quarta-feira, 31 de maio de 2023

Carrno Afonso - As Cristina Talks e a contagem dos parvos

 

OPINIÃO  -  Assim, é difícil acreditar na democracia. Estamos todos à mercê das fraquezas e vulnerabilidades uns dos outros.


* Carmo Afonso
31 de Maio de 2023,

Cristina Ferreira soma e segue enchendo salas com milhares de pessoas para assistirem às Cristina Talks. Depois de Gondomar e Lisboa, foi a vez de Guimarães, e a próxima sala, em Braga, também já esgotou os 7500 bilhetes, a 19 euros, em poucas horas. A este propósito, recomendo a leitura de um artigo neste jornal: Cristina e o seu séquito de levantados do chão.

São eventos onde Cristina Ferreira surge como guru que ensina a superar adversidades – como críticas, insultos ou até a própria pobreza – e onde se propõe fazer a assistência passar por um processo transformador, mediante o qual aquelas pessoas passarão a acreditar em si mesmas e no seu sucesso. A partir daí ficarão mais próximas de alcançar esse sucesso nas suas vidas, ou seja, alcançarão prosperidade material e reconhecimento público.

No seu espetáculo, a apresentadora fala dos que a criticam e chama-lhes "anticristina". Representam a intelectualidade e sobre eles diz: “Quanto mais me põem para baixo, mais eu ganho balanço para ir para cima.” Dá destaque às críticas nas redes sociais e ao desdém com que muitos a tratam, considerando-os mais um impulso para a sua ascensão. O segredo é ser autêntica e acreditar. Tudo o resto virá por acréscimo porque afinal “somos o que quisermos ser” e ela, Cristina Ferreira, está “entre as pessoas mais poderosas do país”.


Reparem que o relambório de publicações nas redes sociais a criticar a seriedade de Cristina Ferreira nesta sua nova atividade é perfeitamente inútil e até faz parte integrante da fórmula mágica que apresenta aos fãs.

Temos aqui um problema: existem dezenas, ou centenas, de milhares de pessoas que estão disponíveis para pagar um bilhete e participar num ritual, presidido por Cristina, que supostamente as transformará em pessoas de sucesso. É difícil perceber qual a escala disto, mas é certo que, onde quer que vá, esta mulher esgota as maiores salas de espetáculo. Temos de reconhecer que são mesmo muitos os portugueses que acreditam que ouvir a Cristina Ferreira vai melhorar as suas vidas.

Isto reveste-se de gravidade. É pura e simplesmente a negação da política. Quem acredita que aquele é o caminho para uma vida melhor está a abandonar a sua condição de sujeito político; o que pensa, reivindica melhores condições de vida e está disposto a lutar por elas individual e coletivamente. As palestras de Cristina Ferreira são uma verdadeira alternativa ao ato político. Porque precisarão os trabalhadores de fazer uma greve pela melhoria das condições de trabalho se basta acreditarem que são bons?

Porque precisarão os trabalhadores de fazer uma greve pela melhoria das condições de trabalho se basta acreditarem que são bons?

Observar o fenómeno Cristina Ferreira ajuda a perceber outros fenómenos como o das igrejas evangélicas e o da ascensão da extrema-direita. Aqui, justiça seja feita a Cristina Ferreira: não costuma convidar fascistas para os seus programas e para as suas entrevistas. Mas o assunto é outro e há mesmo semelhanças entre o processo que leva as pessoas a acreditar que mudarão de vida por causa de uma talk e o que leva as pessoas a acreditar que o Chega vai resolver os seus problemas ou que o seu líder é que diz as verdades, não obstante ser apanhado a mentir quase diariamente. A sensação para quem está de fora é parecida: uma profunda incredulidade com o que se passa na cabeça daquelas pessoas. Assim, é difícil acreditar na democracia. Estamos todos à mercê das fraquezas e vulnerabilidades uns dos outros.

Quase todos os políticos portugueses já foram aos programas da Cristina Ferreira e Marcelo Rebelo de Sousa chegou a telefonar-lhe na estreia de um novo formato quando a apresentadora estava em direto. Este histórico funciona como uma legitimação das qualidades que a apresentadora anuncia ter e é também isto que vende. Não deve voltar a acontecer. A classe política tem obrigação de não contribuir para a credibilização de quem anuncia milagres e vende fantasias perigosas para quem as compra e para a própria democracia.

Cristina Ferreira sonha ser Presidente da República. Temos razões para não querer que ponha esse plano em ação. Não que seja previsível que ganhe, mas é certo que de cada vez que contamos quantos de nós puseram a cruz numa opção que demonstra que se perdeu o juízo e o bom senso chegamos a números astronómicos. Está aqui uma coisa boa que Cristina Ferreira pode fazer por Portugal: não nos obrigar a saber exatamente quantos portugueses desejam que seja presidente. Já mereceria um agradecimento.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Advogada

domingo, 14 de maio de 2023

Maria Lopes - A nova vida de Jerónimo no PCP é o regresso ao ponto de partida: a Constituição

* Maria Lopes 

14 de Maio de 2023

Ex-líder comunista tem evitado aparecer junto de Paulo Raimundo para não lhe tirar protagonismo. Queria abrandar o ritmo, mas seis meses depois percorre o país para falar dos valores de Abril


Jerónimo de Sousa esteve nos desfiles do 25 de Abril e do 1.º de Maio, mas foi sempre discreto. Nuno Ferreira Santos

Numa tarde de calor antecipado num Abril que devia ser de águas mil, sabe bem o fresco da pedra do átrio da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense. Numa das colunas de mármore verde, alguém colou uma folha com Florbela Espanca: "Ser poeta é ser mais alto, é ser maior/ Do que os homens! Morder como quem beija!/ É ser mendigo e dar como quem seja/ Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!" À frente das várias filas de cadeiras, uma mesa com três cadeiras, uma bandeira do PCP - a única que se verá na sala – e a nacional.

Há muita gente reformada, todos conhecem alguém, vêm em casal como para um passeio de fim de tarde, há mães com crianças irrequietas, jovens em pequenos grupos. Cinco minutos depois da hora marcada, já estarão ali cerca de 150 pessoas quando entra pelas portas de alumínio e vidro Jerónimo de Sousa, seguido pelo ex-deputado João Oliveira, de mochila às costas. Há aplausos mas nem um "PCP!" se ouve. Os dois antigos deputados do PCP vêm a Almada falar sobre a Constituição da República Portuguesa e os valores de Abril.

Jerónimo de Sousa, eleito deputado à Constituinte, em 1975, conta episódios desse tempo em que ajudou a elaborar a lei fundamental que pôs por escrito o novo regime nascido da revolução dos cravos, lamenta as machadadas dos inimigos que o texto tem levado desde então (sem resistir a duras críticas aos socialistas, a quem o PCP deu apoio parlamentar durante quatro anos) e avisa para os “ataques antidemocráticos e reaccionários” que se estão a preparar com a actual (e desnecessária, vinca) revisão constitucional.

Depois, o microfone passa para a assistência: há quem lamente o aumento do custo de vida, quem queira ver a Constituição distribuída nas escolas, e quem aproveite para saudar "o operário que ajudou a fazê-la". "Lá porque se é operário podem fazer-se coisas muito mais importantes que os professores e doutores", aponta Rita Magalhães, que já trabalhou com os eurodeputados comunistas, elogiando Jerónimo, que foi secretário-geral do PCP durante 18 anos.

E ainda quem defenda ser importante tê-la em casa "para de vez em quando irmos lá ver os nosso direitos e deveres" - ideia que João Oliveira aproveita a seguir para defender que o principal papel de qualquer comunista ou democrata é exigir o cumprimento da Constituição.

No final, muitos camaradas o cumprimentam. "Hoje vou fazer uma coisa que ando há anos para fazer", anuncia-lhe Maria Eugénia Paulitos. Jerónimo de Sousa arregala os olhos e fica na expectativa. A antiga funcionária da Câmara de Almada pede-lhe "dois beijinhos". E ele dá uma gargalhada. "Álvaro Cunhal era único, mas Jerónimo é homem grande. Hoje vou feliz", haveria de dizer depois ao PÚBLICO já o ex-líder do PCP fora embora.

Quando nos vê, Jerónimo abre um sorriso, mas faz um movimento com o corpo como que a esquivar-se. Não quer falar, aponta para João Oliveira. "Ele que fale." Não, não, obrigada. Era mesmo saber de si que queria. Jerónimo ainda olha para o camarada do apoio que está mesmo ao seu lado… mas não, não quer mesmo falar. Dá-nos uma palmadinha do ombro e o habitual “saúde!” e esgueira-se.

Tem sido assim em praticamente todo o lado onde é abordado pelos jornalistas. Desde que saiu da liderança do partido, fez este sábado, dia 13, seis meses, só uma vez aceitou falar às televisões - na manifestação da CGTP contra o aumento do custo de vida, em meados de Março. Mas participou na da administração pública junto do Parlamento; esteve no desfile do 25 de Abril na avenida e no do primeiro de Maio.

São aparições discretas, normalmente longe do actual secretário-geral comunista Paulo Raimundo, como que evitando ao máximo retirar-lhe qualquer protagonismo. No partido não se admite que haja alguma intencionalidade, que é mesmo Jerónimo quem não pretende qualquer palco e prefere o recato.

Desde o início do ano, Jerónimo e Oliveira estiveram juntos no Porto (onde arrancou este périplo constitucional dos comunistas), em Évora, Coimbra e Faro. O antigo líder comunista esteve também, sozinho, em Braga, Portalegre e Lisboa. Na capital, acompanhou a Constituição e os valores de Abril com uma feijoada, num almoço de domingo com o sector dos seguros no centro de trabalho de Alcântara.

A dinâmica da agenda de Jerónimo de Sousa anda também um pouco ao sabor do ritmo das actividades dos muitos centros de trabalho, das concelhias ou direcções regionais que o querem ter por lá - de Norte a Sul. Participou em diversos almoços de aniversário do PCP (que se assinalou a 6 de Março) e é certo que a sua presença ajudar a mobilizar os camaradas.

Para quem queria (e devia) abrandar o ritmo, a vida não está assim tão diferente. Nem tão calma como deveria aos 76 anos e pouco mais de um ano depois de uma operação a uma estenose carotídea. Jerónimo está mais magro, mas com um ar menos fechado, mais leve.

É certo que agora não há a correria entre a sede do partido, o Parlamento (onde esteve 40 anos) e as muitas iniciativas que as organizações locais do PCP organizam todas as semanas, nem as reuniões da comissão política e do secretariado do Comité Central. Mas Jerónimo vai quase todos os dias à Soeiro Pereira Gomes, onde costuma também almoçar e até fumar um cigarro com Raimundo na varanda - não é fácil cortar, de repente, com a lufa-lufa de comunista.

Mas por vezes já tem que ser Jerónimo a pedir um travão aos camaradas em tanta solicitação. É que pelo menos os fins-de-semana continuam a ser quase todos com agenda. Ainda este sábado esteve numa sessão pública na Marinha Grande – o mesmo sítio onde fez o seu último discurso como secretário-geral, em Novembro, e evocou Álvaro Cunhal.


https://www.publico.pt/2023/05/14/politica/noticia/nova-vida-jeronimo-pcp-regresso-ponto-partida-constituicao-2049574


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Marcelo, uma antologia ontológica, por Alfredo Barroso

  


* Alfredo Barroso
2023 05 12    


O QUE JÁ DISSERAM DELE, “ARRASANDO” MARCELO PR, 22 (VINTE E DUAS) PERSONALIDADES COMPLETAMENTE DIFERENTES...


- uma antologia de horrores, a não perder, sobre o comentador e político Marcelo, «capaz de qualquer patifaria inconsequente»`

1. FRANCISCO PINTO BALSEMÃO: «Marcelo, como o escorpião da lenda, não resiste a matar a rã (…) Algumas pessoas amigas que consultei avisaram-me e tentaram evitar que o convidasse para o Governo: ‘Estás a meter o veneno em casa’ – dizia um. ‘Estás a aproximar-te do escorpião da fábula, e tu serás a rã’ – dizia outro».
2. PACHECO PEREIRA: «Marcelo é o criador e principal fautor de um jornalismo dos cenários que nunca se realizam, jornalismo apenas especulativo que não leva a lado nenhum e que tem o condão de falsear toda a atividade política».
3. BELMIRO DE AZEVEDO (1998): «Marcelo Rebelo de Sousa deveria ser eliminado. Não tem categoria. Que retirem a cadeira a esse senhor».
4. PASSOS COELHO: «Catavento de opiniões erráticas, em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político». 
5. PAULO PORTAS: «Marcelo é filho de Deus e do diabo, Deus deu-lhe a inteligência, o diabo deu-lhe a maldade».
6. MARIA JOÃO AVILEZ: «Marcelo tem tomado o espaço da oposição ao governo. E para cúmulo é ele próprio que manda colocar nos jornais conversas a propósito. Toda a gente sabe dos telefonemas e das intrigas. É demasiado interventivo e não percebe que não pode ser ele o líder da oposição, mas comporta-se como tal».
7. HENRIQUE RAPOSO: «Um presidente que já é sem qualquer dúvida o presidente mais fraco desde 74». 
8. MIGUEL MONJARDINO: «O comentador Marcelo Rebelo de Sousa (M.R.S.) constitui, pelo seu recente comportamento, uma ameaça à credibilidade da instituição da Presidência da República e ao futuro de Portugal (…) Em vez de um Presidente da República, elegemos um comentador com urgência pessoal e compulsão para se pronunciar, instantaneamente, sobre tudo».
9. ANTÓNIO RIBEIRO (jornalista): «É falso como as cobras. Tem ar de avô bondoso, é beato, não tem vida própria. Mas cospe veneno. Parece que apoia, mas é exímio a puxar tapetes a quem detesta, embora finja apoiar. Olha para as tendências da opinião pública, dia a dia, como oportunidade de negócio (…) Essencialmente, ele não presta (….) Que ninguém confie nele, porque ele é do Antigo e não do Novo».
10. CINTRA TORRES: «Marcelo comenta de manhã, à tarde, à noite e de madrugada. Comenta à porta do Coliseu, na rua, nos jardins, na escadaria da Gulbenkian, comenta em Portugal e no estrangeiro, comenta no adro e na praia, no palácio e na feira, no café e no congresso, comenta futebol e o tempo, comenta vivos e mortos, acidentes e festivais – e comenta há 50 anos, desde que entrou para o ‘Expresso’, onde permanece até hoje, por via de corneta alheia, o principal alimentador e protagonista do diz-que-disse político nacional».
11. CARLOS ESPERANÇA: «Marcelo é um neto legítimo do 28 de maio e um dedicado enteado do 25 de Abril, não se pode exigir-lhe mais do que a sua natureza consente.»
12. JOSÉ CID (cançonetista): «O homem não tem tempo para nada, está sempre em qualquer lado, que não é parte nenhuma».
13. PAULA FERREIRA (jornalista): «Marcelo fala de tudo e, por esse motivo, poucas são as vezes em que fala de alguma coisa».
14. VÍTOR MATOS NO LIVRO (BIOGRAFIA) «MARCELO REBELO DE SOUSA» (2012): «Poucas coisas dão mais prazer a Marcelo do que realçar os pontos fracos dos outros, em privado, em público ou no jornal (…) Marcelo é capaz de qualquer patifaria inconsequente (…) Por uma boa piada, Marcelo não se importa de perder um amigo».
15. VASSALO DE ABREU: «O Dr. Marcelo desfaz-se em muitos abraços e cai no goto do povão! Ele é como o ‘Preço Certo’: Não tem ponta por onde se lhe pegue, mas o povão gosta… Que fazer?».
16. LUÍS PAIXÃO MARTINS: «Marcelo é o chefe-General do Estado Maior das forças mediáticas».
17. J.-M. NOBRE-CORREIA: «Temos um personagem que há cinquenta anos instrumentaliza compulsivamente os média. Com a ‘criação de factos’. Com pseudo-análises da atualidade política. Com constantes declarações a propósito de tudo e de nada».
18. AMADEU HOMEM: «Eu acho o Presidente da República um oligofrénico e um trambolho democrático».
19. PAULO QUERIDO: «Temos um Presidente da República sibilino e sinistro — o agente político mais perigoso para uma sociedade decente, tolerante, progressista e bem sucedida depois de Oliveira Salazar, capaz de driblar todas as instituições democráticas, a começar por uma das suas especialidades, a Constituição».
20. TELMO AZEVEDO FERNANDES: «É sabido que temos um Presidente da República que não lida maravilhosamente com a verdade. Tal como um menino traquinas que ainda faz chichi na cama, Marcelo é invariavelmente um palrador fingido, trapaceiro e dissimulado, que não hesita em inventar tretas e tramas, para manipular a opinião pública e tentar intervir de forma desleal e traiçoeira na política nacional».
21. MARINA COSTA LOBO (politóloga): «Marcelo, pensando no seu lugar na história, quer usar os poderes que tem para deixar Belém com outro inquilino em São Bento, um primeiro-ministro do seu partido, o PSD».
22. ARTUR VAZ (que também tenho direito!): «Em tantos anos das conversas de Marcelo, alguém se recorda de uma ideia ou proposta minimamente razoável e consistente que tenha sido da lavra de inteligência tão brilhante?»

Campo d'Ourique, 12 de Maio de 2023

https://www.facebook.com/somera.simoes/posts/ 

domingo, 7 de maio de 2023

Miguel Esteves Cardoso - O tom mestre-escola



CRÓNICA

O comentador português típico não é mais do que um detector de defeitos alheios. É essa a sua colheita principal.


* Miguel Esteves Cardoso
7 de Maio de 2023, 

O comentador português típico, que são quase todos, não é mais do que um detector de defeitos alheios. É essa a sua colheita principal.

É o que faz a seguir que é interessante, à maneira de quem compõe uma espiga com bolotas e flores do Lidl.

É na maneira como aproveitam os defeitos alheios que está a magia.

Aquilo que ele faz é ralhar connosco. Ralha connosco por causa dos nossos defeitos. Ralha porque são feios. Ralha porque não se encontram nos povos superiores. E ralha porque não mostramos interesse nenhum em abandoná-los. Nem tão-pouco parecemos ansiosos para trocar esses defeitos pacóvios e atrasados por defeitos mais elegantes e fáceis de perdoar.

O ralhar do comentador vem em parte dos antigos padres de aldeia, no tempo em que o temor a Deus acagaçava de verdade. Os defeitos de agora são transplantações integrais dos pecados de antigamente: é só trocar os nomes e avançar como sempre se avançou.

O pior é que, para se perdoar um pecado/defeito, é preciso reconhecer que se pecou e, crucialmente, mostrar arrependimento.

Ora, os portugueses reconhecem os defeitos na boa, mas vêem-se aflitos para se arrepender, porque lhes acham graça: eles são mesmo assim e não há nada a fazer.

A origem do ralhete é pastoral, mas a versão actual é de mestre-escola. É o mestre-escola — uns de aldeia, outros de cidade — que ralha com os portugueses, apontando-lhes os defeitos e apresentando-lhes as soluções, colhidas de uma vida de estudo e ponderação, filosófica mas benigna.

O tom mestre-escola é adoptado pelos comentadores porque os visados — nós, os portugueses teimosamente defeituosos que recebemos os ensinamentos com o ar trocista dos ruminantes — são vistos e tratados como crianças. E alunos, claro.

Porquê? Porque as crianças são moldáveis, podem aprender, podem entrar na linha: nunca se sabe.

O objectivo é nobre: ficarmos perfeitos, iguaizinhos ao nosso mestre-escola.

Mas o problema — sempre esquecido — é que já somos adultos.

O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2023/05/07/opiniao/cronica/tom-mestreescola-2048714

Uma proposta real Carta de Julian Assange ao rei Carlos III

Uma proposta real
Carta de Julian Assange ao rei Carlos III

Julian Assange [*]

À Sua Majestade Rei Carlos III,

No momento da coroação do meu soberano, achei por bem fazer-vos um convite sincero para comemorar este importante evento visitando o vosso próprio reino dentro de um reino:  a prisão de Belmarsh de Vossa Majestade.

Sem dúvida recordareis as sábias palavras de um famoso dramaturgo:   "A qualidade da misericórdia não é imposta. Ela cai como a suave chuva do céu sobre os lugares abaixo".

Ah, mas o que saberia aquele bardo de misericórdia diante do acerto de contas no alvorecer do vosso histórico reinado? Afinal, pode-se verdadeiramente conhecer a medida de uma sociedade pelo modo como trata os seus prisioneiros, e o vosso reino certamente esmerou-se a este respeito.

A Prisão de Belmarsh de Vossa Majestade situa-se na prestigiada morada de One Western Way, em Londres, apenas a uma curta distância do Old Royal Naval College, em Greenwich. Quão deleitoso deve ser ter um estabelecimento tão estimado a portar o vosso nome.

“Pode-se verdadeiramente conhecer uma sociedade pelo modo como trata os seus prisioneiros”.

É aqui que 687 dos vossos leais súbditos são mantidos, apoiando o registo do Reino Unido como a nação com a maior população encarcerada da Europa Ocidental. Como o vosso nobre governo declarou recentemente, o vosso reino está atualmente a passar pela "maior expansão de vagas prisionais em mais de um século", com as vossas ambiciosas projeções a mostrarem um aumento da população prisional de 82.000 para 106.000 nos próximos quatro anos. É, na verdade, um grande legado.

Como prisioneiro político, detido ao bel-prazer de Vossa Majestade em nome de um soberano estrangeiro envergonhado, sinto-me honrado por residir entre os muros desta instituição de classe mundial. Na verdade, o vosso reino não conhece limites.

Durante a vossa visita, tereis a oportunidade de banquetear-vos com as delícias culinárias preparadas para os seus fiéis súbditos com um generoso orçamento de duas libras por dia. Podereis saborear as cabeças de atum misturadas e as omnipresentes formas reconstituídas que supostamente são feitas de galinha. E não vos preocupeis, porque, ao contrário de instituições menores como Alcatraz ou San Quentin, não há refeições coletivas num refeitório. Em Belmarsh, os prisioneiros comem sozinhos nas suas celas, garantindo a máxima intimidade com a sua refeição.

Para além dos prazeres gustativos, posso assegurar-vos que Belmarsh oferece amplas oportunidades educativas aos vossos súbditos. Como diz Provérbio 22:6:   "Educai a criança no caminho em que deve andar, e até envelhecer dele não se desviará". Observai as filas baralhadas no guichet dos medicamentos, onde os reclusos recolhem as suas receitas, não para uso diário, mas para a experiência de expansão de horizonte num "grande dia fora" – tudo de uma vez.

Também tereis a oportunidade de prestar as vossas homenagens ao meu falecido amigo Manoel Santos, um homem gay que enfrentava deportação para o Brasil de Bolsonaro, o qual tomou a sua própria vida a apenas oito jardas da minha cela usando uma corda grosseira feita com lençóis. Sua refinada voz de tenor agora silenciou para sempre.

"Meu falecido amigo Manoel Santos... o qual tomou a sua própria vida a apenas oito jardas da minha cela".

Aventurai-vos nas profundezas de Belmarsh e encontrareis o local mais isolado dentro das suas muralhas:   Os cuidados de saúde (Healthcare), ou “Cuidados do inferno” ("Hellcare"), como o chamam carinhosamente os seus habitantes. Aqui, ficareis maravilhado com as regras sensatas concebidas para a segurança de todos, tais como a proibição do jogo de xadrez, se bem que permitindo o muito menos perigoso jogo de damas.

Nas profundezas do Hellcare encontra-se o lugar mais gloriosamente edificante de toda a Belmarsh, ou melhor, de todo o Reino Unido:   a sublimemente denominada Belmarsh End of Life Suite. Ouvi com atenção e podereis escutar os gritos dos prisioneiros:   "Irmão, estou a morrer aqui", um testemunho da qualidade de vida e de morte dentro da vossa prisão.

Mas não temais, pois há beleza a encontrar dentro destes muros. Deleitai os vossos olhos com os pitorescos corvos que fazem ninho no arame farpado e com as centenas de ratos famintos que chamam Belmarsh de casa sua. E se vierdes na Primavera, podeis mesmo ter um vislumbre dos patinhos postos pelos patos selvagens no terreno da prisão. Mas não vos demoreis, pois as ratazanas vorazes asseguram que as suas vidas são efémeras.

Imploro-vos, Rei Carlos, que visiteis a Prisão de Belmarsh de Vossa Majestade, pois é uma honra digna de um rei. Ao embarcardes no vosso reinado, lembrai-vos sempre das palavras da Bíblia na versão do Rei James:   "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mateus 5:7). E que possa a misericórdia ser a luz orientadora do vosso reino, tanto dentro como fora das muralhas de Belmarsh.

O vosso mais devotado súbdito,

Julian Assange
A9379AY

05/Maio/2023

[*] Jornalista e preso político.

O original encontra-se em declassifieduk.org/a-kingly-proposal-letter-from-julian-assange-to-king-charles-iii/

Este artigo encontra-se em resistir.info

Julian Assange [*]
Carlos III, o novo rei.
À Sua Majestade Rei Carlos III,

No momento da coroação do meu soberano, achei por bem fazer-vos um convite sincero para comemorar este importante evento visitando o vosso próprio reino dentro de um reino:  a prisão de Belmarsh de Vossa Majestade.

Sem dúvida recordareis as sábias palavras de um famoso dramaturgo:   "A qualidade da misericórdia não é imposta. Ela cai como a suave chuva do céu sobre os lugares abaixo".

Ah, mas o que saberia aquele bardo de misericórdia diante do acerto de contas no alvorecer do vosso histórico reinado? Afinal, pode-se verdadeiramente conhecer a medida de uma sociedade pelo modo como trata os seus prisioneiros, e o vosso reino certamente esmerou-se a este respeito.

A Prisão de Belmarsh de Vossa Majestade situa-se na prestigiada morada de One Western Way, em Londres, apenas a uma curta distância do Old Royal Naval College, em Greenwich. Quão deleitoso deve ser ter um estabelecimento tão estimado a portar o vosso nome.

“Pode-se verdadeiramente conhecer uma sociedade pelo modo como trata os seus prisioneiros”.
É aqui que 687 dos vossos leais súbditos são mantidos, apoiando o registo do Reino Unido como a nação com a maior população encarcerada da Europa Ocidental. Como o vosso nobre governo declarou recentemente, o vosso reino está atualmente a passar pela "maior expansão de vagas prisionais em mais de um século", com as vossas ambiciosas projeções a mostrarem um aumento da população prisional de 82.000 para 106.000 nos próximos quatro anos. É, na verdade, um grande legado.

Como prisioneiro político, detido ao bel-prazer de Vossa Majestade em nome de um soberano estrangeiro envergonhado, sinto-me honrado por residir entre os muros desta instituição de classe mundial. Na verdade, o vosso reino não conhece limites.

Durante a vossa visita, tereis a oportunidade de banquetear-vos com as delícias culinárias preparadas para os seus fiéis súbditos com um generoso orçamento de duas libras por dia. Podereis saborear as cabeças de atum misturadas e as omnipresentes formas reconstituídas que supostamente são feitas de galinha. E não vos preocupeis, porque, ao contrário de instituições menores como Alcatraz ou San Quentin, não há refeições coletivas num refeitório. Em Belmarsh, os prisioneiros comem sozinhos nas suas celas, garantindo a máxima intimidade com a sua refeição.

Para além dos prazeres gustativos, posso assegurar-vos que Belmarsh oferece amplas oportunidades educativas aos vossos súbditos. Como diz Provérbio 22:6:   "Educai a criança no caminho em que deve andar, e até envelhecer dele não se desviará". Observai as filas baralhadas no guichet dos medicamentos, onde os reclusos recolhem as suas receitas, não para uso diário, mas para a experiência de expansão de horizonte num "grande dia fora" – tudo de uma vez.

Também tereis a oportunidade de prestar as vossas homenagens ao meu falecido amigo Manoel Santos, um homem gay que enfrentava deportação para o Brasil de Bolsonaro, o qual tomou a sua própria vida a apenas oito jardas da minha cela usando uma corda grosseira feita com lençóis. Sua refinada voz de tenor agora silenciou para sempre.

"Meu falecido amigo Manoel Santos... o qual tomou a sua própria vida a apenas oito jardas da minha cela".
Aventurai-vos nas profundezas de Belmarsh e encontrareis o local mais isolado dentro das suas muralhas:   Os cuidados de saúde (Healthcare), ou “Cuidados do inferno” ("Hellcare"), como o chamam carinhosamente os seus habitantes. Aqui, ficareis maravilhado com as regras sensatas concebidas para a segurança de todos, tais como a proibição do jogo de xadrez, se bem que permitindo o muito menos perigoso jogo de damas.

Nas profundezas do Hellcare encontra-se o lugar mais gloriosamente edificante de toda a Belmarsh, ou melhor, de todo o Reino Unido:   a sublimemente denominada Belmarsh End of Life Suite. Ouvi com atenção e podereis escutar os gritos dos prisioneiros:   "Irmão, estou a morrer aqui", um testemunho da qualidade de vida e de morte dentro da vossa prisão.

Mas não temais, pois há beleza a encontrar dentro destes muros. Deleitai os vossos olhos com os pitorescos corvos que fazem ninho no arame farpado e com as centenas de ratos famintos que chamam Belmarsh de casa sua. E se vierdes na Primavera, podeis mesmo ter um vislumbre dos patinhos postos pelos patos selvagens no terreno da prisão. Mas não vos demoreis, pois as ratazanas vorazes asseguram que as suas vidas são efémeras.

Imploro-vos, Rei Carlos, que visiteis a Prisão de Belmarsh de Vossa Majestade, pois é uma honra digna de um rei. Ao embarcardes no vosso reinado, lembrai-vos sempre das palavras da Bíblia na versão do Rei James:   "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mateus 5:7). E que possa a misericórdia ser a luz orientadora do vosso reino, tanto dentro como fora das muralhas de Belmarsh.

O vosso mais devotado súbdito,

Julian Assange
A9379AY

05/Maio/2023
[*] Jornalista e preso político.
O original encontra-se em declassifieduk.org/a-kingly-proposal-letter-from-julian-assange-to-king-charles-iii/
Este artigo encontra-se em resistir.info

sábado, 6 de maio de 2023

Jaime Nogueira Pinto - Distopia em tempos de cólera

 * Jaime Nogueira Pinto

 Colunista do Observador

Quando nos falta quase tudo, incluindo géneros alimentares, que não nos falte a autodeterminação de género.

06 mai. 2023, 00:1867

Foi nas vésperas das já quase cinquentenárias comemorações da revolução dos cravos – que, pelo descarrilar da carruagem, prometem – que o Projecto de Lei nº 332/XV foi aprovado pela Assembleia da República por 120 socialistas, 6 comunistas, 5 bloquistas, 1 animalista e 1 livre. Contra estiveram 77 sociais-democratas e 12 chegas e houve 8 iniciados liberais e 2 socialistas que se abstiveram.  Era fundamental e urgente que o projecto fosse aprovado, uma vez que a lei vem responder a um dos problemas mais prementes da Nação.

A leitura de algumas alíneas do dito Projecto-lei assegura-nos desde logo que é de um importante passo no caminho para uma humanidade feliz que se trata, assegurando-nos que, em Portugal, a utopia também é possível. Tanto que nos remete para os slogans do Ministério da Verdade, que o English Socialist Party of Oceania difundia, no 1984 de Orwell.

“Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”, é um dos mais famosos exemplos do New Speak, Nova Fala ou Nova Língua, que os sequazes do Big Brother cultivavam em nome da construção do melhor dos mundos e com a qual massacravam os ouvidos e a cabeça dos pobres cidadãos oceânicos – que não tinham nada de que se queixar, pois usufruíam de teletelas que, além de os endoutrinarem nas boas práticas, os entretinham e vigiavam.

Talvez por isso o 1984 de Orwell conheça agora um novo boom.  Afinal, ajuda-nos a perceber melhor o mundo que nos rodeia e a forma como está a ser traçado o nosso “futuro radioso”.  Um futuro que poderá vir a raiar se não formos capazes de acordar do entorpecedor entretenimento que nos proporcionam e reagir, sacudindo uma tirania que, ao contrário do pesadelo orwelliano, nos é trazida por políticos democráticos sorridentes e fala-baratos, por académicos com currículos pesados, por estudos para-científicos de Observatórios, por pareceres de especialistas e animadores televisivos, simpáticos e inofensivos. E, claro, pelos episódios grotescos e rocambolescos da novela das nossas instituições.

“Quem controla o Passado, controla o Futuro; quem controla o Presente controla o Passado” e “A massa mantém a marca, a marca mantém a média e a média controla a massa”, são mais dois dos slogans da orwelliana campanha de lavagem ao cérebro, que também nos dirão qualquer coisa.

Sobre o controlo do passado, é bom parar para pensar na deturpação da História de Portugal operada nas últimas décadas, que reduz a aventura portuguesa do século de ouro a uma crónica de violência e pilhagem indiscriminada, que equipara o regime derrubado pelo 25 de Abril a uma variante lusa da tirania nazi-fascista,  mas que não vê no presente agravar da arrogância, da corrupção, da displicência  e da impunidade qualquer semelhança com os donos do poder, da democracia e do país que por aqui passaram e se passearam na Primeira República.

Distopias

Tudo isto se tornou fácil e possível através dos media e do seu controlo.

Ainda que nos fale eloquentemente do tempo que vivemos, o 1984 de Orwell vem na linhagem das distopias do século XX e teve por objecto principal denunciar o comunismo estalinista da Rússia Soviética. Logo no início, outras distopias tinham já assinalado a inauguração da implantação forçada da utopia no mundo real. Quatro anos depois da revolução bolchevique na Rússia, em 1921, Zamiatin escrevia o Nós e ia parar à prisão; e, em 1932, Huxley publicava Brave New World, inspirando-se na frase de Miranda, filha de Próspero, o exilado duque de Milão de A Tempestade de Shakespeare, ao ver pela primeira vez os náufragos que chegavam a terra.

“Oh Wonder!
How many goodly creatures are there here
How beauteous mankind is! Oh brave new world
That has such people in’t”

Huxley pegou no assombro de Miranda, até aí sozinha na ilha com o pai, perante a beleza do género humano e a bondade das suas adoráveis criaturas; e misturando utopia, distopia, ironia, tecnologia e promiscuidade, deu-nos um admirável mundo novo, traçado a régua e esquadro para a felicidade plena, numa sociedade organizada por castas definidas por letras: Alfas, Betas, Deltas, Gamas e Épsilones – os mais baixos, a massa do Lumpen.

O controle em Brave New World era mantido através de propaganda, que desviava a atenção e suprimia a informação relevante. A esta propaganda só escapavam as comunidades de “Selvagens”, que viviam nas periferias não-civilizadas. Semelhante forma de controle é também usada em Fahrenheit 451, onde se queimam os livros e se favorece a teleficção.

Nada disto é alheio à legislação passada nas vésperas da data fundacional do regime, como se de um símbolo da obra feita e de um princípio da obra por fazer “para cumprir Abril” se tratasse. Não deixa de ser curioso que um sistema educativo reconhecidamente deficiente em matéria de preparação humanista e profissional e cheio de buracos e carências, um sistema que tem os professores em revolta há meses e que conta com escolas onde não há sequer psicólogos, queira agora acoitar sob a redoma da lei um Bernardo que descobriu que era Sofia, um João que acordou Maria, uma Ricardina que quer que lhe chamem Maximino ou uma Maria que afinal é Zé (haverá muitos casos destes, dos genuínos, fora do incentivo à experimentação e da pressão dos ideólogos do género?) E como não podia deixar de ser, recomenda-se também a indigitação de controleiros da discriminação de género para acusar todos os que pequem por pensamentos, palavras, pronomes e omissões contra o humanitário princípio de oferecer às crianças todo um leque de identidades à escolha, independentemente daquela que lhes tenha sido “imposta à nascença”.  Com semelhante menu, há até quem se autodetermine (li outro dia num jornal) “mulher trans, não-binária, pansexual e anarquista relacional” … todo um programa.

Os mistérios do sexo contados às crianças à revelia do povo

Não temos estatísticas nem estudos credíveis que sustentem as medidas propostas. O que temos, neste diploma, é uma cópia servil de um projecto ideológico a introduzir nas escolas, conforme o veiculado pelo PRESSE, um “Guia de Informação e Apoio” que se autodetermina como “um espaço, para os alunos, onde se desenvolvem acções de informação, educação e comunicação no âmbito da educação sexual”.  Vale a pena ver.

Como em qualquer distopia que se preze, as crianças que a partir dos sete anos se mostrem descontentes com o sexo que lhes foi imposto à nascença e com o nome que lhes foi atribuído no registo, podem não ter professores nem aulas,  podem não ter acompanhamento psicológico, podem não ter materiais tecnológicos ou sequer analógicos, podem não ter actividades extra-curriculares desportivas, musicais ou culturais  mas uma coisa é certa: vão ter um responsável, um tutor, um conselheiro, um amigo, a quem poderão pedir orientação e  manifestar o seu desconforto  e desconformidade – desde que esse desconforto e desconformidade sejam “de género”.  Este conselheiro, designado pela escola, não necessita de quaisquer credenciais profissionais, médicas ou outras: tem apenas de ser amigo e solidário. O nome escolhido pela criança ou adolescente terá depois de ser conhecido e respeitado por toda a população escolar, bem como a opção de vestuário e outras expressões da identidade autoatribuída que queira adoptar.

O PAN, promovendo por uma vez uma tourada, insistiu que tanto os fiscais como os formadores deveriam ter o selo ou o ferro LGBTQI+ para poderem marrar com pais, professores, pessoal não docente e restante comunidade educativa nas sessões de alfabetização e esclarecimento sexual por que Portugal há tanto clama.

Enfim, o paraíso na terra.

Sublinha-se também que, nos projectos do PAN, do Livre, e do BE, se exigem penas severas para quaisquer “terapias de conversão” dirigidas à “correcção” da homossexualidade ou da transexualidade, para evitar os traumas que causam (e que causarão com certeza) e a elevada taxa de suicídios (que, com certeza, será também real).  Porém, em relação às terapias de transição de género – à submissão a tratamentos com bloqueadores de puberdade, a tratamentos hormonais irreversíveis e a correcções cirúrgicas – não parece haver traumas associados a registar; ou tão pouco consequências ou taxas de suicídio dignas de nota.

Nas distopias, o medo é o grande instrumento totalitário, mas a sua imposição é quase sempre mais mediática, mais dirigida às consciências pela propaganda, mais incentivada por legislação avançada do que declaradamente imperativa. E nas sociedades ocidentais, constitucionalmente liberais, a repressão pela violência física não é (ainda) possível – mas há sempre o império da lei…

Em Nós, de Zamiatin, os cidadãos saíam em passeios colectivos, dando louvores ao poder; em Brave New World, de Huxley, a sociedade buscava a felicidade pelo conforto e pelo prazer e os cidadãos das várias castas eram agarrados e distraídos pelo divertimento, para que a informação subversiva ou alternativa à ordem estabelecida lhes pudesse ser sonegada sem que dessem por isso.

A presente imposição ideológica, que descarta a biologia e outras minudências através de um processo orwelliano aparentemente liberal, é exercida sobre uma população de crianças e adolescentes. É parte de uma máquina de transformar em regra situações minoritárias e marginais, com as quais há, com certeza, que ter toda a atenção e compreensão, mas também a consciência de que não se tratam ou resolvem por decreto nem devem generalizar-se.  Entretanto, a máquina vai-se tornando um perigo público, prometendo transformar o que aparenta ser uma questão acessória numa questão essencial para o futuro da sociedade.

Gabriele Kuby, em A Revolução Sexual Global – Destruição da liberdade em nome da liberdade, explicou o processo pelo qual “os modernos e os pós-modernos” se foram emancipando de tudo – de Deus, da natureza, da família, da tradição e agora até da biologia. O problema é que, ficando nessa aparente independência, orientados por coisa nenhuma a não ser pela própria vontade e pelos próprios desejos e impulsos, se tornam muito mais vulneráveis aos fortes, aos que controlam a informação, aos que manipulam as massas.

A oligarquia que governa este país sabe disso. Há que acordar e reagir.

https://observador.pt/opiniao/distopia-em-tempos-de-colera/I


Carlos Coutinho - Bruxas ou açorda



*  Carlos Coutinho


   ANDASSE eu hoje por Vila Real e, esta noite, mesmo com chuva, iria ao Teatro Municipal ver “As Bruxas de Salem”, de Arthur Miller, numa encenação que me dizem “muito, muito, muito boa”, de Nuno Cardoso, do Teatro Nacional de S. João, do Porto.

   “Deplorável”, diria outra vez Marcelo Rebelo de Sousa. E eu talvez concordasse, caso não tivesse neste sábado sem chuva, o almoço de um grupo com razões muito próprias que anualmente as vai comemorar, em Vila Franca de Xira, desta vez com uma de açorda de sável.

   De manhã, espera-me no Museu do Neo-Realismo, uma exposição com o Sidónio Muralha como tema e substância. Este enorme poeta que nasceu Lisboa, no dia 29 de julho de 1920 e foi morrer a Curitiba, Brasil, a 8 de dezembro de 1982, viveu a infância no castiço bairro lisboeta da Madragoa.

   Ainda muito jovem colaborou com revistas e publicações literárias de certa forma associadas ao que viria a ser o neo-realismo português, como, por exemplo, "Mocidade Académica" e "Solução" ou, décadas mais tarde a "Vértice".

   Em 1941, incentivado por Bento de Jesus Caraça, publicou o seu primeiro livro de poesia, “Beco”. Escreveu muito, integrado num movimento em que avultavam Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Papiniano Carlos, Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Egito Gonçalves ou Mário Dionísio.

   Com “Passagem de Nível” (Coimbra, 1942) fez parte do chamado Novo Cancioneiro, coleção que reuniu obras poéticas de vários poetas antifascistas. No Natal de 1949, Sidónio publicou a segunda edição de “Beco” e “Passagem de Nível”, em volume conjunto, e, no ano seguinte, uma obra magistral do seu percurso poético: “Companheira dos Homens”. 

   Ambas as edições de autor contaram com ilustrações da capa de Júlio Pomar, com quem manteve uma douradora amizade. Ainda em 1950, também com desenhos de Pomar e músicas de Francine Benoit, publicou o seu primeiro livro de poemas para crianças, “Bichos, Bichinhos e Bicharocos”.

   Nos anos 70, Sidónio Muralha regressou a Portugal, primeiro para publicitar a sua antologia “Poemas” (1971), depois para celebrar o "Portugal libertado" pela Revolução dos Cravos. 

   Em 1976, recebeu o “Prémio Meio Ambiente na Literatura Infantil” pelo seu livro “Valéria e Vida”, ilustrado por Fernando Lemos e que marcou o início de um profícua parceria com uma editora onde também saiu um livro meu,  a Livros Horizonte. 

   É tudo isto que espero encontrar como aperitivo à famosa açorda de sável, à beira-Tejo.

José Pacheco Pereira - A crise do Governo, a crise do Presidente e a crise do jornalismo


OPINIÃO

Não sei se daqui a dez anos haverá uma escola ou um curso académico de Comunicação que estude o dia 2 de Maio de 2023, nas rádios e na televisão, e os dias subsequentes.


* José Pacheco Pereira
6 de Maio de 2023

Aviso a tempo por causa do tempo: considero um erro enorme ter-se centrado a crise política dos últimos dias na defesa de Galamba, com um comprometimento directo do primeiro-ministro com um ministro tóxico, que não o merece e que vai dar muitos problemas ao Governo. Outros mereciam mais, mesmo Pedro Nuno Santos. Acresce que penso que o Governo é medíocre em muitas áreas e merecia uma remodelação a sério. O que tenho a dizer sobre a crise do Governo está dito.

Agora o resto: não sei se daqui a dez anos haverá uma escola ou um curso académico de Comunicação que estude o dia 2 de Maio de 2023, nas rádios e na televisão, e os dias subsequentes. De manhã à noite, não encontrará jornalismo. Pensem um pouco e afastem-se da excitação.


O que se passou nada tem que ver com o jornalismo e o efeito desse comportamento é tão devastador que já não se sabe o que é jornalismo. Aquilo a que assistimos o dia todo foi a uma comunicação social transformada numa espécie de comício político, num estilo de panfleto exacerbado, com tudo o que não é jornalismo: intencionalidade política, dramatização, julgamentos de carácter, petições de princípio, argumentos ad terrorem, encostar os agentes políticos à parede com dilemas “humilhantes”, apelos a acções cada vez mais drásticas, subindo a temperatura da crise, má-fé, reviravoltas argumentativas quando uma previsão (melhor, um desejo) não se verificava, sempre com uma constante – a do maior dano possível para o Governo, o PS e António Costa. Isto é política, não é jornalismo e muito menos escrutínio. É certo que tal se passava num contínuo de comentadores e jornalistas, mas alguém viu a diferença? Nenhuma.

Já é difícil perceber em tal imersão na excitação comicieira, que nada disto tem que ver com o jornalismo. Um jornalista, nessa qualidade, não pode insistir que o caminho a seguir é sempre subir a parada para respostas mais extremas, com uma defesa explícita da dissolução, para depois hesitar sobre essa dissolução porque isso iria acabar com a Comissão de Inquérito da TAP, insinuando, coisa que também não é suposto um jornalista fazer, que o “objectivo” oculto do Governo era esse.

Os painéis de comentário, com jornalistas e comentadores no dia 2, o dia crítico, e em menor grau nos dias seguintes, não tinham qualquer diversidade nem contraditório, a esmagadora maioria era de direita, eram todos hostis ao Governo, com relevo para vários que há muito tempo têm como alvo preferencial o “socialismo”.

Mesmo os membros do PS escolhidos eram críticos de António Costa. Nas opiniões ouvidas em declarações exteriores aos painéis de comentário, quando havia uma que contrariava a linha de dramatização desaparecia logo em seguida debaixo de uma nuvem de suspeição. Isso foi evidente na questão do SIS, em que se passou do apelo a que o Conselho de Fiscalização se pronunciasse, para, depois de este concluir que não havia ilegalidade, passar a tornar-se suspeito, porque dois elementos eram do PS e um do PSD, que também assinou a mesma conclusão, mas tinha sido escolhido por Rui Rio... Foram vários dias assim.

O anticlímax, a caminho do novo clímax: o Presidente foi apresentado com tendo um dilema – se não respondesse à “humilhação” com a dissolução, ou a demissão do Governo, tornar-se-ia um “zero”, um capacho de Costa. Jornalistas e comentadores variavam entre uma de duas respostas. Uma é que de facto Costa “venceu”, na linguagem futebolística que, por ironia, deve muito a Marcelo comentador; outra a de que, após o “ralhete”, o Governo ficaria em prisão domiciliária. Ninguém chamou a atenção (a não ser Magalhães e Silva) para o facto de todo o comportamento do Presidente ser muito bizarro, antes, durante e presume-se depois. Não é suposto o Presidente ter feito a mensagem pública que fez, acabando por dar azo a outra interessante reviravolta interpretativa. O Presidente iria agora fazer, em pior, o que fez Mário Soares a Cavaco Silva, sem sequer perceberem que esse foi um mau momento da nossa democracia com Soares a exorbitar das suas funções.

O Presidente não dissolveu, nem demitiu, é pena, mas vai agora tornar-se o grande perturbador da governação que já não tem sido brilhante… Um jornalista nessa qualidade não pode dizer que o Presidente deve deixar o Governo desgastar-se, “grelhar”, “cozer a lume brando”, ou seja, apelar à ingovernabilidade para depois, num exercício de hipocrisia, dizer que “ninguém fala dos problemas dos portugueses, inflação, preços das casas, etc.”.


Parabéns: ao Observador, ao Eco e a um conjunto de “jornalistas” politizados, porque estão a conseguir fazer uma oposição mais eficaz do que o PSD, de que eles precisam, mas tratam com comiseração e algum desprezo porque acham que “não chega”. No dia 2 de Maio, o dia da crise, em vários órgãos de comunicação o estilo e o tom político dominante foi todo o dia igual ao das manhãs do Observador, muitas vezes com o efeito repetidor das mesmas pessoas em vários órgãos de informação. Há um precedente a este efeito, o papel d'O Independente que preparou a entrada de Paulo Portas na política, acabou com o CDS “centrista”, e contribuiu para o fim do “cavaquismo”. Na verdade, ninguém como a direita radical sabe fazer melhor este papel, com um centro acabrunhado e impotente e uma esquerda encurralada pelo abandono do social a favor do identitário pelo Bloco e pelo apoio ambíguo do PCP à invasão da Ucrânia.

É tão evidente como isto vai continuar: a comissão de inquérito da TAP vai ter agora um festival de ajuste de contas e vinganças, a começar pela fonte do Observador nos últimos dias, o assessor que andou à pancada. Os ministros que andaram a mentir, como Galamba, vão dar origem a uma orgia de perguntas complicadas. Vão ser pedidos todos os papéis possíveis e imaginários, com justificação ou sem ela, muito para além da TAP. O caso SIS vai ser transformado num exemplo de perseguição política pidesca numa desproporção que é hoje a norma “jornalística”. E depois, a seguir, virá a Efacec e tudo o que seja público, porque no privado não se toca… E a cada momento o Presidente será convocado para dissolver.


O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2023/05/06/opiniao/opiniao/crise-governo-crise-presidente-crise-jornalismo-2048632

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Carlos Coutinho - Flagelações



* Carlos Coutinho  

   ESTA brisa matinal rasteirinha trouxe-me agora à memória o mundo romanceado por Manuel Lopes na sua Ilha de S. Vicente, onde nunca estive, “Os Flagelados do Vento Leste”. 

   O extraordinário romancista, que nasceu no Mindelo, em 23 de dezembro de 1907 e faleceu em Lisboa, a 25 de janeiro de 2005, foi um dos fundadores da decisiva revista “Claridades”, tendo escolhido um território insular em tudo coincidente com o das outras ilhas cabo-verdianas, açoitadas diariamente por um vento africano absolutamente cruel e insidioso.

   Aliás, com tema idêntico, Manuel Ferreira, um escritor que nasceu na  [Gândara dos Olivais, Leiria, em 1917 e faleceu em Linda-a-Velha, Oeiras, em 1992, tendo sido presidente da Associação Portuguesa de Escritores, muito penou em Cabo Verde, onde esteve como oficial do Exército colonial com a patente de capitão.

   Acontece que de Cabo Verde só conheço a Ilha de Santiago, a maior e mais cosmopolita, por onde cirandei em tempos e onde ainda impera a memória horrenda do Campo de Concentração do Tarrafal. 

   Também aí chega vento desertificante do Sara, geralmente conhecido como harmatão ou harmatã, seco e poeirento, soprando de dezembro a meados de março, sendo em Cabo Verde também designado por lestada e bruma seca.

   Cito o primeiro parágrafo de “Os Flagelados do Vento Leste”:

   “Agosto chegou ao fim. Setembro entrou feio, seco de águas; o sol peneirando chispas num céu cor de cinza; a luminosidade tão intensa que trespassava as montanhas, descoloria-as, fundia-as na atmosfera espessa e vibrante. Os homens espiavam, de cabeça erguida, interrogavam-se em silêncio. Com ansiedade jogavam os seus pensamentos, como pedras das fundas, para o alto. Nem um fiapo de nuvem pairava nos espaços. Não se enxergava um único sinal, desses indícios que os velhos sabem ver apontando o dedo indicador, o braço estendido para o céu, e se revelam aos homens como palavras escritas.

   Trata-se, pois, de uma ilha inóspita em que a seca atravessa a paisagem, as vidas e as entranhas daqueles que vivem da terra e que desesperadamente olham para o céu à procura de chuva em fiapos de nuvens esquecidas pelo vento.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Eduardo Cintra Torres - Uma tia de serviço público

 *  Eduardo Cintra Torres 

23 de Agosto de 2004

A TVI apresentou uma reportagem especial sobre a personagem mediática Cinha Jardim (06.08). Em meia hora de prime time, reforçava-se o nosso conhecimento da «conhecida» (passe o pleonasmo), assim inculcando valores ideológicos a seu respeito. O título tinha um toque modernista: «A Nova! Tia Cinha». A reportagem justificava-se comercialmente por ser Jardim nos últimos meses assídua no canal. Por isso, e por ter feito uma plástica, está «nova». Exclamação. Trata-se dum trabalho jornalístico da actual fase do entretenimento. Apesar de procurar ater-se ao registo factual, a função informativa submetia-se à lúdica.Jardim fez em 2002 o rito de passagem da sociedade do espectáculo que lhe permite agora arrecadar popularidade e o que mais vier numa TV popular. Ao lavar chão na «casa» do «Big Brother Famosos», a suposta «tia» provava à audiência que era uma pessoa vulgar, assim limando arestas no ressentimento de classe contra ricos e poderosos. A reportagem da TVI, não tendo interesse como objecto televisivo, tinha-o para estudo social deste novo e vernáculo uso imoderado das tias. Mostrava a construção que se vem fazendo do conceito de «tia» para consumo popular. A expressão «tia» começou a ser usada na classe alta e média como forma de tratamento das mães dos amigos ou amigas. Não havendo relação familiar, a palavra facilita o tratamento, em substituição do demasiado próximo nome próprio ou de um demasiado afastado título social («Senhora», «Dona», Doutora», etc.). Com o uso de «tia», cria-se uma relação de círculo social fora do círculo conjugal do lar. É um jargão classista como qualquer outro: quando «menino» e «tia» se cumprimentam estão dizendo «somos cá dos nossos».As formas de tratamento de uma sociedade e de uma época são uma confissão da teia de relações entre as pessoas. Quanto mais complexa a sociedade, mais complexas as formas de tratamento. É o caso português.Desde há anos, «tia» passou a usar-se para definir a mulher de determinado estatuto económico-social e com presença regular nas festas e outros eventos que aparecem em revistas. Deixou de ser um tratamento usado num certo extracto social para passar a ser sinónimo desse mesmo grupo social. Mas, hélàs, como sempre acontece na burguesia, há traidoras de classe. A forma de tratamento foi usurpada. Tal como grande parte da «aristocracia europeia» é hoje uma marca que se vende como qualquer mercadoria, também certas «tias» e o falso jetset portugueses são uma marca destinada à venda em imprensa e alguma TV. Estão fora do círculo social que supostamente representam. Isso fica claro quando a reportagem mostra Jardim aparecendo numa festa com a câmara da TVI ou explicando a construção da sua imagem para ser consumida como um produto. Percebe-se que a titização é menos uma maneira de estar na vida do que uma maneira de ganhar a vida.Todavia, não se divulga nenhum aspecto da transacção comercial do produto «tia». Apesar de alguém definir Jardim no programa como pessoa «super-ocupada», só se revelam aspectos supostamente glamorosos. Ela está «ocupada» em vender a imagem como produto social e mediático, essa é a profissão. A construção da imagem de Jardim passou, como referi, pelo alargamento da sua «base social de apoio» participando no BB Famosos. Com as suas rugas de expressão, apresentou uma máscara de super-simpática, super-disponível, amiga de toda a gente. «A Cinha tem este talento de fazer amigos», diz um fotógrafo do «social». Podia ser um curso de Dale Carnegie: como fazer amigos e influenciar pessoas. Neste caso, ter «amigos» significa estar disponível para aparecer em festas, assim lhes garantindo influência mediática, isto é, valorização social. O rito de passagem permitiu a Jardim alargar a capacidade de mercantilização da sua pessoa em programas populares de TV. Uma frequentadora da festa em que Jardim aparece na reportagem diz que ela é «extremamente humana» com gente de todas as classes, «ela é assim nas festas e é assim na rua» - na rua, onde fala à gentinha. Na mesma festa, alguém vai mais longe nesta sublimação da luta de classes através da simpatia da «tia» que foi ao BB passar a ferro: ela «é um bocadinho a nossa princesa do povo sem precisar de trono». E como os leitores de revistas cor-de-rosa gostam de «se rever com as pessoas que lá aparecem», Joana Lemos não tem dúvidas em elevar a função de Jardim à categoria de missão político-social: «palavra de honra, acho que isto é quase serviço público».Assim justificada a personagem com esta bateria de sólida argumentação ideológica, a reportagem da TVI avança para aspectos práticos. «É natural», refere, que ir a tantas festas «provoque algum desgaste». Daí a necessidade da operação plástica tão comercializada na imprensa especializada. O cirurgião plástico que operou Jardim vende lifts a prestações, mas isso não é referido na reportagem. Cinha Jardim quer sentir-se bem «consigo própria», mas a operação é também uma obrigação social: «as pessoas exigem de mim eu estar sempre bem». Mas, cuidado, a operação não poderia cortar-lhe «as rugas de expressão». Daí que o cirurgião explique não ter feito «nada de agressivo». A própria mostrou o trabalho do bisturi com explicações sobre as suas pálpebras e lábio superior, que a câmara acompanhou com planos de pormenor, habituais em documentários científicos. Nesta linha pedagógica, Jardim informa-nos que a recuperação da operação é «um bocadinho difícil» e explica como ultrapassá-la: «resolvi logo a questão com uma mudança de casa». Diz que não quer ser olhada apenas como «uma personagem», mas o programa revelava a grande necessidade do lado comercial dessa personagem. Divulgava a clínica de cirurgia plástica, uma loja de roupa, o esteticista, o estilista e o cabeleireiro onde ela trata «sobretudo da alma».Jardim faz o «serviço público» de ensinar à gentinha como supostamente são as coisas num escalão superior. A personagem é diferente da pessoa? Será que a tia é, primeiro, uma aparência de tia? A casa de Cinha é de uma grande pobreza. Vazia, pois a vida dela mostra-se nas festas. Será que o seu estatuto está só na pele dos media, na superfície de revistas e de écrãs? Estamos num jogo de espelhos: Jardim tenta ser adoptada pelo «povo» das audiências para comercializar a representação dum papel social. Ao «povo» porventura interessa uma porta de acesso a um mundo que quer conhecer e com que quer gozar ou, de facto, sonhar.


https://www.publico.pt/2004/08/23/jornal/uma-tia-de-servico-publico-192268 

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Miguel Esteves Cardoso - Um café no Primeiro de Maio


* Miguel Esteves Cardoso 

OPINIÃO

O trabalho está quase todo escondido, para não perturbar a doçura do nosso prazer

1 de Maio de 2023


Não há prazer sem trabalho. O prazer é seu. O trabalho é dos outros.

Hoje é dia do trabalhador e o mínimo que pode fazer quem trabalha é pensar naqueles que trabalham mais e por menos dinheiro do que nós.

Não há prazer sem trabalho. O prazer é seu. O trabalho é dos outros.

O mínimo que se pode fazer é pensar que se está a trocar o nosso trabalho, na forma do dinheiro que pagamos por um serviço, pelo trabalho dos outros.

Mas quantos minutos de trabalho lhe custou esse café? E quantos minutos tem de trabalhar o empregado que lhe serviu esse café para ganhar a mesma quantia?


Quando bebemos um café no dia 1 de Maio, a primeira coisa que procuramos saber é "o que é que está aberto?" Ou, por outras palavras, "quem é que está a trabalhar? Quem é que não teve direito a feriado, neste dia do trabalhador?"

Os feriados foram uma conquista sindical. Os fins-de-semana foram uma conquista sindical. As semanas de 40 horas foram uma conquista sindical. E digo conquista no sentido mais medieval: muitas pessoas morreram, muitas pessoas levaram pancada, muitas pessoas passaram fome, muitas pessoas morreram desiludidas e fracassadas para poder conquistar essas horas e esses dias, que hoje encaramos como se fossem tão naturais como o nascer e o pôr-do-sol.

Quando bebemos um café no 1 de Maio, o mínimo que podemos fazer é perguntar "quem apanhou este café? Quanto receberam por esse trabalho? Em que país foi? Que protecção têm os trabalhadores nesse país? Há trabalho infantil? Do preço que paguei pelo café, quanto é que receberam as pessoas que apanharam, lavaram, secaram e transportaram o café?

O problema é que o trabalho está quase todo escondido, para não perturbar a doçura do nosso prazer com o amargo da culpa: o lucro do café é quase todo dos países sem café que importam o café por tuta-e-meia.

O trabalho atrás do nosso prazer é repetitivo e chato, mal pago e mal-agradecido.


O mínimo que podemos fazer é pensar nisso.

E reconhecê-lo.


Colunista


https://www.publico.pt/2023/05/01/opiniao/opiniao/cafe-maio-2047979