Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
quarta-feira, 31 de maio de 2023
Carrno Afonso - As Cristina Talks e a contagem dos parvos
domingo, 14 de maio de 2023
Maria Lopes - A nova vida de Jerónimo no PCP é o regresso ao ponto de partida: a Constituição
* Maria Lopes
14
de Maio de 2023
Ex-líder
comunista tem evitado aparecer junto de Paulo Raimundo para não lhe tirar
protagonismo. Queria abrandar o ritmo, mas seis meses depois percorre o país
para falar dos valores de Abril
Jerónimo de
Sousa esteve nos desfiles do 25 de Abril e do 1.º de Maio, mas foi sempre
discreto. Nuno Ferreira Santos
Numa tarde de calor antecipado num Abril que devia ser de águas mil,
sabe bem o fresco da pedra do átrio da Academia de Instrução e Recreio Familiar
Almadense. Numa das colunas de mármore verde, alguém colou uma folha com
Florbela Espanca: "Ser poeta é ser mais alto, é ser maior/ Do que os
homens! Morder como quem beija!/ É ser mendigo e dar como quem seja/ Rei do
Reino de Aquém e de Além Dor!" À frente das várias filas de cadeiras, uma
mesa com três cadeiras, uma bandeira
do PCP - a única que se verá na sala – e a nacional.
Há muita gente
reformada, todos conhecem alguém, vêm em casal como para um passeio de fim de
tarde, há mães com crianças irrequietas, jovens em pequenos grupos. Cinco
minutos depois da hora marcada, já estarão ali cerca de 150 pessoas quando
entra pelas portas de alumínio e vidro Jerónimo de Sousa, seguido
pelo ex-deputado João Oliveira, de mochila às costas. Há aplausos mas nem um
"PCP!" se ouve. Os dois antigos
deputados do PCP vêm a Almada falar sobre a Constituição da República
Portuguesa e os valores de Abril.
Jerónimo de
Sousa, eleito deputado à Constituinte, em 1975, conta episódios desse tempo em
que ajudou a elaborar a lei fundamental que pôs por escrito o novo regime
nascido da revolução dos cravos, lamenta as machadadas dos inimigos que o texto
tem levado desde então (sem resistir a duras críticas aos socialistas, a quem o
PCP deu apoio parlamentar durante quatro anos) e avisa para os “ataques antidemocráticos
e reaccionários” que se estão a preparar com a actual (e desnecessária, vinca) revisão constitucional.
Depois, o
microfone passa para a assistência: há quem lamente o aumento do custo de vida,
quem queira ver a Constituição
distribuída nas escolas, e quem aproveite para saudar "o operário que
ajudou a fazê-la". "Lá porque se é operário podem fazer-se coisas
muito mais importantes que os professores e doutores", aponta Rita
Magalhães, que já trabalhou com os eurodeputados comunistas, elogiando
Jerónimo, que foi secretário-geral
do PCP durante 18 anos.
E ainda quem
defenda ser importante tê-la em casa "para de vez em quando irmos lá ver
os nosso direitos e deveres" - ideia que João Oliveira aproveita a seguir
para defender que o principal papel de qualquer comunista ou democrata é exigir
o cumprimento da Constituição.
No final,
muitos camaradas o cumprimentam. "Hoje vou fazer uma coisa que ando há
anos para fazer", anuncia-lhe Maria Eugénia Paulitos. Jerónimo de Sousa
arregala os olhos e fica na expectativa. A antiga funcionária da Câmara de
Almada pede-lhe "dois beijinhos". E ele dá uma gargalhada.
"Álvaro Cunhal era único, mas Jerónimo é homem grande. Hoje vou
feliz", haveria de dizer depois ao PÚBLICO já o ex-líder do PCP fora
embora.
Quando nos vê,
Jerónimo abre um sorriso, mas faz um movimento com o corpo como que a
esquivar-se. Não quer falar, aponta para João Oliveira. "Ele que
fale." Não, não, obrigada. Era mesmo saber de si que queria. Jerónimo
ainda olha para o camarada do apoio que está mesmo ao seu lado… mas não, não quer
mesmo falar. Dá-nos uma palmadinha do ombro e o habitual “saúde!” e
esgueira-se.
Tem sido assim
em praticamente todo o lado onde é abordado pelos jornalistas. Desde que saiu
da liderança do partido, fez este sábado, dia 13, seis meses, só uma vez
aceitou falar às televisões - na manifestação da CGTP contra o aumento do custo
de vida, em meados de Março. Mas participou na da administração pública junto
do Parlamento; esteve no desfile do 25 de Abril na avenida e no do primeiro de
Maio.
São aparições
discretas, normalmente longe do actual secretário-geral
comunista Paulo Raimundo, como que evitando ao máximo retirar-lhe qualquer
protagonismo. No partido não se admite que haja alguma intencionalidade, que é
mesmo Jerónimo quem não pretende qualquer palco e prefere o recato.
Desde o início
do ano, Jerónimo e Oliveira estiveram juntos no Porto (onde arrancou este
périplo constitucional dos comunistas), em Évora, Coimbra e Faro. O antigo
líder comunista esteve também, sozinho, em Braga, Portalegre e Lisboa. Na
capital, acompanhou a Constituição e os valores de Abril com uma feijoada, num
almoço de domingo com o sector dos seguros no centro de trabalho de Alcântara.
A dinâmica da
agenda de Jerónimo de Sousa anda também um pouco ao sabor do ritmo das
actividades dos muitos centros de trabalho, das concelhias ou direcções
regionais que o querem ter por lá - de Norte a Sul. Participou em diversos
almoços de aniversário
do PCP (que se assinalou a 6 de Março) e é certo que a sua presença ajudar
a mobilizar os camaradas.
Para quem
queria (e devia) abrandar o ritmo, a vida não está assim tão diferente. Nem tão
calma como deveria aos 76 anos e pouco mais de um ano depois de uma operação a
uma estenose carotídea. Jerónimo está mais magro, mas com um ar menos fechado,
mais leve.
É certo que agora
não há a correria entre a sede do partido, o Parlamento (onde
esteve 40 anos) e as muitas iniciativas que as organizações locais do PCP
organizam todas as semanas, nem as reuniões da comissão política e do
secretariado do Comité Central. Mas Jerónimo vai quase todos os dias à Soeiro
Pereira Gomes, onde costuma também almoçar e até fumar um cigarro com Raimundo
na varanda - não é fácil cortar, de repente, com a lufa-lufa de comunista.
Mas por vezes
já tem que ser Jerónimo a pedir um travão aos camaradas em tanta solicitação. É
que pelo menos os fins-de-semana continuam a ser quase todos com agenda. Ainda
este sábado esteve numa sessão pública na Marinha Grande – o mesmo sítio onde
fez o seu último discurso como secretário-geral, em Novembro, e evocou
Álvaro Cunhal.
sexta-feira, 12 de maio de 2023
Marcelo, uma antologia ontológica, por Alfredo Barroso
domingo, 7 de maio de 2023
Miguel Esteves Cardoso - O tom mestre-escola
Uma proposta real Carta de Julian Assange ao rei Carlos III
Uma proposta real
Carta de Julian Assange ao rei Carlos III
Julian Assange [*]
À Sua Majestade Rei Carlos III,
No momento da coroação do meu soberano, achei por bem fazer-vos um convite sincero para comemorar este importante evento visitando o vosso próprio reino dentro de um reino: a prisão de Belmarsh de Vossa Majestade.
Sem dúvida recordareis as sábias palavras de um famoso dramaturgo: "A qualidade da misericórdia não é imposta. Ela cai como a suave chuva do céu sobre os lugares abaixo".
Ah, mas o que saberia aquele bardo de misericórdia diante do acerto de contas no alvorecer do vosso histórico reinado? Afinal, pode-se verdadeiramente conhecer a medida de uma sociedade pelo modo como trata os seus prisioneiros, e o vosso reino certamente esmerou-se a este respeito.
A Prisão de Belmarsh de Vossa Majestade situa-se na prestigiada morada de One Western Way, em Londres, apenas a uma curta distância do Old Royal Naval College, em Greenwich. Quão deleitoso deve ser ter um estabelecimento tão estimado a portar o vosso nome.
“Pode-se verdadeiramente conhecer uma sociedade pelo modo como trata os seus prisioneiros”.
É aqui que 687 dos vossos leais súbditos são mantidos, apoiando o registo do Reino Unido como a nação com a maior população encarcerada da Europa Ocidental. Como o vosso nobre governo declarou recentemente, o vosso reino está atualmente a passar pela "maior expansão de vagas prisionais em mais de um século", com as vossas ambiciosas projeções a mostrarem um aumento da população prisional de 82.000 para 106.000 nos próximos quatro anos. É, na verdade, um grande legado.
Como prisioneiro político, detido ao bel-prazer de Vossa Majestade em nome de um soberano estrangeiro envergonhado, sinto-me honrado por residir entre os muros desta instituição de classe mundial. Na verdade, o vosso reino não conhece limites.
Durante a vossa visita, tereis a oportunidade de banquetear-vos com as delícias culinárias preparadas para os seus fiéis súbditos com um generoso orçamento de duas libras por dia. Podereis saborear as cabeças de atum misturadas e as omnipresentes formas reconstituídas que supostamente são feitas de galinha. E não vos preocupeis, porque, ao contrário de instituições menores como Alcatraz ou San Quentin, não há refeições coletivas num refeitório. Em Belmarsh, os prisioneiros comem sozinhos nas suas celas, garantindo a máxima intimidade com a sua refeição.
Para além dos prazeres gustativos, posso assegurar-vos que Belmarsh oferece amplas oportunidades educativas aos vossos súbditos. Como diz Provérbio 22:6: "Educai a criança no caminho em que deve andar, e até envelhecer dele não se desviará". Observai as filas baralhadas no guichet dos medicamentos, onde os reclusos recolhem as suas receitas, não para uso diário, mas para a experiência de expansão de horizonte num "grande dia fora" – tudo de uma vez.
Também tereis a oportunidade de prestar as vossas homenagens ao meu falecido amigo Manoel Santos, um homem gay que enfrentava deportação para o Brasil de Bolsonaro, o qual tomou a sua própria vida a apenas oito jardas da minha cela usando uma corda grosseira feita com lençóis. Sua refinada voz de tenor agora silenciou para sempre.
"Meu falecido amigo Manoel Santos... o qual tomou a sua própria vida a apenas oito jardas da minha cela".
Aventurai-vos nas profundezas de Belmarsh e encontrareis o local mais isolado dentro das suas muralhas: Os cuidados de saúde (Healthcare), ou “Cuidados do inferno” ("Hellcare"), como o chamam carinhosamente os seus habitantes. Aqui, ficareis maravilhado com as regras sensatas concebidas para a segurança de todos, tais como a proibição do jogo de xadrez, se bem que permitindo o muito menos perigoso jogo de damas.
Nas profundezas do Hellcare encontra-se o lugar mais gloriosamente edificante de toda a Belmarsh, ou melhor, de todo o Reino Unido: a sublimemente denominada Belmarsh End of Life Suite. Ouvi com atenção e podereis escutar os gritos dos prisioneiros: "Irmão, estou a morrer aqui", um testemunho da qualidade de vida e de morte dentro da vossa prisão.
Mas não temais, pois há beleza a encontrar dentro destes muros. Deleitai os vossos olhos com os pitorescos corvos que fazem ninho no arame farpado e com as centenas de ratos famintos que chamam Belmarsh de casa sua. E se vierdes na Primavera, podeis mesmo ter um vislumbre dos patinhos postos pelos patos selvagens no terreno da prisão. Mas não vos demoreis, pois as ratazanas vorazes asseguram que as suas vidas são efémeras.
Imploro-vos, Rei Carlos, que visiteis a Prisão de Belmarsh de Vossa Majestade, pois é uma honra digna de um rei. Ao embarcardes no vosso reinado, lembrai-vos sempre das palavras da Bíblia na versão do Rei James: "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mateus 5:7). E que possa a misericórdia ser a luz orientadora do vosso reino, tanto dentro como fora das muralhas de Belmarsh.
O vosso mais devotado súbdito,
Julian Assange
A9379AY
05/Maio/2023
[*] Jornalista e preso político.
O original encontra-se em declassifieduk.org/a-kingly-proposal-letter-from-julian-assange-to-king-charles-iii/
Este artigo encontra-se em resistir.info
sábado, 6 de maio de 2023
Jaime Nogueira Pinto - Distopia em tempos de cólera
Quando nos
falta quase tudo, incluindo géneros alimentares, que não nos falte a
autodeterminação de género.
06 mai. 2023,
00:1867
Foi nas
vésperas das já quase cinquentenárias comemorações da revolução dos cravos –
que, pelo descarrilar da carruagem, prometem – que o Projecto de Lei nº 332/XV
foi aprovado pela Assembleia da República por 120 socialistas, 6 comunistas, 5
bloquistas, 1 animalista e 1 livre. Contra estiveram 77 sociais-democratas e 12
chegas e houve 8 iniciados liberais e 2 socialistas que se abstiveram.
Era fundamental e urgente que o projecto fosse aprovado, uma vez que a lei vem
responder a um dos problemas mais prementes da Nação.
A leitura de
algumas alíneas do dito Projecto-lei assegura-nos desde logo que é de um
importante passo no caminho para uma humanidade feliz que se trata,
assegurando-nos que, em Portugal, a utopia também é possível. Tanto que nos
remete para os slogans do Ministério da Verdade, que o English
Socialist Party of Oceania difundia, no 1984 de Orwell.
“Guerra é Paz,
Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”, é um dos mais famosos exemplos
do New Speak, Nova Fala ou Nova Língua, que os sequazes do Big
Brother cultivavam em nome da construção do melhor dos mundos e com a qual
massacravam os ouvidos e a cabeça dos pobres cidadãos oceânicos – que não
tinham nada de que se queixar, pois usufruíam de teletelas que, além de os
endoutrinarem nas boas práticas, os entretinham e vigiavam.
Talvez por isso
o 1984 de Orwell conheça agora um novo boom.
Afinal, ajuda-nos a perceber melhor o mundo que nos rodeia e a forma como está
a ser traçado o nosso “futuro radioso”. Um futuro que poderá vir a raiar
se não formos capazes de acordar do entorpecedor entretenimento que nos
proporcionam e reagir, sacudindo uma tirania que, ao contrário do pesadelo
orwelliano, nos é trazida por políticos democráticos sorridentes e
fala-baratos, por académicos com currículos pesados, por estudos
para-científicos de Observatórios, por pareceres de especialistas e animadores
televisivos, simpáticos e inofensivos. E, claro, pelos episódios grotescos e
rocambolescos da novela das nossas instituições.
“Quem controla
o Passado, controla o Futuro; quem controla o Presente controla o Passado” e “A
massa mantém a marca, a marca mantém a média e a média controla a massa”, são
mais dois dos slogans da orwelliana campanha de lavagem ao
cérebro, que também nos dirão qualquer coisa.
Sobre o
controlo do passado, é bom parar para pensar na deturpação da História de
Portugal operada nas últimas décadas, que reduz a aventura portuguesa do século
de ouro a uma crónica de violência e pilhagem indiscriminada, que equipara o
regime derrubado pelo 25 de Abril a uma variante lusa da tirania
nazi-fascista, mas que não vê no presente agravar da arrogância, da
corrupção, da displicência e da impunidade qualquer semelhança com os
donos do poder, da democracia e do país que por aqui passaram e se passearam na
Primeira República.
Distopias
Tudo isto se
tornou fácil e possível através dos media e do seu controlo.
Ainda que nos
fale eloquentemente do tempo que vivemos, o 1984 de Orwell vem
na linhagem das distopias do século XX e teve por objecto principal denunciar o
comunismo estalinista da Rússia Soviética. Logo no início, outras distopias
tinham já assinalado a inauguração da implantação forçada da utopia no mundo
real. Quatro anos depois da revolução bolchevique na Rússia, em 1921, Zamiatin
escrevia o Nós e ia parar à prisão; e, em 1932, Huxley
publicava Brave New World, inspirando-se na frase de Miranda, filha
de Próspero, o exilado duque de Milão de A Tempestade de
Shakespeare, ao ver pela primeira vez os náufragos que chegavam a terra.
“Oh Wonder!
How many goodly creatures are there here
How beauteous mankind is! Oh brave new world
That has such people in’t”
Huxley pegou no
assombro de Miranda, até aí sozinha na ilha com o pai, perante a beleza do
género humano e a bondade das suas adoráveis criaturas; e misturando utopia,
distopia, ironia, tecnologia e promiscuidade, deu-nos um admirável mundo novo,
traçado a régua e esquadro para a felicidade plena, numa sociedade organizada
por castas definidas por letras: Alfas, Betas, Deltas, Gamas e Épsilones – os
mais baixos, a massa do Lumpen.
O controle
em Brave New World era mantido através de propaganda, que
desviava a atenção e suprimia a informação relevante. A esta propaganda só
escapavam as comunidades de “Selvagens”, que viviam nas periferias
não-civilizadas. Semelhante forma de controle é também usada em Fahrenheit
451, onde se queimam os livros e se favorece a teleficção.
Nada disto é
alheio à legislação passada nas vésperas da data fundacional do regime, como se
de um símbolo da obra feita e de um princípio da obra por fazer “para cumprir
Abril” se tratasse. Não deixa de ser curioso que um sistema educativo
reconhecidamente deficiente em matéria de preparação humanista e profissional e
cheio de buracos e carências, um sistema que tem os professores em revolta há
meses e que conta com escolas onde não há sequer psicólogos, queira agora
acoitar sob a redoma da lei um Bernardo que descobriu que era Sofia, um João
que acordou Maria, uma Ricardina que quer que lhe chamem Maximino ou uma Maria
que afinal é Zé (haverá muitos casos destes, dos genuínos, fora do incentivo à
experimentação e da pressão dos ideólogos do género?) E como não podia deixar
de ser, recomenda-se também a indigitação de controleiros da discriminação de
género para acusar todos os que pequem por pensamentos, palavras, pronomes e
omissões contra o humanitário princípio de oferecer às crianças todo um leque
de identidades à escolha, independentemente daquela que lhes tenha sido
“imposta à nascença”. Com semelhante menu, há até quem se autodetermine
(li outro dia num jornal) “mulher trans, não-binária, pansexual e anarquista
relacional” … todo um programa.
Os
mistérios do sexo contados às crianças à revelia do povo
Não temos
estatísticas nem estudos credíveis que sustentem as medidas propostas. O que
temos, neste diploma, é uma cópia servil de um projecto ideológico a introduzir
nas escolas, conforme o veiculado pelo PRESSE, um “Guia de Informação e Apoio”
que se autodetermina como “um espaço, para os alunos, onde se desenvolvem
acções de informação, educação e comunicação no âmbito da educação sexual”.
Vale a pena ver.
Como em
qualquer distopia que se preze, as crianças que a partir dos sete anos se
mostrem descontentes com o sexo que lhes foi imposto à nascença e com o nome
que lhes foi atribuído no registo, podem não ter professores nem aulas,
podem não ter acompanhamento psicológico, podem não ter materiais
tecnológicos ou sequer analógicos, podem não ter actividades extra-curriculares
desportivas, musicais ou culturais mas uma coisa é certa: vão ter um
responsável, um tutor, um conselheiro, um amigo, a quem poderão pedir
orientação e manifestar o seu desconforto e desconformidade – desde
que esse desconforto e desconformidade sejam “de género”. Este
conselheiro, designado pela escola, não necessita de quaisquer credenciais
profissionais, médicas ou outras: tem apenas de ser amigo e solidário. O nome
escolhido pela criança ou adolescente terá depois de ser conhecido e respeitado
por toda a população escolar, bem como a opção de vestuário e outras expressões
da identidade autoatribuída que queira adoptar.
O PAN,
promovendo por uma vez uma tourada, insistiu que tanto os fiscais como os
formadores deveriam ter o selo ou o ferro LGBTQI+ para poderem marrar com pais,
professores, pessoal não docente e restante comunidade educativa nas sessões de
alfabetização e esclarecimento sexual por que Portugal há tanto clama.
Enfim, o
paraíso na terra.
Sublinha-se
também que, nos projectos do PAN, do Livre, e do BE, se exigem penas severas
para quaisquer “terapias de conversão” dirigidas à “correcção” da
homossexualidade ou da transexualidade, para evitar os traumas que causam (e
que causarão com certeza) e a elevada taxa de suicídios (que, com certeza, será
também real). Porém, em relação às terapias de transição de género – à
submissão a tratamentos com bloqueadores de puberdade, a tratamentos hormonais
irreversíveis e a correcções cirúrgicas – não parece haver traumas associados a
registar; ou tão pouco consequências ou taxas de suicídio dignas de nota.
Nas distopias,
o medo é o grande instrumento totalitário, mas a sua imposição é quase sempre
mais mediática, mais dirigida às consciências pela propaganda, mais incentivada
por legislação avançada do que declaradamente imperativa. E nas sociedades
ocidentais, constitucionalmente liberais, a repressão pela violência física não
é (ainda) possível – mas há sempre o império da lei…
Em Nós, de
Zamiatin, os cidadãos saíam em passeios colectivos, dando louvores ao poder;
em Brave New World, de Huxley, a sociedade buscava a felicidade
pelo conforto e pelo prazer e os cidadãos das várias castas eram agarrados e
distraídos pelo divertimento, para que a informação subversiva ou alternativa à
ordem estabelecida lhes pudesse ser sonegada sem que dessem por isso.
A presente
imposição ideológica, que descarta a biologia e outras minudências através de
um processo orwelliano aparentemente liberal, é exercida sobre uma população de
crianças e adolescentes. É parte de uma máquina de transformar em regra
situações minoritárias e marginais, com as quais há, com certeza, que ter toda
a atenção e compreensão, mas também a consciência de que não se tratam ou
resolvem por decreto nem devem generalizar-se. Entretanto, a máquina
vai-se tornando um perigo público, prometendo transformar o que aparenta ser
uma questão acessória numa questão essencial para o futuro da sociedade.
Gabriele Kuby,
em A Revolução Sexual Global – Destruição da liberdade em nome da
liberdade, explicou o processo pelo qual “os modernos e os
pós-modernos” se foram emancipando de tudo – de Deus, da natureza, da família,
da tradição e agora até da biologia. O problema é que, ficando nessa aparente
independência, orientados por coisa nenhuma a não ser pela própria vontade e
pelos próprios desejos e impulsos, se tornam muito mais vulneráveis aos fortes,
aos que controlam a informação, aos que manipulam as massas.
A oligarquia
que governa este país sabe disso. Há que acordar e reagir.
https://observador.pt/opiniao/distopia-em-tempos-de-colera/I
Carlos Coutinho - Bruxas ou açorda
José Pacheco Pereira - A crise do Governo, a crise do Presidente e a crise do jornalismo
quinta-feira, 4 de maio de 2023
Carlos Coutinho - Flagelações
quarta-feira, 3 de maio de 2023
Eduardo Cintra Torres - Uma tia de serviço público
* Eduardo Cintra Torres
23 de Agosto de 2004
A TVI apresentou uma reportagem especial sobre a personagem mediática Cinha Jardim (06.08). Em meia hora de prime time, reforçava-se o nosso conhecimento da «conhecida» (passe o pleonasmo), assim inculcando valores ideológicos a seu respeito. O título tinha um toque modernista: «A Nova! Tia Cinha». A reportagem justificava-se comercialmente por ser Jardim nos últimos meses assídua no canal. Por isso, e por ter feito uma plástica, está «nova». Exclamação. Trata-se dum trabalho jornalístico da actual fase do entretenimento. Apesar de procurar ater-se ao registo factual, a função informativa submetia-se à lúdica.Jardim fez em 2002 o rito de passagem da sociedade do espectáculo que lhe permite agora arrecadar popularidade e o que mais vier numa TV popular. Ao lavar chão na «casa» do «Big Brother Famosos», a suposta «tia» provava à audiência que era uma pessoa vulgar, assim limando arestas no ressentimento de classe contra ricos e poderosos. A reportagem da TVI, não tendo interesse como objecto televisivo, tinha-o para estudo social deste novo e vernáculo uso imoderado das tias. Mostrava a construção que se vem fazendo do conceito de «tia» para consumo popular. A expressão «tia» começou a ser usada na classe alta e média como forma de tratamento das mães dos amigos ou amigas. Não havendo relação familiar, a palavra facilita o tratamento, em substituição do demasiado próximo nome próprio ou de um demasiado afastado título social («Senhora», «Dona», Doutora», etc.). Com o uso de «tia», cria-se uma relação de círculo social fora do círculo conjugal do lar. É um jargão classista como qualquer outro: quando «menino» e «tia» se cumprimentam estão dizendo «somos cá dos nossos».As formas de tratamento de uma sociedade e de uma época são uma confissão da teia de relações entre as pessoas. Quanto mais complexa a sociedade, mais complexas as formas de tratamento. É o caso português.Desde há anos, «tia» passou a usar-se para definir a mulher de determinado estatuto económico-social e com presença regular nas festas e outros eventos que aparecem em revistas. Deixou de ser um tratamento usado num certo extracto social para passar a ser sinónimo desse mesmo grupo social. Mas, hélàs, como sempre acontece na burguesia, há traidoras de classe. A forma de tratamento foi usurpada. Tal como grande parte da «aristocracia europeia» é hoje uma marca que se vende como qualquer mercadoria, também certas «tias» e o falso jetset portugueses são uma marca destinada à venda em imprensa e alguma TV. Estão fora do círculo social que supostamente representam. Isso fica claro quando a reportagem mostra Jardim aparecendo numa festa com a câmara da TVI ou explicando a construção da sua imagem para ser consumida como um produto. Percebe-se que a titização é menos uma maneira de estar na vida do que uma maneira de ganhar a vida.Todavia, não se divulga nenhum aspecto da transacção comercial do produto «tia». Apesar de alguém definir Jardim no programa como pessoa «super-ocupada», só se revelam aspectos supostamente glamorosos. Ela está «ocupada» em vender a imagem como produto social e mediático, essa é a profissão. A construção da imagem de Jardim passou, como referi, pelo alargamento da sua «base social de apoio» participando no BB Famosos. Com as suas rugas de expressão, apresentou uma máscara de super-simpática, super-disponível, amiga de toda a gente. «A Cinha tem este talento de fazer amigos», diz um fotógrafo do «social». Podia ser um curso de Dale Carnegie: como fazer amigos e influenciar pessoas. Neste caso, ter «amigos» significa estar disponível para aparecer em festas, assim lhes garantindo influência mediática, isto é, valorização social. O rito de passagem permitiu a Jardim alargar a capacidade de mercantilização da sua pessoa em programas populares de TV. Uma frequentadora da festa em que Jardim aparece na reportagem diz que ela é «extremamente humana» com gente de todas as classes, «ela é assim nas festas e é assim na rua» - na rua, onde fala à gentinha. Na mesma festa, alguém vai mais longe nesta sublimação da luta de classes através da simpatia da «tia» que foi ao BB passar a ferro: ela «é um bocadinho a nossa princesa do povo sem precisar de trono». E como os leitores de revistas cor-de-rosa gostam de «se rever com as pessoas que lá aparecem», Joana Lemos não tem dúvidas em elevar a função de Jardim à categoria de missão político-social: «palavra de honra, acho que isto é quase serviço público».Assim justificada a personagem com esta bateria de sólida argumentação ideológica, a reportagem da TVI avança para aspectos práticos. «É natural», refere, que ir a tantas festas «provoque algum desgaste». Daí a necessidade da operação plástica tão comercializada na imprensa especializada. O cirurgião plástico que operou Jardim vende lifts a prestações, mas isso não é referido na reportagem. Cinha Jardim quer sentir-se bem «consigo própria», mas a operação é também uma obrigação social: «as pessoas exigem de mim eu estar sempre bem». Mas, cuidado, a operação não poderia cortar-lhe «as rugas de expressão». Daí que o cirurgião explique não ter feito «nada de agressivo». A própria mostrou o trabalho do bisturi com explicações sobre as suas pálpebras e lábio superior, que a câmara acompanhou com planos de pormenor, habituais em documentários científicos. Nesta linha pedagógica, Jardim informa-nos que a recuperação da operação é «um bocadinho difícil» e explica como ultrapassá-la: «resolvi logo a questão com uma mudança de casa». Diz que não quer ser olhada apenas como «uma personagem», mas o programa revelava a grande necessidade do lado comercial dessa personagem. Divulgava a clínica de cirurgia plástica, uma loja de roupa, o esteticista, o estilista e o cabeleireiro onde ela trata «sobretudo da alma».Jardim faz o «serviço público» de ensinar à gentinha como supostamente são as coisas num escalão superior. A personagem é diferente da pessoa? Será que a tia é, primeiro, uma aparência de tia? A casa de Cinha é de uma grande pobreza. Vazia, pois a vida dela mostra-se nas festas. Será que o seu estatuto está só na pele dos media, na superfície de revistas e de écrãs? Estamos num jogo de espelhos: Jardim tenta ser adoptada pelo «povo» das audiências para comercializar a representação dum papel social. Ao «povo» porventura interessa uma porta de acesso a um mundo que quer conhecer e com que quer gozar ou, de facto, sonhar.
https://www.publico.pt/2004/08/23/jornal/uma-tia-de-servico-publico-192268