Homilia do cardeal Tolentino de Mendonça na missa de corpo presente de Adília Lopes, na capela do Rato, 2 de janeiro
Queridos irmãs e irmãos,
Talvez os nossos ouvidos já se tenham habituado, com estes dois mil anos de leitura, pois ouvimos esta página do Evangelho de São Lucas [capítulo 2] e consideramos que ela é normal, quer do ponto de vista narrativo, quer da escolha e construção das personagens ou do modo de apresentar a história. Talvez nos pareça que tudo está correto. E, contudo, este texto como que opera uma viragem brusca, uma rutura na forma de contar, isto é, na maneira de ver, de experimentar e de organizar o mundo.
O filólogo Erich Auerbach, comparando a tradição literária clássica com a tradição bíblica, sublinha que há uma diferença fundamental entre ambas, no sentido de que os textos bíblicos rompem com os cânones clássicos, escolhendo uma linha que hoje diríamos de secularização e de democratização da narrativa. O cânone clássico desenvolve-se fundamentalmente em torno a determinadas elites sociais. A existência dos homens e das mulheres representada na literatura clássica é aquela socialmente ou politicamente qualificada. Os desqualificados da história, aqueles que não têm vez nem voz no percurso do tempo, raramente aparecem como protagonistas. A tradição hebraica faz o contrário: encontramos como protagonistas, cantores e cantoras da história, personagens absolutamente improváveis. E que esta página do Evangelho adote para a narração o ponto de vista dos pastores – que eram anónimos e tidos como massa impura, gente que não contava para nada – constitui uma reviravolta. Narrar a história desse ponto de vista é uma revolução. Representa a emergência de um quadro de civilização novo. A audácia de ver as coisas ao contrário e antecipar um mundo completamente diferente.
A tradição bíblica fez isso. E os grandes criadores, ao longo da inteira história, fazem isso… Hoje já muitos ouvidos se habituaram ao modo de escrever de Adília Lopes. Mas a estranheza que se mantém é porque ela realiza uma deslocação, um gesto disruptivo: constrói o poema a partir de pontos de vista que, política ou culturalmente, temos como secundários, sem interesse, banais, impuros, absolutamente de descartar… Conta, por exemplo, uma casa a partir da osga que está na parede! Conta a história a partir da mulher a dias! Ou narra história a partir da mulher, do que as mulheres vivem, do que experimentam! Trata-se de uma grande transformação!
Aos poetas, o que é que nós devemos? Claro, a Língua deve-lhes tanto: tantos achados de linguagem, uma música que antes não se ouvia (e que Adília colheu e mostrou), uma dimensão de brincadeira e de emaravilhamento. Porém, dizermos que um poeta interessa à Literatura é uma coisa de fazer chorar as pedras… pois um poeta interessa à cidade. Como Adília afirmou, a minha poesia é política – toda a grande poesia é política. Adília Lopes interessa à cidade, é um manifesto exposto à cidade. Ela ajuda-nos a pensar, a ver. Se a poesia dela é tão desintegrada em relação ao sistema cultural vigente, é porque precisamente ela trabalhou outro modo de ver…
E fez isso à sua maneira, escolhendo como divisa o pouco de São Francisco de Assis – e, como ela explica no prefácio ao livro A Mulher-a-dias, do pouco, quis o pouco… Essa espécie de elogio da frugalidade, da sobriedade com que ela viveu sempre – sempre – é um manifesto, uma maneira de dizer o mundo com outra gramática, indicando paradigmas sociais muito diferentes…
Caminhamos para um futuro onde perceberemos, porventura melhor, a escassez dos modelos de expansão, de crescimento contínuo. O futuro dará mais valor à sobriedade. E considerará como profetas aqueles e aquelas que viveram assim, com essa austeridade, fazendo brilhar o pouco – e tornando-o um motivo de emaravilhamento e de condivisão.
Do convívio com Adília Lopes, há três coisas que guardo no coração – e penso que partilhadas por alguns dos que estão aqui presentes (os amigos, que eram a família que ela elegeu; e os leitores, que são e serão a sua família natural, por gerações):
Primeiro, a sua capacidade de contemplação. Adília Lopes era uma contemplativa – e com uma capacidade de deter-se sobre a realidade com uma inteligência, que era não só uma inteligência agudíssima, mas também uma inteligência de coração. Adília fazia-nos sentir que há um êxtase que nos é devido. Ela viveu de forma extática – e, quando se está no emaravilhamento, tudo é maravilha! Coisas que eram lixo para as outras pessoas, ela dizia: Não, isto é maravilha! Isto é louvor! É louvor! E, nesse sentido, Adília representa a poesia, porque canta! Ela é a mulher que canta!
Depois, um aspeto que a mim me tocava muito era a forma como ela procurava transformar a sua solidão. A solidão nunca foi para Adília uma forma de rutura com os outros. Ela sentia-se sempre em comunhão com os outros. Era essencialmente comunitária.
Ela normalmente comia sozinha, mas dizia que nunca comia sozinha, porque o ato de comer é sempre social – e Adília tinha uma intensa consciência disso. O ato de viver é sempre social; o ato de respirar é sempre social. Ela viveu essa ligação aos outros de uma forma absolutamente precisa, autêntica, consciente, voluntária – a ponto de dizer: eu sou uma obra dos outros e acreditar nisso…
E gostava de ser estimulada pelos outros, de amparar os outros, de receber e fazer circular o dom na forma extraordinária que era a sua. Insistia em transformar a solidão em comunhão, em fraternidade, em comunidade… mesmo quando não era fácil. Via-se como um ser comunitário e defendia sempre a comunidade. A sua preocupação com a democracia era concreta, interessava-se por coisas que para outros são descartáveis detalhes.
E a terceira coisa que recordo é a sua fé – que talvez seja uma dimensão misteriosa, mas muito presente na sua poesia, na mística do quotidiano que ela vivia… Quando ela dizia que era uma poetisa freira barroca, não é só porque era a San Juana de la Cruz portuguesa (ou não é só porque era uma beguina, e a sua casa era um béguinage do século XXI). Era porque assumia aquilo que o seu verso diz: Há milagres, não há só truques!
E ela sabia que não há só truques, há milagres! E essa fé era ajudava-a a subir a estrada… Aquilo que a fazia caminhar não era só o ar, era a certeza de que há milagres!
Dessa certeza hoje todos somos herdeiros. E por muitos anos (por muitos séculos, esperamos!), mulheres e homens como nós talvez se sintam, não apenas órfãos da Adília Lopes… mas também herdeiros da sua obra e do que ela viu. Do que ela viveu.
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Quatro poemas
No final da celebração, o dramaturgo Miguel Castro Caldas leu quatro poemas de Adília Lopes, que se reproduzem a seguir. Todos estão incluídos em Dobra – Poesia Reunida (edição Assírio & Alvim).
Adília Lopes, poesia
Deus é a nossa mulher-a-dias
Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta
Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa
O tempo é sagrado
O tempo
é sagrado
O tempo
é templo
Textos ensanguentados
Textos
ensanguentados
como feridas
Gralhas
ensanguentadas
Textos
gelados
como árvores
no Inverno
Textos
como árvores
cortadas
aos bocados
Textos
como lenha
Textos
como linho
Textos
brancos
como a noite
Textos
brancos
como a neve
Textos
sagrados
Textos
bifurcados
como ramos
Textos
unos
como troncos
s
e
p
o
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Nota 4 - Tolentino de Mendonça
Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!
Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!
Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!
Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da
Filosofia Natural!
Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!"