Mariana
8 DE MARÇO DE 2016
NUNO MARQUES
FICÇÃO, MARIANA TORRES, OPERÁRIAS CONSERVEIRAS, SETÚBAL
A propósito das comemorações do Dia Internacional da Mulher e da inauguração de um merecido Monumento a Mariana Torres e às Operárias Conserveiras de Setúbal, dediquei a hora do almoço a rabiscar um pequeno texto de ficção, em jeito de singela homenagem a essas mulheres, que estendo a todas as outras neste dia em que é imperativo lembrar as tremendas desigualdades ainda existentes. E com a minha avó, operária conserveira toda a vida, no pensamento.
———-//———-
Acordou sobressaltada com o ecoar da longa sirene no silêncio da noite. Reconheceu o chamamento da Firmin Julien. Aconchegou os miúdos e deixou sorrateiramente a casa, feita de madeira e zinco. Desceu a encosta em passo apressado, mergulhando os pés descalços na terra argilosa e húmida. Quem se demora não tem trabalho. Uma vizinha, já velha e antiga conserveira, olha pelas crianças quando há trabalho. Se o cerco é bom a jornada pode durar vinte horas e estamos na época da sardinha. Tem de aproveitar se há trabalho.
No Tróino abrem-se portas donde saem outras mulheres para a escuridão da noite. Lembra-se, pesarosa, que Irene já não as acompanha. Era escorchadora, mas foi despedida, há tempos, por trazer embrulhadas num trapo escondido no regaço duas sardinhas, para matar a fome aos filhos. Aos 19 anos é viúva e tem a cargo três filhos. O homem da Irene, o Manel, faz sete meses que desapareceu no mar da terra nova, na pesca do bacalhau. A vida ficou ainda mais difícil. Uma mulher só aguenta a fome até que esta seja maior que os filhos. Vive agora da solidariedade de outras camaradas da fábrica e da caridade que, por vezes, desesperada implora às senhoras que passeiam na Avenida da Praia. Uma amiga, Odete, que tem marido soldador na fábrica dos Senhores Bentinhos, era quem mais ajudava, mas muitos soldadores estão a ser despedidos, desde que chegaram as máquinas. É vê-los deambular pela Fonte Nova, famintos, com as mãos feridas pelo rabo do chicharro.
Pela Irene e por todas as mulheres das fábricas, especialmente as cento e quinze que foram despedidas por não furar a greve, saíram para a rua, há semanas, a exigir aumento. Com elas vieram também os moços. Só os soldadores ficaram com os encarregados. Não viam as mulheres como suas camaradas, embora estas sempre tivessem sido solidárias com eles, em todas as lutas. Queriam apenas melhor pagamento pelo duro trabalho, que os patrões logo negaram. Fizeram demorada greve, e dolorosa, pois sem trabalho não há sustento. Mas com o insultuoso soldo que lhes pagavam também não havia futuro.
Sem as operárias para fazer a conserva, quiseram vender o peixe para fora, carregado em carroças. As mulheres saíram à rua para impedir a passagem, mas os industriais tinham a nova guarda da República a defender-lhes o lucro. Mariana, embora jovem, era a mais decidida e corajosa. Atravessou-se à frente da caravana e gritou “Não passarão!”, e todas atrás de si, em humana muralha. Mas a guarda carregou e da cabeça da luta fez o exemplo para furar o bloqueio. Mariana foi violentamente espancada à coronhada, mas não arredou. As demais vieram em seu auxílio e também os moços. Brandiam as espingardas no ar, distribuindo furiosas agressões. Ouviram-se tiros também, até que cada uma e cada um correram como puderam, a proteger-se. As carroças de sardinha seguiram, ladeadas pela guarda.
No chão ficaram mulheres e moços feridos, gritando de raiva e de dor. Mariana jazia imóvel e em silêncio. Quando as mulheres se abeiraram já só restava um corpo e rosto desfigurados pelo cunho do ódio. Alguém gritou “Mataram o António!” O moço fora fuzilado a tiro.
Mulheres e moços carregaram os seus camaradas defuntos. A terra da avenida ficará para sempre manchada com as marcas da vergonha dos assassinos e da memória daqueles que entregaram a vida pelos seus e pela luta de todos à sobrevivência. Os heróis dum povo que vive ajoelhado são os anónimos marianas e antónios que morrem de pé, porque a dignidade não tem preço.
Recorda com profunda mágoa estes acontecimentos. No Tróino agora as gentes caminham soturnas. Uns por tristeza, outros por desonrado pudor. No ar respira-se a tristeza e a fome.
Chega à fábrica e dão-lhe trabalho. Vai engrelhar, como é hábito. Dizem que a enviada veio carregada, pelo que a jornada vai ser longa. Quando a época da sardinha terminar escasseia o trabalho e aperta mais a miséria no estômago. Por enquanto, empilham-se à porta da fábrica caixas de latas de conserva, que seguem para França, carregadas de sangue e de vidas.
https://pracadobocage.wordpress.com/2016/03/08/8marcooperariasconserveirassetubalficcao/
Sem comentários:
Enviar um comentário