sem embargo da sua grande distancia, as comprehendeo o mesmo infortunio. Que
nas Villas de _Murviedro_, e _Castellon de la Plana_, que estaõ na mesma costa
para a parte do Levante, se sentio o mesmo estrago: e a Igreja dos Dominicos se
abrio de alto abaixo, e juntamente a escada do campanario, naõ send facil por agora averiguar, quãtas sejaõ as
pessoas, que tem perecido, nem o que importará o grande damno daquelle afflicto
Reino; mas sim que pelo seu Capitaõ General, e Arcebispo se tem dado toda a
providencia para implorar a divina misericordia com preces publicas, expondo as
imagens da sua devoçaõ, e patrocinio, concorrendo para o alivio dos necessitados
com suas esmolas; porque todavia continuava o terremoto no dia 27 em alguns
povos, especialmente em _S. Filippe, e Montesa_. Este he o horrendo castigo com
que Deos N. S. punio os peccados destes povos; e queira o mesmo Senhor que os
nossos naõ experimentem o mesmo castigo; porque a malicia dos homens faz
justificada a sua vingança.
FIM.
______________________
Notas:
[1] _Sigon. lib. 5. Imper. Occid._
[2] _Eutrop. lib. II._
[3] _Bonvisus, l. 6 cap. 15._
[4] _Paul. Diac. liv. 14._
[5] _Plin. l. 2._
[6] _Descrip. Vienna. Tab. 21._
[7] _Platina na vida deste Papa._
[8] _Sab. l. 6. Enn. 10._
[9] _Bonvis. lib. 6. cap. 15_
[10] _Robert. Ab. in Chron._
[11] _Paus. in Cor._
[12] _Diod. lib. 15._
[13] _Sab. l. 8. En. 4._
[14] _Sig. l. 17. Imper. Occid._
[15] _Strab. lib. 11_
[16] _Eutr op. lib. 10._
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terremoto succedido no Reino de Valença,
by Anonymous
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