quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Heler Moura - (557) O Paraíso às escuras

 hélder moura

 

 

O Paraíso com que todos sonhávamos e que nos foi, tem sido e continua a ser anunciado como estando aí mesmo a chegar à porta.

 

Todos, salvo os idiotas, sabem que se devem manter pobres as classes baixas, caso contrário nunca trabalhariam”.

 

Entrámos oficialmente na era das Fábricas às Escuras — instalações de produção altamente avançadas e totalmente automatizadas que operam sem trabalhadores ou sem necessidade de iluminação, que garantem uma operação contínua 24 horas por dia, 7 dias por semana, com um consumo mínimo de energia.

O Paraíso chegou.

Paraíso com que todos sonhávamos e que nos foi, tem sido e continua a ser anunciado como estando aí mesmo a chegar à porta, para além das diversas interpretações socio-religiosas que o têm acompanhado, vem quase sempre ligado ao aparecimento de um perturbador salto tecnológico.

Foi assim, por exemplo, com a introdução da máquina a vapor nas fábricas (1), apresentada como propiciadora para a libertação do trabalho humano, mas que devido ao ritmo que imprimia, ‘obrigou’ ao nascimento do sistema fabril em grande escala (organização eficiente e correspondente divisão de trabalho), com o consequente aumento de produção. As máquinas, que poderiam ter tornado mais leve o trabalho, fizeram-no pior.

Os proprietários sabiam que tinham de tirar tudo da máquina o mais depressa possível (também a máquina seria explorada ao máximo), porque com as novas invenções elas podiam tornar-se logo obsoletas. O que fazia que os operários tivessem de acompanhar o ritmo das máquinas.

Os dias de trabalho eram de 16 horas. Quando os trabalhadores conseguiram o direito de trabalhar em dois turnos de 12 horas, a satisfação foi imensa.

Mas, mais do que o tempo de trabalho (nas suas vidas estavam habituados a trabalharem o mesmo), a maior dificuldade que os trabalhadores tiveram foi a de se adaptarem à disciplina da fábrica: entrarem a horas certas nuns dias e a outras horas noutros, manter o ritmo de movimento das máquinas sob as ordens e supervisão de um capataz.

Os salários eram os menores possíveis. E como as mulheres e crianças podiam cuidar das máquinas, ganhando menos que um homem, estes acabaram por ficar em casa sem trabalho. No princípio os donos das fábricas iam buscar as crianças pobres aos orfanatos. Mais tarde, como os salários do pai e da mãe já não eram suficientes para manter a família, as crianças que tinham casa viram-se obrigadas a trabalhar nas fábricas e minas.

Até se chegar aos tempos de hoje em que encaramos como normal quase tudo o que “temos”, todo este processo foi de uma violência extraordinária, mas finalmente estamos quase a conseguir o Paraíso. Desses tempos de luta, perdura emblematicamente apenas a observação de Arthur Young (1741- 1820):

 

Todos, salvo os idiotas, sabem que se devem manter pobres as classes baixas, caso contrário nunca trabalhariam”.

 

E assim foi, até agora, em que oficialmente entrámos na era das Fábricas às Escuras (Dark Factories) — instalações de produção altamente avançadas e totalmente automatizadas que operam sem trabalhadores ou sem necessidade de iluminação, que garantem uma operação contínua 24 horas por dia, 7 dias por semana, com um consumo mínimo de energia.

Durante as operações normais, estas fábricas não requerem intervenção humana e funcionam sem luzes, pois os robôs e as máquinas com inteligência artificial não necessitam de orientação visual.

Os sistemas robotizados com inteligência artificial gerem as linhas de produção de forma autónoma e a logística automatizada gere o stock, a cadeia de abastecimento e o transporte de produtos acabados sem intervenção humana.

 

São óbvias as vantagens para a prução: como as máquinas trabalham 24 horas por dia, 7 dias por semana, sem interrupções, reduzindo o tempo de inatividade, dá-se um aumento da eficiência da produção; como os trabalhadores não são humanos não se pagam salários, a que acresce um menor consumo de energia, logo custos operacionais reduzidos; como a monitorização é baseada em IA, garante um fabrico preciso e produtos sem defeitos, logo um controle de qualidade consistente; como operam a velocidades muito mais altas, garantem uma maior produção com custos reduzidos, permitindo ainda uma produção escalável, adaptando-se instantaneamente às flutuações da procura; como os robôs não precisam de pausas, sono ou trocas de turno, estas fábricas podem produzir bens continuamente, sem interrupções, maximizando a produção com uma operação 24/7.

Vantagens acrescidas para os trabalhadores (devido à expansão da automação serão despedidos deixando assim de enfrentarem milhões de deslocações para o emprego; serão ajudados pelos governos e empresas através de programas de requalificação profissional a fazerem a transição para novas funções; terão mais tempo disponível para dedicarem à família e ao lazer, uma vida mais estável; outras) e para a humanidade no geral (os sistemas automatizados de iluminação, aquecimento e arrefecimento otimizam a utilização de energia, reduzindo o impacto ambiental; a gestão de recursos baseada em IA garante o mínimo de desperdício e baixas emissões de carbono; as fábricas automatizadas otimizam a utilização de energia e a eficiência dos materiais, reduzindo o desperdício; a logística orientada pela IA minimiza os custos de transporte e a pegada de carbono; outros).

 Desta vez, finalmente o Paraíso está mesmo aí! Aliás, sempre esteve aí, nunca aqui.

1.Blog de 3 de novembro de 2021, “Pensamentos sobre a Revolução Industrial”.3

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/

Boaventura de Sousa Santos - O Kampf de André Ventura

Boaventura de Sousa Santos

As primeiras intervenções dos principais candidatos às eleições para a Presidência da República portuguesa em Janeiro de 2026 têm levado muita gente (muita dela, angustiadamente) a pensar que André Ventura (AV), o candidato da extrema-direita, tem possibilidades de ganhar as eleições. Para alguns, a razão principal está na mediocridade dos outros candidatos. No caso do Almirante Gouveia e Melo, o grande operacional da luta contra o COVID-19, ocorre lembrar-lhe que o país não é uma pandemia nem a política é uma questão de logística. Já tivemos um presidente Almirante (no tempo da ditadura) e já foi demasiado. Marques Mendes é uma cópia de Marcelo Rebelo de Sousa, o actual presidente. É sabido que o original é sempre melhor que a cópia. Se o cinzento falasse e lhe perguntassem a identificação, ele responderia sem hesitação: António José Seguro, apoiado pelo partido socialista. Perante isto fica a sobrar o único candidato que não quer ser Presidente, porque, como a sua aspiração é mandar e conduzir, só o cargo de Primeiro-Ministro lhe serve. Pode então correr o risco de ser eleito contra a vontade.

A primeira vez que me chamaram a atenção para AV resultou de uma observação de uma jornalista perplexa com o facto de AV citar várias vezes o meu trabalho na sua tese de doutoramento. O intrigante era o facto de ele começar a ser conhecido como a figura principal da extrema-direita enquanto eu era conhecido como um intelectual de esquerda. Haveria alguma contradição ou algum conluio? Li a tese e conclui rapidamente que era uma tese competente e que as citações estavam certas e eram pertinentes. A tese era animada por um impulso securitário, mas dentro das normas académicas. Portanto, nada a comentar. Não havia nem contradição nem conluio.

Hoje, AV é o líder da oposição, uma oposição de extrema-direita a um governo de direita. Estou convencido de que a democracia portuguesa dificilmente sobreviverá à Presidência da República de AV. Tentarei explicar porquê. As razões têm a ver com a estratégia de AV e com as condições por que as sociedades europeias vão viver nos próximos anos.

AV em acção

Não há nenhuma originalidade nem nas ideias nem na estratégia de AV. Vêmo-la hoje a ser seguida por muitos outros líderes de extrema-direita. Todos eles são cópia de um líder que também foi cópia de outros líderes do seu tempo, mas que as circunstâncias da Europa das primeiras décadas do século XX permitiram que passasse de cópia a original. Refiro-me a Adolf Hitler. Apesar de serem muitas as diferenças entre o original e as diferentes cópias, penso ser adequado estabelecer a original como termo de comparação para o que observamos hoje. Uma diferença óbvia: enquanto AV foi um aluno brilhante e é altamente credenciado, Hitler nunca concluiu nenhuma formação académica, foi rejeitado duas vezes nas escolas de arte de Viena, nunca quis ter emprego fixo e, apesar de em Viena se autodesignar como pintor, ficava possesso quando lhe perguntavam se era pintor de paredes.

Se analisarmos a conduta deste austríaco que só em 1932 se naturalizou alemão, um ano antes de se candidatar à presidência da República da Alemanha, verificamos que ele catalogou um receituário que continua hoje a ser seguido por todos os aspirantes à destruição da democracia, usando para isso todos os instrumentos que a democracia lhes proporciona. Vejamos alguns componentes desse catálogo. As citações de Hitler são dos seus muitos discursos e também de Mein Kampf [A Minha Luta], escrito em 1924 nos nove meses que Hitler esteve preso depois do fracassado golpe (Putsch) de Munique em Novembro de 1923.

Sobre a natureza humana. Desde os tempos de fome e de dormida nos abrigos municipais, Hitler aprendeu algo que viria a repetir nos seus discursos: “Tudo o que o homem conseguiu deveu-se à sua originalidade e brutalidade.” Astúcia, habilidade para mentir, distorcer, enganar, eliminar qualquer sentimentalidade ou lealdade em favor da crueldade eram os ingredientes básicos da afirmação fundamental: a vontade. A desigualdade entre os seres humanos e entre as raças é uma lei da natureza. AV não proclama o eugenismo racista, mas estabelece o portuguesismo como um privilégio a que só alguns têm acesso, sugerindo que mesmo alguns desses só são portugueses, não por pertencerem a “nós”, mas pela corrupção ou complacência de funcionários que deleteriamente destroem a “alma portuguesa”. O nacionalismo excludente serve para naturalizar a exclusão social e o colonialismo interno nos nossos dias, por exemplo nos campos da agro-indústria.

A construção de um só inimigo. É necessário eleger um inimigo apenas e centrar nele toda a crítica. Segundo Hitler, a arte da liderança consiste “em consolidar a atenção do povo contra um só adversário e tudo fazer para que nada distraia essa atenção. O líder de génio é aquele que tem a capacidade de fazer com que os seus diferentes adversários pareçam um só, pertençam todos a uma só categoria”. Para Hitler, o inimigo é o Marxismo (a social-democracia, o comunismo) e os judeus. Não são dois inimigos, são um só. Num discurso em 27 de Fevereiro de 1926, Hitler afirmou “Se necessário, um só inimigo significa vários inimigos”. Esse inimigo é responsável por todos os males da sociedade. A rendição (traição) da Alemanha em 1918 e todo o desastre socioeconómico e político que se lhe seguiu na República de Weimar foi obra do mesmo inimigo. Esse inimigo conspira contra a sociedade, não apenas pelo que faz, mas também pelo que é. É uma raça inferior. Os judeus não são seres humanos; são a incarnação do mal. Por isso, não há nacionalismo sem racismo.  Hoje, como sabemos, o inimigo de eleição é a esquerda e os imigrantes. Parecem dois inimigos, mas são um só.

O principal inimigo é o inimigo interno. A Alemanha tinha perdido a Primeira Guerra Mundial porque não se tinha sabido sobrepor aos seus inimigos. Para Hitler, a Alemanha não perdeu a guerra, o exército, a que pertenceu como sargento, manteve a sua integridade. A Alemanha foi atraiçoada pelos inimigos internos que provocaram a sua rendição. No discurso de Fevereiro de 1926, Hitler invoca o passado glorioso do império e das colónias alemãs para concluir que os males que sobrevieram foram devidos aos revoltosos internos. “Esses não eram cidadãos; eram escumalha, uma escumalha de traidores”. Nos anos que se seguiram ao fim de guerra, a militância política do operariado comunista era intensa e exprimia com violência o mal-estar do país. Era reprimido com maior violência ainda, tanto por forças de direita, como pelos socialistas. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados em 1919 com a cumplicidade do governo socialista. Falou-se então da fracassada revolução alemã (1918-1923). Foi nesse contexto, que Hitler soube substituir o ódio de classe pelo apelo à cidadania racista.

 Hoje, para a extrema-direita portuguesa, o 25 de Abril foi uma capitulação evitável e o que se seguiu foi um desastre provocado por “gente” como Otelo Saraiva de Carvalho, Álvaro Cunhal ou Mário Soares que, entre outras coisas, escancararam as portas do país à invasão de estrangeiros que vieram pôr em perigo a integridade do país.

A solidariedade negativa. A unidade e o consenso que se promovem visam destruir o status quo – o sistema. Não há que perder tempo em elaborar soluções alternativas porque estas emergirão espontaneamente, uma vez destruído o inimigo. A união é para destruir, nunca para construir, porque só a necessidade da destruição é “óbvia”. A construção exige compromissos que devem ser mantidos na obscuridade, na ambiguidade e na conveniência do momento para conquistar o poder. Para Hitler, o importante não era o programa, mas a imagem. Em 1920, o programa do partido agradou a toda a gente, excepto aos judeus, aos capitalistas e aos que tinham ganho fortunas com a guerra. O objectivo central era mobilizar a insatisfação popular com o status quo. O importante era declarar a sociedade doente, não entrar em detalhes sobre o que seria uma sociedade saudável.

A unidade negativa deve ser tão forte quão importante é o que há a destruir.  Para isso é necessário construir o passado recente como um desastre e dramatizar sem nuances a sua dimensão, de modo a que a gravidade da situação seja considerada irremediável dentro do sistema político presente. A Alemanha não perdeu a guerra; os traidores fizeram com que ela se rendesse e se humilhasse como nação com o Tratado de Versalhes e as condições que lhe foram impostas. Compare-se hoje com o “desastre do 25 de Abril” e “toda a bandalheira de esquerda que se seguiu” (André Ventura).

A democracia é apenas um meio para atingir outros fins. Desde os tempos de Viena, Hitler cultivou um desprezo total pela democracia, pela liberdade de expressão, pela liberdade de imprensa, pelo parlamento etc. Dedicou quinze páginas de Mein Kampf para demonstrar que “a maioria representa apenas a ignorância e a cobardia… a maioria nunca pode substituir o homem”. Trata-se do homem forte que conduz as massas, elimina a corrupção e devolve a auto-estima ao país.

Temos ouvido a multiplicação retórica do homem forte como a necessidade urgente do país. Precisaríamos de “três Salazares”, um político que, aliás, nunca teve interesse em entusiasmar as massas e as conduzir. Não qualquer homem forte, mas aquele capaz de “pôr a casa em ordem”. E para que ninguém se ofenda com a referência ao passado ditatorial, mencionam-se outros homens fortes recentes que a esquerda portuguesa “normalizou”: Otelo Saraiva de Carvalho e Álvaro Cunhal. Porque o importante é a repetição do preconceito, não interessa saber que Otelo contribuiu decisivamente para o derrube da ditadura salazarista, que cometeu erros e que pagou caro por isso, enquanto Cunhal passou onze anos na prisão (oito dos quais em isolamento) pela sua luta contra a ditadura.

Hitler usou os meios legais e democráticos enquanto estes lhe ofereceram melhores oportunidades para vencer os seus inimigos. Aliás, a legalidade é uma arma ideal quando se usa para desarmar os democratas: os processos legais são lentos e com isso dão mais tempo ao tempo rápido da conquista do poder. O uso instrumental da legalidade significa, por outro lado, que ela deve ser descartada na medida em que atrapalhar.

Segundo uma sua militante, há uma “balbúrdia jurídica em que vive o Chega”, o partido de AV. Deve entender-se que essa “balbúrdia” é intencional porque o sistema judicial que a avaliar levará o tempo processual necessário até eventualmente deixar de ter efeito útil.

Controle absoluto sobre o partido. A ascensão política de Hitler foi um processo longo e tortuoso, desde a entrada no Partido dos Operários Alemães de Anton Drexler até chegar ao líder incontestado do Partido Nacional Socialista (o partido nazi). A sua notável persistência foi o seu maior segredo ante o desprezo ou a indiferença de muitos. Habituou-se a testar os seus argumentos em infindáveis reuniões nas cervejarias de Munique. A sua política começou por ser a política da rua. Mas desde cedo se convenceu de que o líder não deve tolerar divergências internas porque elas dão armas a um inimigo já de si muito poderoso. Depois do fracassado Putsch de Munique em 1923 e da prisão de Hitler, o Partido Nacional Socialista ficou reduzido a muito pouco. No norte da Alemanha e na Renânia, o partido era dominado pelos irmãos Strasser e, na concepção destes, as duas bandeiras principais do partido eram o anticapitalismo e o nacionalismo, e eram igualmente prioritárias. As tensões com Hitler eram evidentes, uma vez que Hitler pretendia uma aliança com o capitalismo. Nessa altura (1925-26), os Strassers tinham contratado um jovem que ainda não tinha 30 anos para as tarefas de propaganda. Chamava-se Paul Josef Goebbels. A tensão com Hitler era tão grande que o jovem Goebbels chegou a pedir a expulsão do partido do “pequeno burguês”. Hitler manobrou o partido, em parte recorrendo aos seus indiscutíveis dotes de orador. Pouco tempo depois, Goebbels passou-se para o lado de Hitler depois de o ouvir num discurso inflamado durante duas horas. Alguns anos depois os irmãos Strasser foram expulsos do partido. Em 1926, Hitler instituiu a Uschla (Comité para a investigação e resolução) que pôs ao seu serviço para manter o controle total sobre o partido. O outro lado do controle total do partido é o carácter excepcional do líder. Hitler cultivou a sua excentricidade, o exagero e a surpresa do seu comportamento. O poder à parte só pode vir de um ser à parte.

A trajectória de AV e o modo como tem gerido as divergências dentro do partido mostram como ele se julga (e efectivamente está) muito acima da média dos seus correligionários. A sua excentricidade e os seus excessos de linguagem são calculados ao milímetro.

Não há verdade nem mentira. Há a repetição do que nos convém até que seja verdade. Uma das maiores aprendizagens de Hitler foi aprender a mentir com convicção. Exerceu-a durante toda a vida. No final, foi-lhe fatal. Levou-o ao suicídio. Para Hitler, o exercício da força física, apesar de fundamental, nunca é suficiente se não for acompanhado pela força espiritual. Escreveu ele: “A força que combate um poder espiritual permanece como força defensiva se os que a detêm não são também os apóstolos de uma nova doutrina espiritual”. Quando se mente deve dizer-se grandes mentiras. Escreveu: “uma mentira grosseiramente impudica deixa sempre rastro mesmo depois de ser denunciada”. O colapso de uma nação só pode ser evitado por uma “tempestade de brilhante paixão, mas só os apaixonados são capazes de despertar a paixão dos outros”.

Quem já ouviu AV certamente sentiu isso.

De bem com as massas e com o dinheiro. Hitler sempre cultivou um desprezo enorme pelas “massas”. As “massas” tinham sido a sua companhia em Viena e a falta do que Hitler julgava ter (cultura) tornava-as repugnantes a seus olhos. Escreveu em Mein Kampf : “Não sei o que mais me repugnou naquele tempo: a miséria económica dos meus companheiros, a rudeza da sua moral e dos seus costumes ou o baixo nível da sua cultura intelectual”. Odiava toda a ideologia do operariado: desprezo pela nação e pela pátria, pelo direito, pela religião e pela moral. Segundo ele, o pobre operariado tinha sido envenenado pela doutrinação dos socialistas que exploravam para seu benefício as difíceis condições em que os operários eram forçados a viver.

Hitler escreveu: “Ser um líder significa ser capaz de mover as massas”. Mas também anotou: “Aprendi que as massas só são atraídas por quem é forte e intransigente…Não sabem como fazer uma escolha liberal e tendem a sentir que foram abandonados… Também cheguei à conclusão de que a intimidação física é importante tanto para as massas como para os indivíduos …O poder das massas para compreender é fraco. Por outro lado, elas esquecem rapidamente. Sendo assim, a propaganda eficaz deve limitar-se a necessidades básicas e exprimir-se em poucas fórmulas estereotipadas”.

Se as massas significavam votos, o dinheiro era fundamental para alimentar a propaganda e manter a organização. Por isso, Hitler quis sempre ser todas as coisas para todos aqueles que via como instrumentos para atingir o poder. Por isso, arreou a bandeira do anticapitalismo e enviou Goering para Berlim a fim de estreitar os laços com o grande capital. Em 1929, Hitler já era saudado pelo grande capital e pela grande indústria que via nas suas qualidades de agitador o futuro que mais convinha ao capital numa situação de crise, uma política antidemocrática e anticlasse operária.

Certamente serão os portugueses mais vulneráveis ou mais ressentidos com as ameaças de descer de classe que encherão as urnas de votos no Chega, mas não serão eles que pagarão os custos de uma organização que exibe tamanha abundância de propaganda, tanto no mundo tradicional da publicidade, como no mundo novo das redes sociais.

Se as condições do povo melhoram, nega-se esse facto ou declara-se que é precário e vai durar pouco tempo. O projecto de Hitler beneficiou de condições iniciais muito especiais. Quando, em 1923, um país humilhado pelas condições da rendição que lhe tinham sido impostas se declarou impossibilitado de continuar a pagar as indemnizações de guerra, a França ocupou a rica região do Ruhr, o coração energético e industrial da Alemanha. Para além da humilhação, degradou-se ainda mais a situação económica. A desvalorização do marco aumentou, e, com ela, aprofundou-se a crise económica, o desemprego e o desespero de milhões de trabalhadores e suas famílias. Hitler aproveitou astutamente todos os elementos desta crise, juntando-os num só diagnóstico contra um só inimigo. Em 1923, 30% dos membros do partido estavam desempregados. A sua leitura manteve-se inflexível: “Enquanto a nação não se livrar dos assassinos dentro das suas fronteiras, nenhum êxito externo será possível”. O ódio de Hitler, em vez de se dirigir aos franceses, dirigia-se ao bando corrupto que governava o regime. Este foi o contexto que levou ao golpe de Munique. No tribunal, Hitler assumiu toda a responsabilidade, mas acrescentou: “não sou por essa razão um criminoso. Se hoje estou aqui como revolucionário é porque sou um revolucionário contra a Revolução. Não existe alta traição contra os traidores de 1918”. E os traidores são sempre os mesmos: socialistas, comunistas e judeus.

A partir de 1925, as condições da Alemanha começaram a melhorar e a Alemanha foi admitida na Liga das Nações (1926) (da qual saiu dez anos mais tarde por decisão de Hitler). As profecias do apocalipse e do desastre iminente deixaram de ser eficazes. A partir de então, Hitler passou a insistir no carácter precário e passageiro das melhorias. Por puro instinto de propaganda, esta era a melhor maneira de persistir na sua caminhada para o poder. A Grande Depressão de 1929 viria a dar-lhe razão.

As circunstâncias epocais

Os líderes de extrema-direita criam muita realidade artificial, mas fazem-no, em geral, a partir de fragmentos da realidade real. Há circunstâncias que favorecem o salto autoritário e há condições que, pelo contrário, o impedem. A partir de 1924, a Alemanha começou a recuperar e, como vimos, Hitler sentiu que era necessário assumir posições mais centristas. Talvez tudo ficasse por aí se, entretanto, não ocorresse a Grande Depressão de 1929. O desemprego massivo, a proliferação das greves, em suma, a profunda crise social que se seguiu foram o grande impulso para a clarificação e ressurgimento do partido. Ao mesmo tempo que as milícias do partido (as SA, Sturmabteilung) faziam agitação social, Hitler declarava-se contra as greves para não perder o apoio dos grandes capitalistas que já então assegurara. Quando em 1930, Strasser, líder da ala radical do partido, lhe perguntava (pouco antes de ser expulso do partido) se, no caso de conquistar o poder, nacionalizaria o grande grupo capitalista Krupp, Hitler respondeu-lhe: “Claro que o deixaria em paz. Julgas que eu seria louco ao ponto de destruir a economia do país?”. Pouco depois, Goebbels escrevia, “não somos contra o capitalismo, somos contra o seu abuso…Para nós a propriedade é sagrada”. Em Setembro de 1930, o partido Nazi, para espanto do mundo, tinha um êxito eleitoral estrondoso. Depois, foi o tapete vermelho que conhecemos. Primeiro, o vermelho da glória; depois, o vermelho do sangue inocente de milhões.

A democracia portuguesa não corre neste momento nenhum perigo existencial, mas os tempos que se avizinham não auguram nada de bom para o mundo, para a Europa e, portanto, para Portugal.  O crescimento global da extrema-direita é um sintoma (não a causa) do que está para acontecer. Não vou aqui discutir a questão mais geral da incompatibilidade entre o capitalismo (assente na acumulação capitalista infinita) e a democracia (assente no princípio da soberania popular). Limito-me a afirmar que o neoliberalismo (a versão globalmente dominante do capitalismo desde a década de 1980) tem vindo a destruir tudo o que na democracia significava bem-estar e segurança humana (viver sem medo e sem carências básicas) para as grandes maiorias (digamos, sem excesso de rigor, para as classes populares). Essa destruição está a atingir limites que se expressam na passagem do Estado de bem-estar para o Estado de mal-estar. É dessa passagem que a extrema-direita se alimenta.

As respostas dos governos do arco da governação (direita, centro e centro-esquerda) não se têm oposto a esta destruição e procuram responder ao mal-estar com medidas repressivas, em vez de medidas que garantam a reposição do bem-estar. Como mostrei, a repressão e a solidariedade negativa são o DNA da extrema-direita e por isso não admira que ela cresça menos pelo seu mérito do que pelo demérito das forças que se lhe deviam opor. Esta últimas “esqueceram-se” que sem tributação progressiva não há o bem-estar social relativo no capitalismo. Esqueceram-se de que no imediato pós-guerra os rendimentos mais altos chegaram a ser tributados em mais de 80% e nem por isso ficaram pobres ou deixaram de continuar a prosperar. Esqueceram-se de que sem políticas públicas sociais de qualidade (educação, saúde e pensões e transportes) não é possível garantir o bem-estar das populações, e que essa garantia em caso algum pode ser dada pelo sector privado, cujo objectivo legítimo é acumular riqueza, não distribuí-la.

A democracia tem vindo a ser desfigurada e substituída por um novo tipo de regime, o autoritarismo eleitoral vigente em países tão diferentes como a Índia, a Rússia, os EUA, a Turquia, El Salvador e a Hungria. A extrema-direita prefere o autoritarismo eleitoral à ditadura por um simples cálculo político: é aparentemente mais legítimo, sobretudo num mundo ainda bem lembrado das ditaduras. Mas para se manter este regime tem de desviar a atenção das verdadeiras causas do mal-estar (um capitalismo em grande medida auto-regulado, sobretudo no sector financeiro), transformando consequências em causas. A imigração é hoje o caso paradigmático desta transformação. Mas, como dizia Hitler, o uso da repressão nunca é eficaz se não for animado por um desígnio espiritual, seja ele Make America Great Again (MAGA) ou o orgulho de ser português e cristão. A corrupção é o outro caso de transformação de consequências em causas. A corrupção é endémica ao neoliberalismo porque este assenta na promiscuidade entre o mercado dos valores políticos (que não se compram nem se vendem) e o mercado dos valores económicos (os valores que têm preço e que se compram e se vendem). Viola assim o princípio central da teoria da democracia liberal desde John Locke que propunha a separação total entre os dois mercados de valores. A corrupção é, assim, tão endémica ao neoliberalismo quanto a luta contra ela.

O importante é que se ocultem as verdadeiras causas do mal-estar da população: sejam elas o aumento do custo de vida, a estagnação dos salários e a asfixia do poder sindical, o aumento do custo da habitação que pode consumir mais de metade do rendimento familiar, a liberalização escandalosa do preço dos medicamentos, que se tornam progressivamente inacessíveis, sobretudo a doentes crónicos.

No actual tempo europeu inventaram-se dois inimigos para distrair a atenção dos problemas reais. O inimigo interno é o imigrante, sobretudo se for islâmico; o inimigo externo é a Rússia. Nenhum europeu é capaz de imaginar a vida no seu país sem a participação dos imigrantes. Nenhum cidadão europeu é capaz de ver na Rússia uma ameaça, sobretudo se se lembrar que a Rússia foi invadida duas vezes por europeus (Napoleão e Hitler) e nunca se propôs invadir a Europa. A invasão da Ucrânia tem razões históricas antigas e recentes. É condenável a todos os títulos, mas não significa a invasão da Europa. Hoje, os europeus sabem que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia podia ter terminado três meses depois de ter começado se os EUA e os seus lacaios (Boris Johnson, aparentemente bem pago para isso) não tivessem impedido a assinatura do acordo de paz praticamente concluído. Os europeus sabem hoje que o objectivo da guerra foi inicialmente duplo. Por um lado, visou amputar a Europa de uma das suas regiões, a Rússia, com o fim de impedir o acesso da Europa à energia barata vinda da Rússia e com isso acelerar o declínio e a dependência da Europa em relação ao império declinante dos EUA. Por outro lado, visou bloquear o acesso da China à Europa e ao mundo ocidental por via da Rússia.

Mais tarde, os empresários da guerra, os lobistas da indústria de armamento, com as suas embaixadas em Bruxelas, convenceram uma classe política medíocre e ignorante a promover a guerra por sua própria iniciativa. Esta classe política nem sequer se deu conta de que todos os benefícios iriam para a indústria norte-americana, enquanto os custos recairiam exclusivamente sobre os europeus. De repente, os europeus ouviram os seus líderes a falar de guerra como se fosse a mais importante missão política dos próximos anos. Os europeus mais velhos lembram-se do passado recente e perguntam-se perplexos e impotentes. A Europa ocidental foi, depois da Segunda Guerra Mundial, o grande promotor global da paz, tendo intermediado activamente a resolução de várias guerras locais. Foi o berço do grande movimento pela paz. Mais tarde, assumiu pioneirismo na preocupação ecológica e foi o berço do movimento ecologista global. Como é que, de repente, desaparecem tanto o movimento pela paz como o movimento ecológico, e a Europa passa a ser um continente em guerra contra uma ameaça que só a classe política vê?

A invenção dos inimigos é, assim fundamental para ocultar a grande causa do mal-estar dos europeus nos próximos anos: os orçamentos militares aumentam à custa da diminuição das políticas sociais. Os políticos europeus viram-se “forçados” a mentir aos seus cidadãos. Quando estes se derem conta, haverá agitação social e a resposta será repressiva, uma vez que, neste sistema, não é possível outra resposta. Por isso, quem se diz contra o sistema é quem mais investe na vigência integral e, portanto, repressiva deste sistema. Mente duplamente, e é por isso que a sua mentira se confunde tanto com a verdade.

Neste contexto, surge uma preocupação especificamente portuguesa. Portugal é um dos países europeus com menos tradição democrática. É também um dos países com mais desigualdade social e maiores índices de pobreza. A combinação destas duas condições torna Portugal uma presa fácil de qualquer demagogia de extrema-direita. A democracia sobreviverá? Bastará a sua transformação num autoritarismo eleitoral?

A história não se repete. Isto não quer dizer que os ecos do passado não nos soem estranhamente familiares. Nem as diferenças nem as semelhanças são pura coincidência.

https://aviagemdosargonautas.net/2025/11/13/o-kampf-de-andre-ventura-por-boaventura-de-sousa-santos/

terça-feira, 11 de novembro de 2025

João Mendes - Os homens que odeiam as mulheres

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As mulheres no geral não são muito racionais, nem sequer têm a capacidade de compreender o bem comum, o bem da nação.

Mas isso não é necessariamente mau, eu não estou a fazer um ataque às mulheres, é importante perceber isto. Isto é da natureza da mulher.

Não há problema em a mulher ser assim. Eu não quero dar a decisão do futuro do meu país às mulheres. Eu acho que elas não têm essa responsabilidade. Porque estão biologicamente desenhadas para ter um filho, para agarrar num filho, para cuidar de um filho, não é para tomar decisões importantes para o futuro de um país.

É bastante consensual que os homens são geralmente mais inteligentes que as mulheres, por isso é que eu acho que só os homens mais inteligentes é que devia votar, como acontecia na Grécia Antiga.

 

Já estiveste em alguma sala com 15 mulheres para ver se acabavam as guerras? Elas fazem guerras entre elas naturalmente. Se eu tiver aqui com 15 homens não há guerra nenhuma nem conflito nenhum. Se tiverem aqui 15 mulheres sozinhas, uma é porque tem o cabelo de uma cor, a outra pintou as unhas, a outra passou à frente na fila, a outra anda com um namorado qualquer. Elas criam conflitos por tudo, as mulheres. Para se entreterem.

 

O voto universal não faz sentido. Eu acho que só deviam votar homens portugueses com propriedades. E mulheres não. Eu acho que mulheres não faz sentido que votem. Desde que demos o voto às mulheres, foi a pior coisa que fizemos nos últimos 100 anos na civilização ocidental. Eu não tenho problema nenhum e dizer isto, julguem-me à vontade, eu sei que estou certo.

Transcrevi, a custo, estas palavras de um pirralho de 25 anos que lidera um grupo de extremistas com ideias deste calibre. Trata-se de Afonso Gonçalves, líder da Reconquista, uma organização fundamentalista de inspiração neofascista e neonazi.

Nunca trabalhou, nunca fez nada de útil pela sociedade, mas isso foi o suficiente para ser acarinhado por figuras de primeira linha do CH, pela sua jota e por pessoas como Miguel Milhão, dono da Prozis, que deu palco no seu podcast para estas e outras ideias igualmente repugnantes.

Parabéns ao MaiaSport por dar palco a esta gente no passado fim-de-semana.

E parabéns às mulheres que acham que é por aqui que as suas vidas vão melhorar.

E sim, as ligações entre esta gente o CH são mais que muitas. Estiveram lá eleitos do CH, assessores e oradores ligados ao partido.

Este congresso de extremistas-mirins foi de tal forma surreal, que conseguiu abafar um facto bizarro: também na Maia, no fim-de-semana passado, realizou-se um festival de música da organização neonazi Blood & Honour.

No salão paroquial de uma igreja católica.

Repito: no salão paroquial de uma igreja católica.

Batemos no fundo?

Ainda não.

Isto ainda vai piorar antes de melhorar.

***
Imagens  da responsabilidade de VN
https://aventar.eu/2025/11/11/os-homens-que-odeiam-as-mulheres/#more-1367999

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Marcelo Tavares de Santana - IAs copiando estilos de escrita e fala

Diante das novas ameaças o que precisamos parece ser amadurecer nossas práticas atuais.

10/11/2025  

Por Marcelo Tavares de Santana*

Os algoritmos de inteligência artificial (IA) trouxeram novas possibilidades para a humanidade assim como também para golpes. Numa breve pesquisa por golpes novos nomes apareceram e num primeiro momento pode parecer precisarmos de mais ferramentas de proteção, o que aumentaria a complexidade de segurança e tornaria mais difícil manter um ambiente seguro; mas diante das novas ameaças o que precisamos parece ser amadurecer nossas práticas atuais. Estamos cada vez mais acostumados com a ideia do deepfake, onde nossas vozes e até mesmo nossas imagens são modificadas e animadas por IA, porém agora essas técnicas estão presentes até o nosso modo de escrever e falar, ou seja, pode-se até copiar o estilo de escrita de um poeta.

Já abordamos nesta coluna os ataques do tipo phishing, ou seja, tentativas de enganar o usuário para que ele entregue informações de acesso às suas contas bancárias, de e-mails, etc. A título de exemplo vamos falar de dois tipos de phishing que podem ser utilizados por IA: smishing e vishing.

O smishing é um golpe feito por SMS, portanto pode ser aplicado a qualquer tipo de comunicação via mensagem de texto. Com o uso de IA, esse tipo de ataque pode ser sofisticado aprendendo o modo de escrever das pessoas, as expressões idiomáticas que mais usam e quando gostam de inserir um pouco de humor nas conversas. Ou seja, todo o estilo de uma pessoa escrever pode ser copiado dando mais confiabilidade às mensagens falsas. Naturalmente isso só é possível se a IA for alimentada com mensagens originais para que ela possa “aprender” o estilo de escrita.

O vishing é um golpe por chamada de voz que, como vimos na matéria anterior, pode ser copiada e associada ao estilo da pessoa, tornando uma conversa por voz ainda mais convincente. Observe que estamos no momento em que nossa voz já está gravada em diversos serviços digitais de diversas empresas e além disso, nosso jeito de escrever também está copiado e apresentado publicamente nas redes sociais, portanto, os ingredientes para construírem a receita da nossa voz e do nosso estilo de escrever e falar são praticamente públicos.

Contra essa sofisticação dos golpes auxiliados por IA valem as recomendações de sempre: usar senhas fortes, chaveiro digital, autenticação multifatorial, manter programas atualizados, fazer backups regulares, não anotar senhas de banco, etc. Para complementar é sempre importante manter a calma e não permitir que outras pessoas nos coloquem em estado de urgência, principalmente quando o assunto é dinheiro. Por exemplo, se alguém disser que tem uma emergência, simplesmente basta dizer que não tem condições de atender a não ser o que se encontre pessoalmente ou dizer para ela pedir metade para alguém que não existe apenas a fim de testar se essa pessoa vai continuar a conversa ou não, se continuar é golpe.

Novos nomes de ameaças vão surgir o tempo todo, mas os alvos serão os mesmos, como obter senhas e acessos, conseguir transferências bancárias e colocar pessoas em situação de urgência. Independente das técnicas, os alvos precisam das mesmas proteções. Como falamos algumas vezes, é importante não entrar em paranóia, pois isso acaba se tornando uma falha de segurança.

Seria melhor se nós tivéssemos uma sociedade altamente escolarizada para que as pessoas fossem menos vulneráveis, no entanto isso depende mais de ações governamentais que de nós mesmos e no momento esses esforços pela educação brasileira vão mal, ainda mais agora que temos no Congresso um projeto para reduzir o investimento em educação em relação ao PIB de 10% para 7,5%, o que também do ponto de vista de segurança é péssimo pois em vez de termos uma população mais escolarizada e menos vulnerável a golpes caminha-se no caminho contrário, digamos, tornando o mercado de golpes mais viável.     

Uma tática bastante interessante numa situação de golpes por smishing, vishing e ataques similares de hoje e de amanhã, é encerrar qualquer conversa dizendo que vai retornar em outro momento por outro canal de confiança, outro aplicativo ou diretamente por telefone, principalmente quando houver algum apelo emocional pela urgência de ajuda. Pode-se também solicitar mudar a conversa para chamada de vídeo a fim de identificar, além da pessoa, se o ambiente que ela está é um lugar familiar; caso coloque aqueles filtros de fundo na conversa, questione. Em outras palavras, devemos manter nosso controle emocional em qualquer comunicação e fazer verificações sobre ela, trabalhando melhor aspectos comportamentais como por exemplo:

manter a calma diante de mensagens ou ligações urgentes;
desconfiar de pedidos de dinheiro ou situações emergenciais;
encerrar a conversa e dizer que retornará por outro canal confiável;
confirmar o pedido pessoalmente ou por chamada de vídeo;
fazer um teste simples: pedir que contate alguém inexistente e ver se insiste (indício de golpe).

A imprensa e redes sociais provavelmente sempre trarão notícias de novos golpes, e até mesmo desinformação sobre eles; sem falar nas fake news. É importante não deixar essa sobrecarga de informações atrapalhar a qualidade de nossas práticas de segurança, pois não adianta fazer coisas mais complexas se o básico não está sendo cuidado. Com a sofisticação dos golpes com IAs, pode ser mais importante a nossa percepção das comunicações a adquirir e mais programas que nunca serão mais criativos que os golpistas. Alguns desses golpes precisam ser rápidos (cinco minutos ou menos) para serem efetivados, portanto, não deixem o golpista dominar o tempo, que diferença faz atender um pedido de ajuda em cinco ou quinze minutos? Creio que nenhuma, e ainda dá tempo para verificar o contato por outros meios. Como recomendação final, procure estudar mesmo através de notícias os golpes digitais mais recentes, sempre refletindo em como se comportar em situações parecidas.

Bom estudo a todos!

*Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo

https://passapalavra.info/2025/11/158076/ 

sábado, 1 de novembro de 2025

Jaime Nogueira Pinto - O escudo democrático

* Jaime Nogueira Pinto

Colunista do Observador   

Liberalíssimos democratas a defender a proibição das redes sociais, esse tentacular polvo de caótica e amoral informação alternativa, a bem da Democracia e da luta contra o Fascismo?

01 nov. 2025,  

A Comissão Europeia tem comissários para tudo. Mas há um que tem um pelouro mais exigente do que os outros. Trata-se de Michael McGrath, Comissário Europeu para a Democracia, Justiça, Estado de Direito e Protecção do Consumidor.

Ora, dada a dimensão do campo de batalha e não estando o manipulado povo, o desinformado demos, de feição, parece que para proteger a Democracia, o Estado de Direito e o Consumidor, só mesmo instalando um Escudo. Um Escudo Democrático, contra o exército de desinformadores que, processo eleitoral a processo eleitoral, incessantemente trabalha na sombra para transviar o incauto povo europeu.

A fim de sensibilizar as massas para a implementação do dito Escudo, McGrath resolveu então organizar um debate na Comissão Europeia sob o título “A necessidade de um Escudo Democrático Europeu para fortalecer a Democracia, defender a UE da ingerência estrangeira e das ameaças híbridas e proteger os processos eleitorais na União Europeia”.

Assim, no dia 9 de Outubro, depois de desfiar os perigos que ameaçavam o futuro da Democracia na Europa, McGrath passou a tranquilizar as hostes para que não caíssem em desânimo, dando-lhes a boa-nova: graças à contribuição do Parlamento Europeu, dos Estados membros e até de cidadãos anónimos, o Democratic Shield estava pronto a ser “implementado”!

O Escudo Democrático vinha, assim, socorrer a Europa, respondendo ao premente desejo dos cidadãos europeus, conforme expresso em inquérito realizado entre 31 de Março e 26 de Maio deste ano. Para o comissário, as 5 mil respostas ao inquérito (num universo de 400 milhões de eleitores) eram, já de si, um sinal positivo. Uma grande riqueza, a participação entusiástica dos cidadãos da Europa. É certo que, dos 5 mil cidadãos que responderam à consulta, só 79 se mostraram favoráveis à implementação do dito Escudo, mas não seria isso mais uma prova das “ameaças híbridas” e das “ingerências estrangeiras” que andavam no ar?

Em contrapartida, das 94 organizações não-governamentais inquiridas – que, essas sim, estavam no terreno –, só 8 se tinham oposto ao Democratic Shield. Os canais de desinformação, que moram lá para os lados das “redes sociais”, apressaram-se a sugerir que a discrepância talvez se devesse ao facto de a maior parte das ONGs ser financiada pela própria Comissão Europeia… Mas não eram os cidadãos europeus também financiados, e até agraciados, pela Comissão, com comissões, debates, recomendações, subsídios e altos funcionários que permanentemente trabalhavam em sua defesa e em defesa da Democracia?

Independentemente dos inquéritos, o Escudo Democrático impunha-se; até para conter as escolhas eleitorais de povos cada vez mais manipulados e desinformados, que insistiam em ameaçar a Democracia, apesar dos inúmeros avisos da imprensa de referência e das inúmeras recomendações e sanções das inúmeras comissões.

À beira de um ataque de nervos

O Escudo do comissário do povo europeu Michael McGrath é só um exemplo da forma mais organizada e institucional que a reacção sistémica ao “voto do povo” tem vindo a tomar. A prática de recorrer a instrumentos jurídicos para, em nome da Democracia, proibir ou tornar ilegais eleições “que não correram bem” e prevenir as que poderão não correr bem, parece ter-se normalizado. A primeira volta das eleições na Roménia, por exemplo, foi anulada porque o “candidato errado” estava à frente; igualmente esclarecedora, é a tentativa de impôr a Marine Le Pen uma sentença extraordinária por ter como funcionários no Parlamento Europeu alguns dos seus quadros partidários, prática generalizada entre os partidos franceses e europeus.

Também em Portugal – e logo num momento de grandes elogios à actividade jornalística e ao papel da liberdade de pensamento e de escrita no nascimento e consolidação da Democracia – parece haver partidários dos “escudos democráticos”, nomeadamente contra as famigeradas “redes sociais” (como se “as redes sociais” fossem uma realidade unívoca e unilateral, e como se a desinformação, o discurso de ódio e os disparates só por lá andassem). A alternativa, supomos, seria ficarmos unicamente com os chamados jornais de referência e com uma aturada selecção de respeitáveis pivots e comentadores televisivos, capazes de informar democraticamente o povo, com a decência, o rigor, a objectividade, a correcção e a actualidade que a Democracia exige. (No Domingo passado, quando já se sabiam os resultados na Argentina, um dos canais de referência, atido ao wishfull thinking das sondagens e a uma suposta vitória dos peronistas em Bueno Aires, ainda dava Milei a perder as eleições parlamentares na Argentina).

Liberalíssimos democratas a defender a proibição das redes sociais, esse tentacular polvo de caótica e amoral informação alternativa, a bem da Democracia e da luta contra o Fascismo? O mesmo Fascismo instituído pelo Estado Novo, esse “bafiento regime de terror”, que censurava tudo o que era amoral e…alternativo?

Com todo este “ó tempo volta para trás”, só podem estar à beira de um ataque de nervos.

https://observador.pt/opiniao/o-escudo-democratico/ 

António Barreto - Ventura, Salazar e os ciganos



* António Barreto
1 de Novembro de 2025


Proibir cartazes por serem a tradução de “discurso de ódio” é acto tão condenável quanto a utilização desse mesmo discurso. O “discurso de ódio” é uma das grandes idiotias do tempo presente.


Saber se Ventura é ou não fascista é questão relativamente pouco interessante. Nem ele o saberá, talvez. Há hoje, à face da terra, em Portugal e no mundo, outras variedades de simpatias políticas, umas mais interessantes, outras mais perigosas. Saber se ele é racista, colonialista, adepto da supremacia branca, populista, machista, paternalista, integrista ou integralista, eis questões também pouco importantes, mas às quais já se pode prestar alguma atenção, a fim de compreender a pessoa.

Os cartazes de Ventura, tanto o dos ciganos como o do Bangladesh, são de enorme mau gosto, são tolices irremediáveis, mas de enorme eficácia: tinham como objectivo acicatar os piores sentimentos de parte da população e provocar oposição e ameaças de censura. Objectivos alcançados, pelo menos em parte. Esperemos por mais até às próximas eleições. E saibamos resistir ao impulso de algumas pessoas que consiste em censurar e proibir.
 
Uma das expressões favoritas de Ventura, “pôr isto em ordem”, é de uma absoluta infantilidade, é destituída de cultura e pensamento, trata-se de um mero desabafo próprio de quem procura o reflexo condicionado, não a razão nem sequer o sentimento. Deixemo-lo prosseguir nessa via, até cair no ridículo ou até revelar a vacuidade dessa palermice inqualificável. A expressão constitui lugar-comum ou cliché conhecido, tem muitas décadas de existência, não quer dizer nada e quer dizer tudo. Cada pessoa que a ouve percebe-a como quer, dá-lhe o conteúdo que deseja. É uma palavra de ordem que nada implica de conteúdo, nem de política, nem de objectivos, mas apenas alude à entrega do poder a um aventureiro. É retórica usada por todos os candidatos a líderes, verdadeiros ou maquilhados, que apenas pretendem que lhes seja dada confiança sem limites. Trata-se de expressão com equivalentes, igualmente destituídos de conteúdo, tais como “limpeza” e “vassourada”. Que se vêm acrescentar a outra de uso corrente e preferida por Ventura, sem qualquer conteúdo nem sentido, mas de forte capacidade de excitação, que é a “vergonha” que ele exprime e a “falta de vergonha” dos outros. A liberdade de expressão também inclui estes lugares-comuns e estes disparates.
 
Recentemente, Ventura fez nova aquisição teórica e política, para não dizer cultural: a expressão “é preciso um Salazar” ou mesmo “nem três Salazares chegavam”. A tolice é tanta que nem sequer tem graça. É apenas confrangedor, mas tem um mérito: revela as inclinações de Ventura. Veremos como os eleitores lhe pagarão esta confissão.

 
Estas expressões de Ventura, estas provocações de pequeno porte e reduzida inteligência, têm o condão de excitar os seus seguidores: é bom para eles, é alimento para as almas. Mas também têm o efeito de suscitar, junto dos seus adversários, as piores reacções imagináveis, da censura à proibição, passando pelo processo judicial. Punir Ventura porque é racista? Porque diz parvoíces? Proibir Ventura de dizer disparates? Não faz qualquer sentido. Ventura é assim. Pensa e diz coisas estranhas. Não sabemos se pensa, mas pelo menos diz.

 
Proibir e castigar fazem sentido quando se trata de actos, de factos, não de pensamentos ou palavras. Proibir intervenções ou cartazes por serem a tradução de “discurso de ódio” é acto tão condenável quanto o da utilização desse mesmo discurso. O “discurso de ódio” é uma das grandes invenções do tempo presente. Uma das grandes idiotias. O que é exactamente ninguém sabe. Ou antes: cada pessoa sabe, porque cada pessoa define o seu próprio ódio, cada um define os limites que prefere. Daí a encontrar definições gerais e abstractas, limites reais e palpáveis, é uma impossibilidade. Desabafar, criticar ou fazer ironia à custa de um povo ou de uma nacionalidade é “discurso de ódio” conforme quem denuncia e quem pratica: a avaliação do ódio será diferente conforme se trate de americano ou russo, judeu ou palestiniano, africano ou chinês. Não se trata, como é evidente, de terreno sólido para legislar.

 
Os gestos, os actos, os factos e as acções são uma coisa. As vozes, a palavra, a expressão pública de qualquer crença, o desejo, a vontade, o desprezo ou o insulto são outras coisas. Enquanto não houver acções racistas e violentas, incitamento e organização da violência, agressão a pessoas e vandalização de bens, os desabafos de Ventura e outros não passarão disso mesmo, palavras. Desde que não violem ou atentem realmente, não apenas verbalmente, contra os direitos e a integridade de imigrantes, ou seja de quem for, as palermices de Ventura e outros serão desabafos, desejos de arruaceiros e demagogia barata. Querer “correr” com os estrangeiros e os imigrantes é tão inteligente quanto “correr” com capitalistas, sindicalistas, padres ou militares.

 
Todos têm o direito de não gostar de ciganos, bengaleses, árabes, negros, russos, americanos e até portugueses. Todos têm o direito ao preconceito e a considerar inferiores, estúpidos, perigosos e ameaçadores os outros povos. Mais difícil ainda: todos têm o direito a exprimir publicamente os seus pensamentos, as suas crendices e os seus preconceitos. Tentar censurar, proibir ou controlar a expressão verbal dos seus pensamentos é tão grave quanto cometer actos de agressão ou de violência.

 
Há ainda a questão do insulto. Muitas pessoas pensam que o insulto deve ser controlado, censurado, eventualmente castigado. É uma velha questão. Sem pretender inovar ou ser exaustivo, o importante é distinguir entre insulto e calúnia. A segunda é em geral motivo de processo e condenação. Não se pode acusar alguém de ter praticado ou cometido actos que comprometem a honra, a reputação, a carreira ou a vida privada. Já o insulto é livre. Até ao ponto de prejudicar outrem. Sem isso, o insulto faz parte da liberdade de pensamento e de expressão.

  
As intenções de Ventura e de outros são ou parecem claras: quer ser perseguido, pretende ser proibido de falar, gostaria de ser ilegalizado, espera que alguém o acuse em tribunal, deseja que a polícia o procure e pensa mesmo que alguém, privado ou público, o poderia ameaçar. Anseia ter razões de queixa, com a esperança de ser uma vítima dos que são contra a liberdade de expressão. Ficará encantado se o acusarem de discurso de ódio. Será para ele glorioso o dia em que será acusado e processado por uso da liberdade.

https://www.publico.pt/2025/11/01/opiniao/opiniao/ventura-salazar-ciganos-2152978

domingo, 26 de outubro de 2025

Mona Shomali - O CAPITALISMO ADORA A CONCORRÊNCIA, MAS A NATUREZA TEM OUTRAS IDEIAS

REFLEXÃO



Foto: Mellifera e. V.

 O CAPITALISMO ADORA A CONCORRÊNCIA, MAS A NATUREZA TEM OUTRAS IDEIAS


Mona Shomali, Climática. Trad. O'Lima.

Economistas e líderes empresariais adotam um conceito distorcido da evolução: as corporações e os sistemas sobrevivem, dizem eles, devido a vantagens competitivas, o que os torna superiores e capazes de dominar (ou destruir) sistemas, empresas, pessoas e nações mais fracas. Isso, argumentam, torna os sistemas humanos semelhantes à natureza. Os fracos desaparecem dos ecossistemas, enquanto os fortes persistem: a chamada «sobrevivência do mais apto».

O cientista cujo trabalho inspirou esse termo não concordaria com eles.

Dei aulas a uma aula na New School, em Nova Iorque, sobre a relação entre cultura e meio ambiente. Disse aos meus alunos que os defensores do capitalismo usam a «sobrevivência do mais apto» e uma percepção incorreta da competição no mundo natural para justificar a eliminação das redes de segurança social para as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade, uma justificação implícita, por exemplo, nas ações atuais do atual governo.

Na minha experiência, sempre que alguém questiona se a competição deve ser um valor central — como no capitalismo —, as pessoas costumam dizer: «É natural! Basta olhar para a natureza!».

Mas e se ess defesa do capitalismo como algo natural tiver falhas e a concorrência nunca tiver sido a única forma de «sobreviver» ou ser «apto» num ecossistema? E se aqueles que interpretaram as teorias do naturalista Charles Darwin e as aplicaram às sociedades e economias humanas simplesmente escolheram seletivamente as partes da teoria que pareciam justificar a sua agenda?

Darwinismo social 

Em meados da década de 1850, Darwin começou a observar e estudar como os organismos e as espécies individuais encontram o seu nicho. Quando um animal encontra o seu lugar e função num ecossistema, escreveu ele, esse animal encontrou o seu nicho. Embora as espécies possam competir por um nicho, elas também podem adaptar-se e cooperar por um. Uma espécie é a mais apta quando um número suficiente dos seus membros encontrou um nicho dentro do ecossistema onde vivem. E quando um número suficiente de membros encontrou um nicho, Darwin descreveu esse processo como «a sobrevivência do mais apto».

Nas décadas seguintes à publicação do inovador livro de Darwin, A Origem das Espécies, um grupo de pensadores ocidentais utilizou a sua teoria da seleção natural para tentar explicar a competição feroz e cruel na sociedade humana.

O darwinismo social, tal como definido por eles, argumenta que indivíduos, grupos e povos estão sujeitos às mesmas leis darwinistas da seleção natural que as plantas e os animais. Pensadores ingleses como Herbert Spencer defenderam essa teoria no final do século XIX e início do século XX, e ela continua a ressoar até hoje.

O darwinismo social afirma que as classes altas competiram para serem aptas e venceram o jogo da seleção natural. Ele sugere falsamente que certas classes sociais são superiores e que a desigualdade social e a incapacidade política são um resultado natural da competição.

Não deveria ser surpresa que os pensadores colstas europeus usassem o darwinismo social para racionalizar a pressão por reformas progressistas.

Mas tal justificação baseia-se num mal-entendido e numa deturpação as observações de Darwin, pois ele também assinalou o papel igualmente importante da cooperação nos ecossistemas. A competição e a cooperação são ambas naturais entre todas as espécies.

A cooperação como mutualismo

É essencial não deturpar a dinâmica do ecossistema para justificar uma forma de organizar a sociedade humana.

Segundo o estudo da ecologia, uma relação entre duas espécies que se beneficiam mutuamente da cooperação é conhecida como mutualismo. Essa relação dá a ambas as espécies uma vantagem que, de outra forma, não teriam. O mutualismo é uma cooperação biológica que permite que dois organismos melhorem as suas possibilidades de sucesso e reprodução no ecossistema.

Por exemplo, os golfinhos precisam da ajuda do atum para encontrar os peixes mais pequenos dos quais ambos se alimentam. Os ecologistas chamam a isso caça conjunta. Noutro caso, os pica-bois-de-bico-amarelo comem as carraças do pêlo dos antílopes impala africanos. O pica-bois-de-bico-amarelo beneficia ao ter uma refeição e o antílope beneficia ao ter menos carraças incómodas.

A polinização é outro exemplo: os insetos transportam pólen de uma planta para outra enquanto beneficiam da fonte de alimento do néctar das flores em que pousam. À medida que insetos como abelhas ou borboletas pousam nas flores para se alimentar, também fertilizam as plantas com o pólen nos seus corpos. O pólen é transferido do estame para o estigma, permitindo a produção de flores e frutos. Os insetos que polinizam especificamente as plantas em troca de alimento são conhecidos como insetos benéficos.

A cooperação como adaptação

 Em A Origem das Espécies, Darwin descreveu um processo no qual certas espécies prevaleceram sobre outras porque eram melhores na adaptação. Elas cooperaram com outros organismos ou com fatores não vivos no seu ambiente para poderem sobreviver. Os ecologistas referem-se à adaptação como o processo de mudança ao longo do tempo para um organismo poder estar mais bem preparado para encontrar um nicho e sobreviver no ecossistema. Quando o ecossistema muda ou desaparece rapidamente, a espécie é forçada a considerar uma nova cooperação dentro do novo ecossistema.

As primeiras e mais famosas descrições de adaptação de Darwin foram os seus estudos dos animais das Ilhas Galápagos, no Equador. Depois de observar as aves locais, Darwin notou que os formatos dos bicos dos tentilhões se adaptaram ao longo do tempo para se ajustar aos formatos dos seus alimentos: flores, insetos, sementes e frutas.

Os camelos também se adaptaram com sucesso a um dos ecossistemas mais adversos: o deserto quente e seco. Um camelo pode passar uma semana ou mais sem beber água, o que é mais do que a maioria dos animais consegue aguentar. Os seus corpos também conservam água, pois não suam à medida que a temperatura aumenta. Os camelos também podem passar vários meses sem comer, porque armazenam gordura nas suas bossas. No entanto, se o deserto seco se tornasse repentinamente frio e húmido, um camelo não estaria preparado e teria dificuldade em se adaptar rapidamente.

Alguns animais adaptaram-se aos seus ambientes como proteção contra predadores. Uma excelente maneira de evitar ser comido por um predador é camuflar-se entre a folhagem. Muitos insetos, como o louva-a-deus, evoluíram para se parecerem com as folhas entre as quais vivem.

Ao longo de milhares de anos, as plantas e os animais evoluíram para tolerar perturbações repentinas ou condições persistentes nos seus ambientes locais. Todo o organismo vivo faz parte de uma espécie que descobriu como prosperar apesar das condições flutuantes do ecossistema. Adaptação significa que a espécie precisa de se redesenhar e remodelar para encontrar um novo nicho num ecossistema em mudança. Para sobreviver, a espécie terá que encontrar um novo propósito.

Alterações climáticas: a falta de adaptação

As mudanças rápidas num ecossistema, como as alterações climáticas, são problemáticas e não dão tempo para que os seres humanos, os animais e as plantas se adaptem à mudança nova e repentina no seu ecossistema.

Os animais e as plantas adaptam-se e cooperam, mas este não é um processo rápido, e as mudanças adaptativas dentro de um ecossistema podem levar várias gerações ou séculos. Uma espécie morre se não se adaptar com rapidez suficiente, mas as espécies que demonstrarem maior cooperação e adaptação terão uma enorme vantagem ao enfrentar perturbações e desastres.

Para aprofundar um pouco a ideia de adaptação, eu diria que o nosso fracasso no combate às alterações climáticas está enraizado na nossa incapacidade humana de nos adaptarmos às condições que causam as alterações climáticas. Adaptamo-nos reconhecendo as limitações dos ambientes em que vivemos e planeando em conformidade para não explorar, consumir em excesso e poluir. Se pudéssemos adaptar-nos às limitações do que os nossos ecossistemas podem tolerar — por exemplo, quanto carbono a nossa atmosfera pode tolerar —, teríamos uma melhor chance de sobrevivência.

Competição e falsa escassez

As espécies estão sempre a competir por um nicho, pois lutam pelo mesmo lugar no ecossistema. A competição ocorre quando os organismos lutam pelo mesmo nicho ou por um nicho semelhante, porque não há uma oferta adequada de um recurso limitado na mesma área.

Por exemplo, chitas e leões alimentam-se de presas semelhantes (como impalas). Esses concorrentes também se matam uns aos outros na luta por recursos.

>Quando as espécies lutam por um nicho, dependem da competição. A espécie que vence a competição transmite as suas características físicas às gerações futuras, enquanto a espécie que perde será extinta. A competição «funciona» devido à escassez de recursos.

Como sociedade humana, podemos decidir e organizar-nos para determinar o que fazer quando os recursos são escassos. Temos uma função executiva que nos permite gerir ou compensar a escassez. Eu diria que muitos governos criam uma falsa escassez através das suas prioridades e políticas e das escolhas de que programas cívicos decidem financiar e quais não. Isso praticamente garante «perdedores» nos nossos sistemas sociais.

Reconheco a cooperação humana

Darwin explicou nos seus escritos que os «mais aptos» não são necessariamente os maiores, os mais fortes ou os melhores lutadores do grupo. Ele detalhou como uma espécie pode ser «apta» e sobreviver através da cooperação.

A aplicação incorrecta da teoria de Darwin por parte dos pensadores ocidentais para se concentrarem selectivamente na competição é de grande alcance; o viés darwinista social em relação à competição tem sido usado para justificar a propriedade privada dos recursos do ecossistema em vez da propriedade comunitária. Quando os colonizadores desembarcaram nas Américas, Austrália, Nova Zelândia e África, dividiram as terras indígenas de propriedade comunitária e forçaram a privatização. Na propriedade privada, as pessoas competem para possuir individualmente um bem do qual se pode excluir o uso por outros. Na propriedade comunitária, é necessária adaptação e cooperação para desenvolver uma estrutura de partilha.>

Noutra das minhas palestras, discuti como Elinor Ostrom ganhou um Prémio Nobel de Economia pelo seu trabalho ao opor-se à inevitabilidade da «tragédia dos comuns» e ilustrar que os recursos de propriedade comunal podem ser bem administrados. A autora descreveu estudo de caso após estudo de caso sobre como as instituições culturais indígenas se desenvolveram para gerir a cooperação, ou como ela chamou, ação coletiva, como um desafio direto à ideia de que a privatização é uma parte necessária da modernização e do status quo no mundo ocidental.

Os darwinistas sociais têm negado muitos aspetos e comportamentos da sociedade humana que se baseiam na cooperação, e isso tem tido inúmeras implicações negativas para a humanidade e para o planeta. É importante não negligenciarmos e ignorarmos a existência de uma cooperação bem-sucedida dentro da nossa própria ecologia humana. Com uma compreensão da dinâmica real do ecossistema, em vez de extrapolações tendenciosas e falsas, podemos reivindicar a cooperação.

 

Posted by OLima at domingo, outubro 26, 2025

https://onda7.blogspot.com/2025/10/reflexao_02121545034.html

https://climatica.coop/capitalismo-ama-competencia-pero-naturaleza-otras-ideas/