sábado, 29 de abril de 2023

Bárbara Reis - A culpa também é dos jornalistas

OPINIÃO COFFEE BREAK

Como é que o 25 de Abril foi mostrado na TV? Contar os segundos dados ao partido ajuda a perceber o “efeito Chega” nos media. Mas é preciso mais.

* Bárbara Reis
29 de Abril de 2023, 6:52

Quando não sabemos responder a uma pergunta, dizemos que “dava uma tese de doutoramento”. Ou seja, que é preciso tempo e trabalho para procurar a resposta.

É o caso da cobertura que os media fazem do partido português da direita populista e radical com assento parlamentar. Dão os media demasiado atenção ao Chega, “uma atenção desproporcional em relação ao que eles representam na nossa vida”, como disse no 25 de Abril o primeiro-ministro António Costa?

Regresso ao tema porque, na quarta-feira, alguns leitores escreveram-me para partilhar bons argumentos.

A melhor “carta” que recebi foi a de uma leitora com uma sensibilidade particular para o tempo.

Diz ela que não vê “muita televisão”, mas que ouve rádio e, na rádio pública, há muito que dá consigo a pensar: “Será que o que André Ventura pensa é assim tão relevante? Será que não estão os jornalistas inconscientemente a cair no risco de dar-lhe tempo, sem perceber que é apenas uma forma de populismo ele achar tudo mal, errado e ‘uma vergonha’, e insistir que tem sempre algo a dizer, mesmo que seja a repetição do que disse há dois ou três dias?”


É uma boa pergunta. Com essa dúvida, a leitora decidiu contar os segundos que a rádio pública dá ao Chega, isto no Inverno, “muito antes do escândalo da TAP e da figura triste que, mais uma vez, Ventura fez no 25 de Abril”.

Há uns meses, num domingo ao fim da tarde, “resolvi contar os segundos que lhe deram num noticiário na Antena 1”.

Resultado? Ventura “teve três vezes mais tempo do que Costa”. Nesse noticiário, o primeiro-ministro falou 20 segundos e o líder do Chega falou “quase 60, dividido em várias entradas”, escreve a leitora.

Que conclui: “Acho sinceramente que tem tempo a mais... Se alguém se desse ao trabalho de analisar isto enquanto simples dados estatísticos, a conclusão poderia ser assustadora sobre o poder que lhe está a ser oferecido pela antena aberta. Parece-me que tal não acontece proporcionalmente com mais nenhum partido, como o Bloco de Esquerda [BE], o PCP, a Iniciativa Liberal [IL] ou o PAN... Os segundos dados às declarações de Ventura são muitas vezes completamente desproporcionais ao resto do noticiário.”

Inspirada nesta “carta”, vi agora três noticiários do dia 25 de Abril com um cronómetro ao lado.

Os factos: de manhã, na Assembleia da República (AR), falaram Augusto Santos Silva e Luiz Inácio Lula da Silva; os 12 deputados do Chega ficaram de pé durante toda a sessão com cartazes a dizer que o presidente brasileiro devia estar na “prisão” e bateram com as mãos nas mesas sempre que alguém o aplaudia; Santos Silva irritou-se e disse, de dedo em riste, “chega de degradarem as instituições, chega de porem vergonha no nome de Portugal”; houve duas manifestações nas laterais do Parlamento, uma a favor de Lula, outra contra Lula; à tarde, falou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e todos os partidos com assento parlamentar, e milhares de pessoas desceram a Avenida da Liberdade com cravos ao peito.


Mais coisa, menos coisa, o dia foi assim. Como é que isto foi mostrado nos noticiários nobres das televisões?

Na RTP, o Telejornal das 20h abriu com o discurso de Rebelo de Sousa e deu-lhe mais de três minutos seguidos, incluindo 93 segundos de discurso directo. A seguir, vem Santos Silva, com 1min83s, dos quais 70 segundos são excertos directos.

A manifestação do Chega dentro do hemiciclo da AR apareceu ao minuto cinco e ocupou três minutos: o bloco foi preenchido com imagens dos deputados do Chega, o raspanete de Santos Silva, a irónica vénia de Lula aos deputados do Chega e o seu comentário ao que acontecera (“foi ridículo”).

A seguir, veio um bloco de 17 segundos dedicado aos manifestantes pró-Lula e um bloco de 40 segundos dedicado aos manifestantes do Chega que protestaram contra Lula. Desses 40 segundos, Ventura falou em discurso directo durante 15 segundos.

Seguiu-se o bloco sobre a intervenção de Costa no jardim de São Bento, onde inaugurou uma escultura de Rui Chafes e comentou o incidente da manhã na AR, criticando o Chega e os media. Durou pouco mais de 10 segundos.

Ventura regressou em discurso directo aos 20min5s, a dizer que Costa devia “arrumar as malas” e mudar-se para o Brasil. Isso entrou no bloco dedicado às intervenções dos deputados na sessão solena do 25 de Abril, à tarde.

Foi nesta ordem e com estes tempos:

— Joaquim Miranda Sarmento (PSD) falou durante 15 segundos;

— Rui Rocha (IL) falou 14s;

— João Torres (PS) falou 19s;

— Ventura falou 18s;

— Catarina Martins (BE) falou 20s;

— Manuel Loff (PCP) falou 9s;

— Rui Tavares (Livre) falou 6s, e

— Inês Sousa Real (PAN) falou 9s.

Pelo meio, houve o bloco dos Passos Perdidos, onde os partidos fazem declarações aos media. Isso passou-se à tarde, já eu tinha saído da AR, por isso não sei que perguntas foram feitas. Sei que o excerto da RTP só os mostra a comentar a “manifestação” do Chega da manhã.

A cobertura da RTP das comemorações do 25 de Abril durou 21min42s e terminou com o improviso — que “não estava no guião”, diz a voz off — dos deputados a cantaram a Grândola, Vila Morena enquanto Rebelo de Sousa e Santos Silva saem do hemiciclo.

Há uma coisa óbvia a dizer sobre este telejornal da RTP: fiquei com uma visão clara, ampla e plural sobre o que aconteceu.

Outra é que Ventura falou duas vezes, num total de 33 segundos, coisa que mais nenhum deputado conseguiu.

E a terceira é que o Chega só juntou 200 pessoas para protestar em frente ao Parlamento — longe da “maior manifestação de sempre” que anunciara —, mas a produção populista que inventou para o dia ocupou cinco dos 20 minutos de cobertura da RTP.

Ventura falou 33 segundos, mas muitos outros segundos foram sobre o que ele fez, sobre as críticas ao que ele fez, sobre as consequências negativas para o país do que ele faz.

Na CNN-Portugal, talvez o extremo oposto da RTP, como foi? O noticiário das 21h começou com...?

Exacto: com o protesto do Chega.

A seguir, vi o jornal da meia-noite, para ver se a CNN manteria o alinhamento. É um noticiário interminável. O protesto do Chega surge à 1h32, depois de um primeiro e longo bloco sobre o 25 de Abril, depois do anúncio da candidatura de Joe Biden à presidência dos EUA e depois da guerra na Ucrânia.

Há dias disse que a principal responsabilidade pela ascensão do Chega é do Chega, que se comporta sem respeito e sem urbanidade, com má-criação, misoginia, mentiras, ameaças e gestos ordinários — e com isso atrai eleitores frustrados e infelizes, mais os saudosistas do salazarismo, e tem a atenção dos media.

Disse que uma parte da responsabilidade também é dos políticos, à esquerda e à direita. Faltou dizer que também é dos jornalistas.

Este exemplo é uma amostra minúscula e não representativa do problema. Seria necessário o tal doutoramento — e o levantamento sistemático dos segundos e do espaço editorial dedicado ao Chega nestes cinco anos — para saber se é de facto desproporcionado o tempo de antena dado ao partido.

Mas é inútil enxotar o problema para o “outro”. Seja o “outro” quem quer que seja.


Redactora principal

https://www.publico.pt/2023/04/29/politica/opiniao/culpa-tambem-jornalistas-2047851


1 comentário:

Unknown disse...

O principal problema das "democracias" está infelizmente nas 2 maiores conquistas da democracia: a Justiça e a Informação Livre e Independente.