segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Homilia do cardeal Tolentino de Mendonça




Homilia do cardeal  Tolentino de Mendonça na missa de corpo presente de Adília Lopes, na capela do Rato, 2 de janeiro 

Queridos irmãs e irmãos,

Talvez os nossos ouvidos já se tenham habituado, com estes dois mil anos de leitura, pois ouvimos esta página do Evangelho de São Lucas [capítulo 2] e consideramos que ela é normal, quer do ponto de vista narrativo, quer da escolha e construção das personagens ou do modo de apresentar a história. Talvez nos pareça que tudo está correto. E, contudo, este texto como que opera uma viragem brusca, uma rutura na forma de contar, isto é, na maneira de ver, de experimentar e de organizar o mundo.

O filólogo Erich Auerbach, comparando a tradição literária clássica com a tradição bíblica, sublinha que há uma diferença fundamental entre ambas, no sentido de que os textos bíblicos rompem com os cânones clássicos, escolhendo uma linha que hoje diríamos de secularização e de democratização da narrativa. O cânone clássico desenvolve-se fundamentalmente em torno a determinadas elites sociais. A existência dos homens e das mulheres representada na literatura clássica é aquela socialmente ou politicamente qualificada. Os desqualificados da história, aqueles que não têm vez nem voz no percurso do tempo, raramente aparecem como protagonistas. A tradição hebraica faz o contrário: encontramos como protagonistas, cantores e cantoras da história, personagens absolutamente improváveis. E que esta página do Evangelho adote para a narração o ponto de vista dos pastores – que eram anónimos e tidos como massa impura, gente que não contava para nada – constitui uma reviravolta. Narrar a história desse ponto de vista é uma revolução. Representa a emergência de um quadro de civilização novo. A audácia de ver as coisas ao contrário e antecipar um mundo completamente diferente.

A tradição bíblica fez isso. E os grandes criadores, ao longo da inteira história, fazem isso… Hoje já muitos ouvidos se habituaram ao modo de escrever de Adília Lopes. Mas a estranheza que se mantém é porque ela realiza uma deslocação, um gesto disruptivo: constrói o poema a partir de pontos de vista que, política ou culturalmente, temos como secundários, sem interesse, banais, impuros, absolutamente de descartar… Conta, por exemplo, uma casa a partir da osga que está na parede! Conta a história a partir da mulher a dias! Ou narra história a partir da mulher, do que as mulheres vivem, do que experimentam! Trata-se de uma grande transformação!

Aos poetas, o que é que nós devemos? Claro, a Língua deve-lhes tanto: tantos achados de linguagem, uma música que antes não se ouvia (e que Adília colheu e mostrou), uma dimensão de brincadeira e de emaravilhamento. Porém, dizermos que um poeta interessa à Literatura é uma coisa de fazer chorar as pedras… pois um poeta interessa à cidade. Como Adília afirmou, a minha poesia é política – toda a grande poesia é política. Adília Lopes interessa à cidade, é um manifesto exposto à cidade. Ela ajuda-nos a pensar, a ver.  Se a poesia dela é tão desintegrada em relação ao sistema cultural vigente, é porque precisamente ela trabalhou outro modo de ver…

E fez isso à sua maneira, escolhendo como divisa o pouco de São Francisco de Assis – e, como ela explica no prefácio ao livro A Mulher-a-dias, do pouco, quis o pouco… Essa espécie de elogio da frugalidade, da sobriedade com que ela viveu sempre – sempre – é um manifesto, uma maneira de dizer o mundo com outra gramática, indicando paradigmas sociais muito diferentes…

Caminhamos para um futuro onde perceberemos, porventura melhor, a escassez dos modelos de expansão, de crescimento contínuo. O futuro dará mais valor à sobriedade. E considerará como profetas aqueles e aquelas que viveram assim, com essa austeridade, fazendo brilhar o pouco – e tornando-o um motivo de emaravilhamento e de condivisão.

Do convívio com Adília Lopes, há três coisas que guardo no coração – e penso que partilhadas por alguns dos que estão aqui presentes (os amigos, que eram a família que ela elegeu; e os leitores, que são e serão a sua família natural, por gerações):

Primeiro, a sua capacidade de contemplação. Adília Lopes era uma contemplativa – e com uma capacidade de deter-se sobre a realidade com uma inteligência, que era não só uma inteligência agudíssima, mas também uma inteligência de coração. Adília fazia-nos sentir que há um êxtase que nos é devido. Ela viveu de forma extática – e, quando se está no emaravilhamento, tudo é maravilha! Coisas que eram lixo para as outras pessoas, ela dizia: Não, isto é maravilha! Isto é louvor! É louvor! E, nesse sentido, Adília representa a poesia, porque canta! Ela é a mulher que canta!

Depois, um aspeto que a mim me tocava muito era a forma como ela procurava transformar a sua solidão. A solidão nunca foi para Adília uma forma de rutura com os outros. Ela sentia-se sempre em comunhão com os outros. Era essencialmente comunitária.

Ela normalmente comia sozinha, mas dizia que nunca comia sozinha, porque o ato de comer é sempre social – e Adília tinha uma intensa consciência disso. O ato de viver é sempre social; o ato de respirar é sempre social. Ela viveu essa ligação aos outros de uma forma absolutamente precisa, autêntica, consciente, voluntária – a ponto de dizer: eu sou uma obra dos outros e acreditar nisso…

E gostava de ser estimulada pelos outros, de amparar os outros, de receber e fazer circular o dom na forma extraordinária que era a sua. Insistia em transformar a solidão em comunhão, em fraternidade, em comunidade… mesmo quando não era fácil. Via-se como um ser comunitário e defendia sempre a comunidade. A sua preocupação com a democracia era concreta, interessava-se por coisas que para outros são descartáveis detalhes.

E a terceira coisa que recordo é a sua fé – que talvez seja uma dimensão misteriosa, mas muito presente na sua poesia, na mística do quotidiano que ela vivia… Quando ela dizia que era uma poetisa freira barroca, não é só porque era a San Juana de la Cruz portuguesa (ou não é só porque era uma beguina, e a sua casa era um béguinage do século XXI). Era porque assumia aquilo que o seu verso diz: Há milagres, não há só truques!

E ela sabia que não há só truques, há milagres! E essa fé era ajudava-a a subir a estrada… Aquilo que a fazia caminhar não era só o ar, era a certeza de que há milagres!

Dessa certeza hoje todos somos herdeiros. E por muitos anos (por muitos séculos, esperamos!), mulheres e homens como nós talvez se sintam, não apenas órfãos da Adília Lopes… mas também herdeiros da sua obra e do que ela viu. Do que ela viveu.

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Quatro poemas

No final da celebração, o dramaturgo Miguel Castro Caldas leu quatro poemas de Adília Lopes, que se reproduzem a seguir. Todos estão incluídos em Dobra – Poesia Reunida (edição Assírio & Alvim). 

Adília Lopes, poesia

Deus é a nossa mulher-a-dias

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa

O tempo é sagrado

O tempo
é sagrado

O tempo
é templo

 
Textos ensanguentados

Textos
ensanguentados
como feridas
Gralhas
ensanguentadas
Textos
gelados
como árvores
no Inverno
Textos
como árvores
cortadas
aos bocados
Textos
como lenha
Textos
como linho
Textos
brancos
como a noite
Textos
brancos
como a neve
Textos
sagrados
Textos
bifurcados
como ramos
Textos
unos
como troncos
s
e
p
o
l
a
i
l
i
d
a

Nota 4 - Tolentino de Mendonça

Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!
Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!
Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!
Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da 
Filosofia Natural!
Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!"

domingo, 5 de janeiro de 2025

Gabriel Rockhill - As raízes nazis da NATO




* Gabriel Rockhill ,

 in Observatoriocrisis, 28/12/2024, Trad. da Estátua de Sal)


Que a NATO seja na verdade NAFO, a Organização Fascista do Atlântico Norte, não é brincadeira. É uma realidade mortalmente séria e precisa de ser mudada. A luta contra a NAFO é uma parte essencial da luta contra o fascismo e o imperialismo.



Os historiadores burgueses descrevem frequentemente o nascimento da NATO como uma organização de defesa do Atlântico Norte necessária para conter a chamada ameaça soviética. O que os historiadores burgueses não mencionam é que a ideia de uma aliança militar anticomunista entre a Europa Ocidental e os EUA foi fortemente apoiada por uma figura importante na política alemã e que a NATO tem sido por vezes considerada uma criação sua. Este homem era Heinrich Himmler, famoso pelo seu papel como líder das SS e um dos principais arquitetos do Holocausto nazi.

O coração da Segunda Guerra Mundial estava no Leste, onde Hitler, com o apoio financeiro dos principais capitalistas ocidentais, prometeu destruir o que catorze estados capitalistas não conseguiram erradicar na sequência de 1917: o socialismo realmente existente.

Assim que se tornou claro para Himmler que esta guerra tinha falhado, começando com a Batalha de Estalinegrado em 1943, ele começou a fazer propostas secretas ao Ocidente para formar uma aliança que lhes permitisse, coletivamente, fazer o que os nazis (bem como os fascistas japoneses) eram incapazes de fazer sozinhos.

Esta ideia atraiu sectores da elite ocidental e figuras poderosas dos principais países imperialistas partilharam a opinião de Himmler. Allen Dulles, o futuro diretor da CIA, queixou-se de que o seu país estava a combater o inimigo errado porque os nazis eram cristãos arianos pró-capitalistas, enquanto o verdadeiro adversário era o comunismo ateu.

Dulles, que trabalhava na altura na instituição antecessora da CIA, o Gabinete de Serviços Estratégicos, foi um dos interlocutores de Himmler para a planeada aliança anticomunista do Atlântico Norte. O general Karl Wolff, antigo braço direito de Himmler, ofereceu a Dulles, em troca de uma amnistia pós-guerra, o desenvolvimento, com os seus aliados nazis, de uma rede de inteligência contra Estaline.

Foi exatamente isso que aconteceu, e Dulles integrou muitos outros nazis e fascistas nas fileiras de uma internacional anticomunista. Isto incluiu o chefe dos serviços de inteligência nazis centrados na URSS, Reinhard Gehlen, que foi nomeado pela CIA para chefiar a inteligência da Alemanha Ocidental após a guerra, onde passou a contratar muitos dos seus colaboradores nazis.

Também incluiu, como parte da Operação Italian Dawn, Valerio Borghese, o homem conhecido como o Príncipe Negro e um dos principais líderes do fascismo do pós-guerra, que foi salvo de cair nas mãos soviéticas pelo OSS e mais tarde trabalhou para a CIA.

O oficial japonês que assinou a declaração de guerra contra os Estados Unidos, Nobusuke Kishi, conhecido como o “Diabo de Shōwa” pelo seu governo brutal de uma colónia japonesa no nordeste da China, também foi reabilitado pela infame Agência, que financiou a sua ascensão a Primeiro-ministro do Japão. Contudo, estes exemplos são apenas a ponta do iceberg, uma vez que um número incontável de fascistas foi reabilitado após a Segunda Guerra Mundial, sendo que, pelo menos 10.000 foram trazidos diretamente para os Estados Unidos.

Quando a NATO foi oficialmente criada em 1949, Portugal foi um dos seus membros fundadores. Naquela altura, Portugal era uma ditadura fascista, o que só prova o facto: a NATO foi, desde a sua fundação, uma aliança militar das potências imperialistas (fossem democracias burguesas ou estados fascistas) contra o comunismo, que era precisamente o que Himmler tinha em mente. .

A Grécia aderiu à NATO em 1953, depois de os comunistas, que desempenharam um papel de liderança na libertação do país dos nazis, terem perdido uma guerra brutal contra os novos ocupantes anticomunistas: o Reino Unido e os Estados Unidos. Tendo sido reintegrado o rei pró-fascista e depois estabelecido um governo fantoche de direita, as potências imperialistas ocidentais acolheram a Grécia na NATO assim que esta se tornou num Estado cliente anticomunista fiável. Estes padrões são visíveis ao longo da longa história da NATO, e a Ucrânia é apenas uma das versões mais recentes de um Estado cliente neofascista

A Alemanha Ocidental aderiu à NATO em 1955, o mesmo ano em que o rearmamento da República Federal da Alemanha foi autorizado através dos Acordos de Paris. O governo da Alemanha Ocidental selecionou os voluntários e admitiu 61 generais e almirantes nazis da Wehrmacht no seu novo exército, bem como muitos mais em escalões inferiores.

Entre os oficiais nazis de mais alta patente que se juntaram ao exército da Alemanha Ocidental estavam Hans Speidel e Adolf Heusinger, que foram empossados ​​como os seus dois primeiros tenentes-generais. Speidel tornou-se “chefe do Departamento de Forças Combinadas do Ministério da Defesa” e serviu como um dos principais conselheiros militares do Chanceler Konrad Adenauer (posição posteriormente ocupada por Heusinger). Heusinger, a quem Hitler se referiu como “meu fiel e leal colaborador”, tornou-se o oficial militar de mais alta patente da Alemanha Ocidental, o equivalente ao presidente do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos. Ele também atuou como avaliador-chefe da Organização Gehlen da CIA, desempenhando sua tarefa tão bem que a Agência o “considerou seriamente” para o cargo de Gehlen, de acordo com documentos internos. Heusinger, foi também como agente da CIA, que “continuou a consultar e a confiar nos representantes da CIA”, que relataram que “consideravam que as opiniões políticas de Heusinger favoreciam claramente os interesses dos EUA”. Estes dois líderes nazis foram promovidos e tornaram-se os primeiros generais de quatro estrelas da Alemanha Ocidental.

Ambos aqueles dois altos oficiais nazis desempenharam papéis importantes na NATO. Em 1954, Speidel foi nomeado o principal “negociador sobre a questão da entrada da Alemanha na NATO”. Supervisionou a integração das forças armadas da Alemanha Ocidental na NATO e foi nomeado chefe das Forças Terrestres Aliadas na Europa Central. Isto significava que Speidel era “o comandante operacional sénior de todas as divisões alemãs, americanas, francesas e britânicas atribuídas à Região Central da NATO”. E Heusinger, um oficial nazi de alta patente diretamente envolvido na guerra genocida contra a URSS, teria sido o principal comandante terrestre da NATO se a guerra eclodisse com os países do Pacto de Varsóvia. Esta figura tornou-se “oficial militar superior e principal conselheiro militar do secretário-geral” da NATO, servindo como presidente do Comité Militar da NATO, “o posto mais alto no ramo não civil da organização”.

Speidel e Heusinger, como muitos outros que aderiram à NATO, não eram nazis de baixa patente. Speidel foi promovido a tenente-general em janeiro de 1944 e condecorado com a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro pelos seus serviços na guerra de eliminação antissoviética.

De acordo com um folheto informativo de 1961 do senador Wayne Morse, Heusinger tornou-se “chefe de operações do estado-maior de Hitler” em 1941 e foi “responsável pelo planeamento militar de todas as invasões nazis depois disso”. Ele chefiou os esquadrões especiais de extermínio (Einsatzgruppen) que tinham a tarefa de liquidar “todos os judeus e outros grupos”.

Heusinger explicou a sua opinião sobre estas questões com notável franqueza: “Sempre foi minha opinião pessoal que o tratamento da população civil e os métodos de guerra anti partidária (extermínio) apresentavam aos líderes políticos e militares uma oportunidade de levar a cabo os seus planos, nomeadamente, o extermínio sistemático do eslavismo e do judaísmo.”

Speidel e Heusinger não foram os únicos alemães a seguir o caminho dos nazis rumo à NATO, mas as suas posições de liderança revelam quão descarada tem sido a NATO no que diz respeito aos seus laços com o fascismo. Ambos também estiveram envolvidos na criação de exércitos “restantes”, que eram milícias fascistas secretas cujo suposto propósito original era servir como forças militares que permaneceriam atrás das linhas inimigas para realizar atos de sabotagem, espionagem, no caso de uma invasão soviética.

Na Alemanha, o coronel nazi Albert Schnez criou uma rede de cerca de 2.000 oficiais nazis e 10.000 soldados, alegando ser capaz de mobilizar 40.000 combatentes em caso de guerra. Eles tinham apoio financeiro do mundo dos negócios e compartilhavam regularmente informações com a Organização Gehlen. O próprio Gehlen era “o pai espiritual do Stay Behind na Alemanha”. A organização de Schnez também tinha contactos com duas outras redes nazis, ambas financiadas secretamente pelos EUA: o Technischer Dienst (Serviço Técnico) e a Liga da Juventude Alemã.

Os exércitos de retaguarda que estes líderes nazis estabeleceram na Alemanha Ocidental faziam parte de uma rede da Europa Ocidental de milícias fascistas secretas criadas pela CIA, MI6 e NATO.

Estas organizações recrutaram nazis, fascistas e outros anticomunistas de extrema-direita, forneceram-lhes armas e munições e equiparam-nos totalmente para travar a guerra. Foram ativados para cometer ataques terroristas de bandeira falsa contra a população civil, que foram atribuídos aos comunistas para justificar a repressão e obter apoio para os chamados governos da lei e da ordem.

Esta estratégia anticomunista de tensão foi extremamente letal: matou centenas de pessoas e feriu milhares. A NATO esteve por detrás destes ataques terroristas de bandeira falsa e os nazis da NATO estiveram, no mínimo, envolvidos na criação das organizações que os cometeram.

A conhecida piada de que a NATO é na verdade NAFO, a Organização Fascista do Atlântico Norte, não é brincadeira. É uma realidade mortalmente séria e precisa de ser mudada. A luta contra a NAFO é uma parte essencial da luta contra o fascismo e o imperialismo.

(*) O autor é professor de Filosofia na Universidade de Vilanova.

Fonte aqui.  https://observatoriocrisis.com/2024/12/28/las-raices-nazis-de-la-otan-2/

https://estatuadesal.com/2025/01/04/as-raizes-nazis-da-nato/

Miguel Esteves Cardoso - A Festa do «Avante!» chateia…

* Miguel Esteves Cardoso


 A Festa do «Avante!» é a maior iniciativa político-cultural do país. Ela é, como se sabe, o resultado do trabalho voluntário de milhares e milhares de militantes e simpatizantes comunistas. A forma como é tratada pela comunicação social dominante é um exemplo, dos mais evidentes, do silenciamento a é submetida nos jornais, revistas, rádios e televisões, toda a actividade do PCP. Uma actividade que, sublinhe-se, é maior do que a soma das actividades de todos os restantes partidos.

Quando não é o silêncio é a inverdade. Dizem-se muitas mentiras acerca da Festa do «Avante!»: que é irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que é um grande negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político; que hoje é só comes e bebes.

As festas do «Avante!», por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas. É espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só no sentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que é trabalhar de graça. Mas não basta trabalhar: também é preciso querer mudar o mundo. E querer só por si, não chega. É preciso ter a certeza que se vai mudá-lo. Por isso o conceito do PCP de «colectivo partidário» parece provocar indisposições a muito comentador de serviço.

Porque os comunistas não se limitam a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a razão da própria história. É por isso que não podem parar; que aguentam todas as derrotas e todos os revezes; que são dotados de uma avassaladora e paradoxalmente energética paciência; porque acreditam que são a última barreira entre a civilização e a selvajaria.

Por isso sobre a construção da Festa cai um silêncio ensurdecedor.

Não há psicologias de multidões para ninguém: são mais que muitos, mas cada um está na sua. Isto é muito importante. Ninguém ali está a ser levado ou foi trazido ou está só por estar. Nada é forçado. Não há chamarizes nem compulsões. Vale tudo até o aborrecimento. Ou seja: é o contrário do que se pensa quando se pensa num comício ou numa festa obrigatória. Muito menos comunista. Todos os portugueses haviam de ir de cinco em cinco anos a uma Festa do «Avante!», só para enxotar estereótipos e baralhar ideias. Por isso, a Festa é um «perigo» que há que exterminar.

Assim se chega a outro preconceito conveniente. Dava jeito que a festa do PCP fosse partidária, sectária e ideologicamente estrangeirada. Na verdade, não podia ser mais portuguesa e saudavelmente nacionalista. Sem a orientação e o financiamento de Moscovo, o PCP deveria ter também fenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande chatice.

A teimosia comunista é culturalmente valiosa porque é a nossa própria cultura que é teimosa. A diferença às modas e às tendências dos comunistas não é uma atitude: é um dos resultados daquela persistência dos nossos hábitos. Não é uma defesa ideológica: é uma prática que reforça e eterniza só por ser praticada.

Enquanto os outros partidos puxam dos bolsos para oferecer concertos de borla, a que assistem apenas familiares e transeuntes, a Festa do «Avante!» enche-se de entusiásticos pagadores de bilhetes.

E porquê? Porque é a festa de todos eles. Eles não só querem lá estar como gostam de lá estar. Não há a distinção entre «nós» dirigentes e «eles» militantes, que impera nos outros partidos. Há um tu-cá-tu-lá quase de festa de finalistas. Por isso, ao Programa da Festa, anunciado em conferências de imprensa, são concedidas meia dúzia de linhas ou de segundos.

Ser-se comunista é uma coisa inteira e não se pode estar a partir aos bocados. A força dos comunistas não é o sonho nem a saudade: é o dia-a- dia; é o trabalho; é o ir fazendo; e resistindo, nas festas como nas lutas. Por isso a dimensão e o êxito da Festa chateiam. Põem em causa as desculpas correntes da apatia.

2006.09.03

In jornal "Público" - Edição de 3 de Setembro de 2010

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Domingos Lobo - Os Lusíadas – Antologia temática e texto crítico, de António Borges Coelho, com ilustrações de Manuel Sam Payo



* Domingos Lobo

Camões não é a voz da reacção e do colonialismo. Camões é a voz do nosso povo, dos lusíadas, a voz da insubmissão ante os privilégios, a voz do progresso social e científico, a voz da nação portuguesa, num elevado sentido humanista», disse Álvaro Cunhal na Festa do Avante! de 1979. É este Camões que brigava contra nobres e burgueses ao lado da plebe, que sofreu injúrias, fome e prisões, que denunciou honrarias e faustos da corte enquanto o povo mourejava de sol a sol por uma côdea dura, ou se esforçava nas naus da Índia morrendo de febres, de peste e de escorbuto, submetido e explorado, esse ilustre peito lu­si­tano, que percorre os 10 cantos de Os Lu­síadas e que António Borges Coelho, com a vera sabedoria crítica do historiador, do poeta e homem de cultura, neste livro encena como questão central: Que im­por­tância têm afinal Ca­mões e Os Lu­síadas; para que serve a po­esia? A resposta de Borges Coelho é imediata e plena de contundência: para tornar mais forte a nossa “fraca humanidade”.

Que “fraca hu­ma­ni­dade”, como povo, te­ríamos, que me­mória co­lec­tiva nos fi­xaria a este chão solar e ma­drasto, que iden­ti­dade, que língua fa­la­ríamos sem os po­etas que can­taram e cantam os nossos gestos mais fe­cundos e justos, as an­danças pelo mundo em busca de pão menos suado; as pe­lejas pelas rotas tran­so­ceâ­nicas, ori­entes, oce­a­nias, áfricas, gran­je­ando es­cassa for­tuna e muito sangue der­ra­mado; as lutas pela in­de­pen­dência desde a fun­dação até 1383, que Fernão Lopes des­creveu na Cró­nica de D. João I, mo­delar es­cultor da pri­meva língua, pas­sando pelo li­rismo ar­re­ba­tado de Ber­nardim Ri­beiro, pelas alu­ci­nadas vi­a­gens de Fernão Mendes Pinto; pelo supra-Ca­mões que Pessoa quis ser, pela de­núncia da bar­bárie fas­cista que se ins­creve na pena co­ra­josa dos nossos poeta ne­or­re­a­listas, de Ma­nuel da Fon­seca a Carlos de Oli­veira, de Jo­a­quim Na­mo­rado a Ar­mindo Ro­dri­gues; o 25 de Abril de Ary dos Santos, de Ma­nuel Gusmão, de Sophia, de Jorge de Sena. An­tónio Borges Co­elho dá-nos a res­posta nesta abor­dagem cri­te­riosa e no diá­logo que ao longo do en­saio es­ta­be­lece com as mais im­pres­sivas pas­sa­gens da épica ca­mo­niana, a co­meçar nesse longo e mo­delar poema, que nos in­ter­roga: «Quem pode ser no mundo tão quieto», cons­truído em oi­tavas, ins­cre­vendo no poema a feição de mo­der­ni­dade dis­cur­siva, a agu­deza sin­gular, as vir­tu­a­li­dades do idioma, na forma como Ca­mões o uti­liza para de­nun­ciar o alhe­a­mento das classes do­mi­nantes pe­rante o des­con­certo do mundo: Quem pode ser no mundo tão quieto,/​ou quem terá tão livre o pen­sa­mento,/​quem tão ex­pe­ri­men­tado e tão dis­creto,/​tão fora, enfim, de hu­mano en­ten­di­mento/​que, ou com pú­blico efeito, ou com se­creto,/​lhe não re­volva e es­pante o sen­ti­mento,/​dei­xando-lhe o juízo quase in­certo,/​ver e notar do mundo o des­con­certo?

Borges Co­elho faz uma lei­tura nova e ac­tu­ante de Os Lu­síadas, in­ves­tindo e so­bre­le­vando as es­trofes so­ci­al­mente com­pro­me­tidas da nossa obra maior e uni­versal. É o Ca­mões hu­mano, de­fensor do povo miúdo, que tinha es­pe­rança que o país in­qui­sidor, beato e mi­se­rável mu­dasse e com ele as von­tades, To­mando sempre novas qua­li­dades. Um país de todos e pos­sível, que não apenas de um pu­nhado de no­bres, se­nhores de la­ti­fún­dios feu­dais, vi­vendo de pre­bendas da Corte e da ex­plo­ração es­crava, à tripa forra, sub­me­tendo sem cui­dados o povo miúdo à sua am­bição de poder, à ga­nância e à vã co­biça.

Ca­mões, mesmo acos­sado pela In­qui­sição, so­bre­le­vando os seus mé­todos com subtil en­genho e arte, não deixou de cri­ticar, em­bora de forma ve­lada, al­guns dos que pri­vavam na Corte de D. Se­bas­tião: Vê que esses que fre­quentam os reais/​Paços, por ver­da­deira e sã dou­trina/​Vendem adu­lação, que mal con­sente/​Mondar-se o novo trigo flo­res­cente, e não deixou também, nesse in­có­modo Canto IX, que muito boa gente ainda olha de sos­laio, de de­nun­ciar, nas es­trofes 27 e 28, a re­lação cí­nica entre no­breza e povo, pen­dendo as leis sempre para o Rei, dei­xando o povo à míngua e à mercê de todos os ul­trajes: Vê que aqueles que devem à po­breza/​Amor di­vino, e ao povo ca­ri­dade,/​Amam so­mente mandos e ri­queza,/​Si­mu­lando jus­tiça e in­te­gri­dade;/​Da feia ti­rania e de as­pe­reza/​Fazem di­reito e vã se­ve­ri­dade;/​Leis em favor do Rei se es­ta­be­lecem,/​As em favor do povo só pe­recem.

No Texto Crí­tico, que acom­panha cada pe­ríodo em aná­lise de Os Lu­síadas, es­creve An­tónio Borges Co­elho: «O verso ca­mo­niano louva e fus­tiga. Louva a co­ragem, os chefes que pre­vêem os pe­rigos, os ex­pertos peitos, os que sobem ao mando quase for­çados. E fus­tiga: reis, no­bres ineptos, fi­lhos-fa­mília, pa­dres am­bi­ci­osos e ti­râ­nicos.»

Que falta ainda nos faz este vigor, esta su­pe­rior forma de afir­mação da língua e da jus­tiça, a cla­reza e a co­ragem deste verbo. Para os que ques­ti­onam a im­por­tância de ler hoje Os Lu­síadas, a in­ter­pre­tação crí­tica que dele nos dá Borges Co­elho é ade­quada res­posta.

https://www.avante.pt/pt/2666/argumentos/178047/Os-Lus%C3%ADadas-%E2%80%93-Antologia-tem%C3%A1tica-e-texto-cr%C3%ADtico-de-Ant%C3%B3nio-Borges-Coelho-com-ilustra%C3%A7%C3%B5es-de-Manuel-Sam-Payo.htm