Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
domingo, 7 de setembro de 2025
Enrique Dans - VER PARA CRER. A SÉRIO?
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Alfredo Barroso -[Como encontrei Camilo na Adraga ... ]
Aurélien - Guerra em nosso tempo?
Guerra em
nosso tempo?
Precisamos
de homens de jaleco branco.
03 de
setembro de 2025
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outros idiomas, desde que deem os créditos ao original e me avisem. E agora:
**********************************
O tema da
Ucrânia continua a reaparecer na minha lista de assuntos para escrever, embora
estejamos num hiato no momento, e eu já tenha dito praticamente tudo o que
queria dizer sobre a política e a estratégia da crise por enquanto. Mas o que o
colocou na frente da fila de assuntos que exigem que eu escreva sobre eles
foram menos os acontecimentos em campo, do que o clima crescente de medo,
belicosidade e antecipação apocalíptica que parece ter tomado conta de
especialistas e políticos ocidentais, independentemente de suas posições
políticas ou simpatias. Misture isso com outros especialistas falando
calmamente sobre uma guerra com a China, e acho que temos aqui algo muito
próximo de uma psicose de guerra, que pode levar a direções muito estranhas e
perigosas.
Inicialmente,
eu me concentraria apenas na extrema dissociação da realidade que esse tipo de
pensamento representa. Quanto a isso, embora eu vá entrar em detalhes um pouco
nerds, meu ponto principal será que a ideia de travar uma guerra com a Rússia
ou a China é uma fantasia voraz para aqueles que acreditam e esperam que o
Ocidente possa vencer, e uma visão apocalíptica para aqueles que acreditam e
esperam que o Ocidente perca. Nenhuma das duas tem muito a ver com as
capacidades e a organização militares reais. Portanto, este ensaio será uma
mistura um tanto estranha, mesmo para mim, de análise simbólica e cultural
esotérica e algumas reflexões muito práticas sobre capacidades e desdobramentos
militares. Mas continue comigo.
Todos
podemos concordar que se fala em guerra em toda parte, mesmo que poucas pessoas
tenham realmente ideia do que estão falando (um ponto ao qual retornarei mais
adiante). Guerra com a Rússia, guerra com o Irã, guerra com a China, agora vejo
até mesmo guerra com a Venezuela, todas estão sendo discutidas livremente,
tanto por aqueles que estão agitando por tais conflitos quanto por aqueles que
estão aterrorizados com eles. Agora, o Ocidente já está apoiando um lado na
Ucrânia, e forças ocidentais já atacaram o Irã, então não está claro se as
pessoas entendem qual seria a diferença em caso de "guerra". (Na
verdade, há uma, e é muito séria.) De fato, nem apoiadores nem oponentes
parecem ter pensado muito sobre como a "guerra" realmente se
pareceria e quais poderiam ser suas consequências práticas. "Guerra",
neste contexto, parece ter flutuado longe de qualquer realidade, um
significante separado do significado, um conceito puramente existencial,
refletindo um estado (ou mesmo um estado de espírito) em vez de um conjunto
real definido de circunstâncias.
Então,
vamos primeiro esclarecer algumas questões. Já tratei dessas questões com mais
detalhes aqui ,
mas vou abordá-las rapidamente novamente. A primeira coisa a dizer é que
"guerra" agora é um conceito ultrapassado e não é mais um direito
soberano dos Estados. Segundo a Carta das Nações Unidas, a ação militar
deliberada contra outro Estado, ou mesmo a ameaça de tal ação, é proibida, a
menos que faça parte de uma operação aprovada pelo Conselho de Segurança. Isso
não significa que tais ataques não ocorram, mas significa que eles precisam
usar uma variedade de circunlóquios e disfarces. Nenhum Estado agora se vê como
estando "em guerra" com outro legalmente, embora políticos e
especialistas frequentemente usem esse vocabulário por descuido e ignorância.
Tradicionalmente,
estar "em guerra" era um estado legal que significava que suas forças
armadas eram direcionadas contra os interesses de seus inimigos em todos os
lugares. Assim, entre 1914 e 1918, tropas britânicas e alemãs lutaram entre si
na África, e submarinos alemães tentaram afundar navios britânicos em todo o
mundo. Ataques aéreos foram realizados nas cidades uns dos outros. Agora temos
"conflito armado", que não é o mesmo que "guerra", pois é
um conceito de fato e não de direito , e se
aplica quando certos critérios objetivos são atendidos em certas áreas
geográficas. As guerras travadas pelo Ocidente na última geração — até mesmo no
Iraque 1.0 — foram mais limitadas do que isso e se concentraram principalmente
em áreas geográficas pequenas e remotas. Portanto, o resultado é que a maioria
das pessoas que falam levianamente sobre "guerra" hoje não tem ideia
do que isso significa e parecem presumir que significa apenas que iremos a
algum lugar e atacaremos as pessoas. Não inclui a ideia de que elas possam nos
atacar de volta.
Então,
vamos pegar um balde de água fria e jogar um balde de água fria em alguns
daqueles que esperam, ou temem, que haja uma "guerra" entre a OTAN e
a Rússia. (Voltarei aos aspectos práticos dessas coisas mais tarde: vamos
apenas admitir que isso poderia acontecer em teoria.) Como seria uma guerra
dessas? É bastante claro que o Ocidente não tem planos de qualquer tipo para
tal eventualidade, então vamos começar com os russos. O objetivo deles seria
encerrar a guerra rapidamente a seu favor, atacando instalações inimigas
importantes. Eles têm mísseis de longo alcance e alta velocidade para isso, e
essa seria sua opção preferida. Acredita-se que alguns sistemas
de defesa antimísseis ocidentais tenham alguma capacidade
contra alguns sistemas russos , mas isso ainda precisa
ser demonstrado em condições operacionais em larga escala.
Então, o
que fariam? Bem, atacariam prédios governamentais e quartéis-generais políticos
e militares estratégicos. Começariam com o QG da OTAN, com o SHAPE em Mons, com
a UE em Bruxelas, com Downing Street e o Palácio do Eliseu, com a Casa Branca e
o Pentágono. Atacariam as principais bases aéreas e quartéis-generais militares
operacionais, bem como instalações de reparo e manutenção, e aeroportos civis
que seriam usados para dispersão em uma crise. Atacariam os principais
portos, os principais centros de transporte ferroviário e instalações de
geração de energia, bem como fábricas de armamentos e munições. Com avisos
suficientes, os danos às funções governamentais poderiam ser contidos por meio
da dispersão, mas o Ocidente não possui mais o aparato de redundância em tempo
de guerra que antes possuía. E quase todos esses mísseis atingirão seus alvos.
Além disso,
é claro, há a questão econômica. Todos os voos de aeronaves seriam
interrompidos imediatamente, assim como quase todos os navios. Mesmo que os
russos não tratassem os navios que entravam em portos ocidentais como alvos
militares, o simples anúncio de que seus submarinos estariam na região
paralisaria o comércio, já que ninguém faria seguro dos navios.
Em tais
circunstâncias, atacar concentrações de unidades militares da OTAN pode ser
quase irrelevante. O fato é que a contribuição da OTAN para os estágios
iniciais de uma "guerra" contra a Rússia se limitaria, talvez, a
alguns ataques com mísseis lançados do ar contra São Petersburgo e a base naval
de Murmansk, a partir de quaisquer bases aéreas sobreviventes na Escandinávia.
Mas isso seria um ataque a uma das zonas militares mais fortemente defendidas
do mundo, portanto, como linha de ação, só é aceitável com base no fato de que
não há muito mais a tentar, além, talvez, de ataques incômodos no sul do país.
Em geral, portanto, o problema é que os russos podem prejudicar o Ocidente
muito mais em uma "guerra" do que o Ocidente pode prejudicar os russos.
Então, por que o Ocidente está obcecado com a guerra? Acho que temos que olhar
primeiro para o nível do símbolo.
A função
simbólica de uma guerra antecipada sempre foi importante. Já na década de 1850,
o nacionalista irlandês John Mitchel cunhou a famosa frase "manda a guerra
em nosso tempo, ó Senhor", na esperança de que a guerra derrubasse o
decadente e mercantil Estado britânico e permitisse a independência da Irlanda.
(Esta é uma aspiração comum: quantos no Ocidente esperavam em 2022 que a
Ucrânia fosse o "Vietnã da Rússia?") E é um clichê histórico que,
antes de 1914, muitos olhavam para a guerra em abstrato, pelos benefícios que
ela traria: varrer sistemas políticos, econômicos e sociais obsoletos e
corruptos para alguns; proporcionar aventura e fuga da rotina monótona para
outros. Aqueles preocupados com o aumento de conflitos políticos domésticos ou
tensões internas dentro de impérios multinacionais pensavam que uma boa guerra
poderia promover a unidade. (Muitos conseguiram o que queriam, embora não
necessariamente da maneira que queriam: de qualquer forma, ninguém poderia
dizer que os resultados da guerra foram triviais.)
Foi, claro,
a invenção das armas atômicas que pôs fim a essa maneira de pensar: a
antecipação da Segunda Guerra Mundial tinha sido traumática, e a experiência
real, pior, mas o advento das armas nucleares pareceu marcar o fim da teoria de
que a guerra poderia trazer benefícios, mesmo incidentais.
As armas
nucleares não foram a primeira tecnologia que alguns acreditavam ser capaz de
exterminar a raça humana. Era gás venenoso, geralmente espalhado por um
bombardeiro tripulado, como nas primeiras páginas de " Os Últimos
e Primeiros Homens" (1930), de Stapledon . Mas com o
alvorecer da era atômica, algo significativo havia se movido, e pela primeira
vez a ideia de que uma guerra poderia significar o fim literal da humanidade
parecia amplamente plausível. Foi menos a devastação causada pelas primeiras
armas nucleares que fez as pessoas pensarem dessa forma, mas sim o fato de que
uma única arma poderia causar tanto dano. Logicamente, parecia que uma arma cem
ou mil vezes maior poderia exterminar o mundo inteiro, se fosse usada com raiva.
O mecanismo pelo qual tal guerra começaria era quase irrelevante: na cultura
popular, variava de cientistas loucos a generais loucos e simples acidentes.
Portanto,
talvez não seja surpreendente que, quase desde o início, os especialistas
tenham tentado nos vender a guerra nuclear como o próximo passo lógico na
Ucrânia. Vocês devem se lembrar que, na primavera, os ucranianos atacaram uma
base aérea na Rússia que abrigava algumas aeronaves com capacidade nuclear.
Instantaneamente, o pânico se instalou e, entre os sites e canais de vídeo que
examinei depois, vi "A GUERRA NUCLEAR AGORA É INEVITÁVEL" e
"CONTAGEM REGRESSIVA PARA A 3ª GUERRA MUNDIAL", além de manchetes
semelhantes. É verdade que isso se deve em parte aos cliques e visualizações na
internet no YouTube, e também é verdade que alguns especialistas têm a
reputação (justificada) de se empolgarem demais. Mas também havia alguns
padrões simbólicos mais profundos em jogo, aos quais voltarei em breve. Na
realidade, os russos não reagiram de fato — e certamente não contra alvos que
tivessem qualquer conexão com armas nucleares — e em poucas semanas o incidente
foi esquecido. De fato, uma das mensagens subliminares do recente encontro
entre Trump e Putin no Alasca foi que nenhum dos lados se importava o
suficiente com o resultado dos conflitos na Ucrânia para arriscar uma guerra
entre eles. No entanto, algo ainda está acontecendo abaixo da superfície.
Lembre-se
de que as armas nucleares logo encontraram seu lugar na cultura popular: muitas
vezes de maneiras surpreendentes. Por exemplo, havia (e agora há ainda mais)
uma subcultura popular dedicada à ideia de que houve guerras devastadoras
durante períodos esquecidos da história humana envolvendo armas nucleares, e
que memórias distantes delas são preservadas no Antigo Testamento da Bíblia e
em épicos indianos como o Mahabharata. Tais teorias então se
movem logicamente através da Atlântida, o Livro das Revelações, o Terceiro
Reich, o assassinato do presidente Kennedy e o fim do programa Apollo Moon. Às
vezes, por outro lado, visitantes extraterrestres são benevolentes e trazem alertas
sobre o perigo das armas nucleares, como em O Dia em que a Terra Parou (1951).
Alguns cliques no Google revelam uma subcultura florescente, mesmo hoje, de
OVNIs alertando a Terra sobre o perigo dessas armas ou, alternativamente,
tentando sequestrar sistemas de comando e controle para iniciar uma guerra
nuclear.
O que é
pertinente aqui é o elemento didático e escatológico presente em muitas dessas
histórias desde os tempos mais remotos. Diz-se que fogo descerá do céu e
destruirá os ímpios, assim como os inocentes serão salvos. As armas nucleares
foram mencionadas no vocabulário religioso desde o início, e não demorou muito
para que, a partir de 1945 — época em que as pessoas ainda iam à igreja —, a
ligação óbvia entre armas nucleares e a Ira de Deus começasse a ser
estabelecida. De fato, embora nossa era não seja mais biblicamente
alfabetizada, palavras como "apocalipse" ainda são usadas livremente
quando se discute armas nucleares. Talvez seja por isso que mesmo as
relativamente poucas e primitivas armas nucleares do pós-guerra ainda eram
consideradas capazes de cumprir seu papel bíblico de provocar o fim do mundo.
Intervenções
divinas na forma de fogo do céu eram, como no exemplo acima, geralmente uma
punição por comportamento pecaminoso. (Lembre-se, neste contexto, que o Livro
do Apocalipse começa com admoestações contra as igrejas da Ásia Menor por
apostasia.) Rapidamente, após 1945, começou a se espalhar a ideia de que armas
nucleares poderiam, na verdade, ser uma forma de retribuição pelos pecados da
humanidade. À margem da comunidade evangélica, essa ideia cresceu rapidamente e
ainda parece ser poderosa hoje. E desde os primórdios do movimento ecológico
até os dias atuais, também houve uma ala exterminacionista que acredita que a
administração da Terra pela humanidade tem sido tão deficiente que merecemos
perecer como espécie, e as armas nucleares são um mecanismo popular para
alcançar isso. A sensação de que a guerra poderia "estourar", que ela
poderia então "escalar" e finalmente "se tornar nuclear" é
muito poderosa na cultura popular, e evita discussões tediosas sobre quem começaria
tal guerra (já que guerras não têm agência, afinal), e por que alguém decidiria
usar armas nucleares, e também apresenta o fim do mundo como algo fora e além
do controle humano: natural o suficiente, dado que a inspiração para essa
maneira de pensar é religiosa. (O escritor de ficção científica Norman Spinrad
até escreveu uma história chamada The Big Flash , onde um
grupo de rock chamado Four Horsemen provoca um apocalipse nuclear).
A
atribuição descuidada de agência à guerra na cultura popular, a ideia de que as
guerras simplesmente "acontecem" e depois "escalam", de que
podem escapar ao controle e caminhar inexoravelmente para o uso de armas
nucleares, é uma das razões para a atual psicose da guerra. O problema é que
estudar doutrinas de liberação nuclear e cadeias de disparo (difícil, por
razões óbvias) não é nem de longe tão interessante ou empolgante, e as poucas
pessoas que conseguem falar com conhecimento sobre elas geralmente não o fazem.
Assim, como de costume, ideias ruins e sensacionalistas expulsam as boas.
Nesse
contexto de medo generalizado, reunir essas ideias e lembrar que
"guerra", nesse contexto, é simbólica, não literal, nos permite
enxergar mais claramente as motivações conscientes e inconscientes daqueles que
aprovam uma possível guerra, ou afirmam temê-la. Analisarei algumas das
principais tendências, aceitando que elas tendem a se confundir em alguns
casos. (Salvo indicação em contrário, doravante, "guerra" significa
uma guerra geral entre os EUA/Europa e a Rússia ou a China.)
O caso mais
fácil de entender é o daqueles que querem que os EUA e a OTAN "se
envolvam" nos combates na Ucrânia. Esse desejo de envolvimento é
essencialmente simbólico: tem sua origem última nas memórias populares da
história da conquista israelita da cidade de Jericó (Josué, VI, 1-27), onde os
israelitas marcharam ao redor da cidade e então derrubaram seus muros ao som de
trombetas. Esse tipo de expectativa apocalíptica quanto às consequências de
ações em grande parte simbólicas sobrevive até os tempos modernos: o culto
japonês Aum Shinrikyo acreditava que seu ataque com gás sarin ao metrô de
Tóquio em 1996, em uma estação frequentada por funcionários públicos, seria
suficiente para derrubar o governo. Por sua vez, a Al-Qaeda esperava decapitar
os sistemas político, militar e econômico dos EUA com um único golpe em 2001.
Portanto, o
envio de tropas ocidentais contra a Rússia seria essencialmente simbólico. O
mero fato do envolvimento ocidental decidiria tudo. Após talvez uma resistência
simbólica, as tropas russas, confrontadas com armas, liderança e treinamento
superiores, simplesmente fugiriam. O governo em Moscou cairia e a crise
terminaria. Por mais insano que pareça, isso é apenas uma versão turbinada da
ilusão de 2023 de que forças ucranianas equipadas e treinadas pelo Ocidente
poderiam facilmente derrotar os russos. Como veremos mais adiante, poucos dos
proponentes dessa ideia têm a mais remota noção das questões geográficas e
operacionais envolvidas, mas, como estamos lidando essencialmente com mágica,
esse não é o ponto.
Há também
aqueles que têm receios razoáveis sobre o que o envolvimento numa guerra com
a Rússia, mesmo que limitada, pode significar para as nossas sociedades. No
Ocidente, estamos a gerações de distância de sofrer as consequências práticas
da guerra, e as nossas sociedades estão muito mais divididas e muito mais
frágeis do que costumavam ser. A ideia de que as sociedades simplesmente
entrarão em colapso sob o stress da guerra é, até onde posso ver, exagerada,
visto que existe uma longa história de populações a cooperar para enfrentar
desastres. E também é verdade que tais receios também não são novos: eram muito
difundidos na década de 1930, quando o ataque aéreo alemão era a ameaça, e,
claro, durante a Guerra Fria, quando a ameaça era de armas nucleares. Mas o
receio é pelo menos racional.
Em algum
lugar no meio da discussão estão aqueles que já se cansaram, que estão cansados
da má gestão política e da corrupção, do declínio social e do aumento da
criminalidade, das promessas não cumpridas e dos serviços em constante
declínio, da sociedade se desintegrando, sem saída aparente. " Queimar
tudo" é um sentimento extremo, ainda que compreensível, e que se
encontra cada vez mais hoje em dia. Como Travis Bickle em Taxi
Driver, eles esperam que "uma chuva de verdade venha e lave toda
essa escória das ruas". Se nossas sociedades já não têm mais salvação,
como alguns pensam, então essa atitude é perfeitamente explicável.
E alguns
teriam um prazer secreto em imaginar as consequências de um ataque aéreo, como
George Bowling, de Orwell, fez há muito tempo em " Coming Up for
Air" (1939). Suponha que foguetes destruíssem Wall Street ou a
City de Londres? Suponha que entre as primeiras vítimas estivessem estrelas de
reality shows, influenciadores da internet, jogadores de futebol superpagos,
executivos de publicidade, vendedores de óleo de cobra com inteligência
artificial, gestores de Private Equity... e assim por diante. Talvez um certo
número de gestores de fundos de hedge e negociadores de commodities mortos
seja, como diria Madeline Albright, um preço que valha a pena pagar para nos
livrarmos do sistema atual. Bem, é um ponto de vista, mas pressupõe algo melhor
para substituir o que temos, e esse não será automaticamente o caso. Em 1939,
George Bowling (falando em nome do autor) previu sombriamente que, após a
guerra inevitável,
...haverá
muita louça quebrada e casinhas estilhaçadas como caixotes de embalagem... Tudo
vai acontecer. Todas as coisas que você tem na cabeça, as coisas que te
aterrorizam, as coisas que você diz a si mesmo que são apenas um pesadelo ou
que só acontecem em países estrangeiros. As bombas, as filas de comida, os
cassetetes de borracha, o arame farpado, as camisas coloridas, os slogans, os
rostos enormes, as metralhadoras esguichando pelas janelas dos quartos.
Sobrepondo-se
a esses sentimentos, há um sentimento de raiva muito justificável contra as
figuras políticas que nos levaram a essa confusão e aqueles que as encorajaram.
Por enquanto, é uma visão minoritária, mas, à medida que a situação se
deteriora, mais e mais pessoas passarão a ver uma espécie de justiça cármica na
queda de uma classe política inteira, ou mesmo em sua aniquilação física em uma
guerra generalizada. Quer você adote a visão sensata de estupidez, arrogância,
direito, hostilidade desnecessária e senso messiânico de missão, ou acredite em
alguma conspiração secreta operando de um bunker subterrâneo sob o QG da OTAN,
elaborando planos de guerra desconhecidos até mesmo para os líderes nacionais,
não creio que alguém conteste que a Ucrânia representa um fracasso em política
externa de um tipo e grau nunca vistos na história moderna, e que os
responsáveis devem pagar por isso. Foguetes no Pentágono e no número 10 da
Downing Street podem ser uma maneira de isso acontecer, mas, mesmo assim, você
tem que estar preparado para aceitar (provavelmente) meio milhão de mortos no
conflito também, como o preço de expulsar uma classe política e substituí-la
por... o quê, exatamente?
É essa
tendência ao niilismo — um produto compreensível de uma era niilista e da
ausência de qualquer alternativa óbvia ao sistema atual — que é mais
preocupante nessas imaginações fervorosas sobre a guerra. Nossa classe política
alienou tanto seus súditos que, para alguns, quase qualquer meio de removê-los
é, pelo menos teoricamente, cogitado como uma possibilidade. Mas se pensarmos
em algumas das derrotas da história moderna — digamos, a Guerra da Crimeia ou
as derrotas da França em 1870 e 1940 — cada uma foi seguida por um renascimento
nacional ou uma série de renascimentos. Mas isso exigiu uma ideologia política
amplamente aceita e a capacidade e a vontade de aprender com os erros e
reconstruir. Não vejo nada disso hoje. Mesmo que o resultado da guerra se
limite a uma derrota política ocidental esmagadora, sem o envolvimento direto
de forças ocidentais, a carnificina política entre os líderes ocidentais será
impressionante. Se a Rússia realmente usar a força contra países ou interesses
ocidentais, as potenciais consequências políticas são imprevisíveis em
detalhes, mas potencialmente extremamente sombrias. Para mim, essa é uma das
consequências potenciais mais preocupantes e menos discutidas de todo esse
assunto horrível.
Mas para
algumas pessoas, a derrota, seja limitada à Ucrânia ou envolvendo de fato uma
"guerra" entre o Ocidente e a Rússia, é algo realmente desejado, em
um grau quase patológico, e quase como uma espécie de punição merecida. Grande
parte desse sentimento parece vir dos Estados Unidos, embora tenha se espalhado
mais amplamente desde então. Desde a Guerra do Vietnã, e agora em uma terceira
geração, há grupos nos EUA que detestam seu próprio país, o veem como a origem
de todos os males do mundo e antecipam alegremente sua derrota militar e
humilhação. Na Rússia, eles encontraram pela primeira vez uma nação capaz de
fazer isso (a China é uma questão um pouco diferente). E, claro, há um grande
número de pessoas ao redor do mundo que gostariam de ver os EUA um ou dois
degraus abaixo. Se vale a pena arriscar uma grande guerra para conseguir isso,
com resultados completamente imprevisíveis, é uma questão real.
Mais
estranho ainda, há muitos nos EUA para quem a derrota e a ruína da Europa são
bem-vindas como resultado de uma guerra com a Rússia. Parte disso, é claro, é o
desejo de vingança baseado em um sentimento de inferioridade histórica e inveja
— a história, a cultura, a comida, os monumentos —, mas há também as décadas de
insistência de que os EUA estavam de alguma forma "protegendo" a
Europa e que a Europa não era grata, bem como aquela arrogância e desdém nada
atraentes que americanos de todas as cores políticas demonstram por nações
menores e menos poderosas quando a máscara cai. A alegria indecente de alguns
comentaristas com a suposta ruína iminente da Europa é desagradável de se ver.
(Por mais que valha a pena, acho que a Europa resistirá à tempestade que se
aproxima melhor do que os EUA, mas essa é outra história.)
E,
finalmente, sob o estresse da guerra, o ódio quase patológico à Grã-Bretanha,
presente em muitos pontos do espectro político dos EUA, tornou-se visível.
Grande parte dele está relacionado ao fato de a Grã-Bretanha ter sido uma
possessão colonial, e, de fato, nunca encontrei um país em qualquer lugar do
mundo tão incapaz de lidar com seu passado colonial quanto os Estados Unidos.
De fato, os EUA são muito mais obcecados com sua própria imagem do Império
Britânico, repleta de mitos, interpretações equivocadas da história e alegações
de seu contínuo poder obscuro, do que a própria Grã-Bretanha, ou jamais foi.
Portanto, não é surpreendente que, nas margens dos comentários sobre a Ucrânia,
encontremos os britânicos sendo culpados por tudo, incluindo o trabalho secreto
nos bastidores por décadas ou gerações para derrubar a Rússia e salvaguardar
seu Império, ou algo assim. (Stalin sofria de uma forma particularmente
virulenta dessa paranoia, que o fazia subestimar a ameaça nazista.) Ao folhear
as seções de comentários de alguns blogs e sites da internet, deparamo-nos com
ideias sobre a Grã-Bretanha e seu papel no mundo que parecem ser produto de
mentes positivamente desordenadas. (Acho que ri alto da sugestão de que a
guerra foi provocada pela "Cidade Zionazista de Londres". Mas talvez
não seja tão engraçado assim.)
Portanto,
creio que está claro que a psicose de guerra que estou discutindo não é uma
coisa só, mas uma mistura de várias, e é um produto de esperanças, medos e
fantasias de diferentes grupos ao longo de todo o espectro ideológico. A
"guerra", que é variadamente esperada, temida e simplesmente assumida
como inevitável, é essencialmente um evento simbólico, em vez de real. Não é
realmente possível discutir seriamente os medos de uma guerra nuclear
"acidental" (embora eu tenha feito uma tentativa
há vários anos ), exceto dizer que eles são provavelmente muito
exagerados. Mas é possível fazer uma rápida verificação da realidade sobre as
fantasias do Ocidente se envolvendo em uma "guerra" com a Rússia e
demonstrar que elas são de fato fantasias.
Como
sugeri, ninguém no Ocidente parece ter conseguido compreender a realidade do
que uma "guerra" realmente seria. Vários líderes europeus parecem
confundi-la com a ideia de mobilizar alguma "força de manutenção da
paz" ou de uma "mobilização dissuasiva" após um cessar-fogo.
(Gostaria apenas de observar que mobilizar uma força militar sem uma ideia
consensual sobre o que se quer que ela faça é inevitavelmente uma receita para
o desastre.) A ideia de que alvos na Europa e nos EUA seriam rapidamente
destruídos por mísseis altamente precisos e potentes lançados de navios,
aeronaves e submarinos, de que o Ocidente tem pouca defesa contra tais sistemas
e uma capacidade muito limitada de responder da mesma forma, parece ter
ignorado completamente os aparatos decisórios das capitais ocidentais. Mas é
assim que a guerra seria e, por razões geográficas, o Ocidente
acharia muito difícil e muito custoso conduzir ataques à Rússia que fossem mais
do que ataques de propaganda e incômodos. (Mas uma geração inteira de políticos
ocidentais cresceu com a ideia de que o que importa é a imagem, não a
realidade.) Portanto, qualquer "guerra" lançada contra a Rússia teria
que ter um escopo muito limitado.
E isso
representa um problema imediato. A primeira coisa necessária para iniciar uma
guerra não são tropas e equipamentos, mas um objetivo. Esse objetivo, como já
discutimos, é político e normalmente é descrito em termos de um "estado
final" relacionado ao mundo real. Portanto, "enfrentar a Rússia"
ou "demonstrar determinação", ou outros exemplos de palavras
confusas, não são objetivos: esses objetivos precisam ser tangíveis e
mensuráveis. O único objetivo que vejo que faz algum sentido seria provocar a
queda do atual governo na Rússia e sua substituição por um que quisesse ser
amigo de seus agressores. Sim, eu sei, não parece muito lógico, mas esse é
praticamente o único estado final político que faria algum sentido.
Então, como
fazemos isso? Por razões práticas, ataques diretos à Rússia estão descartados,
então a ideia de tropas alemãs novamente à vista do Kremlin deve permanecer no
reino da fantasia. A única outra opção concebível seria infligir uma derrota
tão devastadora à Rússia no atual conflito na Ucrânia que o governo seria
derrubado e um pró-ocidental seria instalado, preparado para fazer o que o
Ocidente quisesse. Vale a pena mencionar que tal resultado final depende de
toda uma série de eventos políticos subsequentes sobre os quais não temos
controle, mas uma derrota tão devastadora é provavelmente a única maneira pela
qual tal sequência poderia sequer ser iniciada. Então, como fazemos isso ?
A suposição
seria que a introdução de forças ocidentais reverteria o curso da guerra de
forma rápida e decisiva, uma vez que os estoques ocidentais de munição e
equipamento são limitados, e qualquer força desse tipo poderia ser incapaz de
se envolver em combate de alta intensidade por mais de alguns dias. O que seria
necessário? Bem, em 2022, o Exército Ucraniano tinha cerca de vinte brigadas
operacionais em campo, bem treinadas, bem equipadas e com anos de experiência
em combate. Essa força foi amplamente destruída por um Exército Russo
inexperiente e em menor número nos primeiros meses da guerra, e teve que ser
reconstruída com treinamento e equipamento ocidentais várias vezes. Em nenhum
momento durante a guerra os ucranianos tiveram vantagem, e o único terreno que
conquistaram foi quando os russos cederam territórios que, naquele momento, não
tinham forças disponíveis para controlar. Desde então, seus ganhos se limitaram
aos contra-ataques de pequena escala que acontecem em qualquer guerra, e a
maioria desses ganhos foi rapidamente revertida.
Não podemos
dizer precisamente com quais forças o Ocidente poderia contribuir para uma
"guerra" com a Rússia. Mas uma força de quatro a cinco Brigadas
aparentemente foi proposta para algum tipo de "manutenção da paz" ou
função de "dissuasão", e podemos presumir que esse número reflete o
aconselhamento militar sobre o que seria realmente possível implantar. É
provável que sejam Brigadas Mecanizadas, ou seja, com um número relativamente
pequeno de tanques e quantidades modestas de artilharia, e que sejam estruturadas
e treinadas de acordo com as premissas e modelos anteriores a 2022. Elas não
terão unidades de drones integradas (uma vez que estas não existem), nem
doutrina e treinamento para lutar em um ambiente onde os drones dominam. Esta
será uma Força multinacional, usando equipamentos diferentes e (se a
experiência recente servir de guia) rádios e logística incompatíveis. Exigirá a
criação de novos QGs nos níveis operacional e tático, e presumivelmente algum
tipo de comando conjunto com Kiev. Terá que operar sob condições de
superioridade aérea russa, para a qual não existe atualmente nenhuma doutrina.
Aeronaves ocidentais poderiam tentar contestar essa superioridade aérea, mas os
russos dependem principalmente de mísseis para alcançá-la, e é difícil imaginar
como aeronaves ocidentais poderiam operar por qualquer período de tempo sobre a
Ucrânia sem sofrer enormes perdas.
Há muito
mais a dizer, mas creio que o exposto demonstra que a "guerra" contra
a Rússia é uma fantasia tão grande quanto qualquer outro exemplo de loucura
simbólica descrito acima. A dificuldade, porém; e talvez o perigo, advém do
fato de que os governos têm, de fato, o poder de lançar operações desse tipo,
ou pelo menos tentar, e podem se persuadir, por desespero, de que podem ser
bem-sucedidos. Macron tem demonstrado sinais perturbadores desse tipo de
pensamento nas últimas semanas, e o governo francês aparentemente está agora
planejando hospitais para receber centenas de milhares de vítimas de uma futura
guerra.
Como
conclusão, deveria ser óbvio que falar de "guerra" com a China
representa uma espécie de paródia simbólica da guerra com a Rússia, já uma
espécie de paródia. Francamente, o Ocidente não tem motivo para a guerra,
nenhum objetivo racional concebível e nenhuma chance de vencer um confronto que
realmente signifique alguma coisa. É, suponho, quase imaginável que a China
tente invadir Taiwan e os EUA sintam a necessidade de responder, mas não há
nada de "inevitável" em um conflito. Não somos vítimas indefesas da
história, e guerras não "acontecem" simplesmente.
Até certo
ponto, é claro, e como frequentemente na história, essas esperanças e medos são
externalizações simbólicas da sensação de crise e desintegração de nossas
próprias sociedades. Desejamos a destruição daquilo que odiamos e tememos, e
tememos a destruição daquilo a que estamos apegados. Por essa razão, estamos
entrando em um período muito perigoso, em que pessoas que deveriam saber mais
podem começar a misturar fantasia com realidade e agir como se pudessem ter o
que desejam, ou o que temem, apenas pensando nisso. Talvez o que precisamos não
seja de mais homens uniformizados, mas de mais homens de jaleco br
https://youtu.be/_xRCbdFrSSc
They're
Coming to Take Me Away, Ha-Haaa!
They're Coming to Take Me Away, Ha-Haaa! · Napoleon XIV · Jerry Samuels They're Coming to Take Me Away, Ha-Haaa! ℗ 1966 Wise Brothers Music
Entrevistha a Michael Hudson - O arco de Roma e o reflexo nos EUA
Michael Hudson [*]
entrevistado por Mitch Jeserich
MITCH
JESERICH: Bom dia e bem-vindos ao Letters and Politics. Sou Mitch Jeserich. Hoje voltamos ao
tema do mundo antigo para uma conversa sobre como as forças económicas moldaram
as sociedades antigas e como podem ter provocado o seu colapso. O meu convidado
para esta conversa é o economista Michael Hudson. Michael Hudson é o autor do
livro sobre o qual vamos conversar, intitulado The Collapse of
Antiquity (O Colapso da Antiguidade). Michael Hudson é presidente do
Instituto para o Estudo de Tendências Económicas de Longo Prazo e professor de
investigação em economia na Universidade do Missouri, em Kansas City. Michael
Hudson, é um grande prazer recebê-lo neste programa.
MICHAEL
HUDSON: Bem, obrigado pelo convite.
MITCH
JESERICH: A dívida desempenha um papel fundamental na história
que conta e na forma como as forças económicas moldam as sociedades antigas,
especialmente na Grécia e Roma antigas. Para começarmos, pode falar-me sobre o
que é importante compreender sobre, suponho, a natureza da dívida no mundo
antigo?
MICHAEL
HUDSON: Bem, a natureza da dívida é realmente o que diferencia
a civilização ocidental de tudo o que a precedeu.
As
civilizações antigas eram muito estáveis desde a Idade do Bronze. Havia reinos
reais, havia um papel geral do que se chamava de realeza divina. Por outras
palavras, eram reis que governavam em conjunto com os templos, e o seu papel
era basicamente impedir o desenvolvimento de uma oligarquia. Eles queriam
manter o equilíbrio. Queriam manter os cidadãos com terras suficientes para
poderem lutar no exército e prestar serviços de corveia (corvée) em
infraestruturas básicas, construindo muros, cavando canais, etc.
Todos os
governantes da dinastia babilónica e da dinastia suméria antes dos faraós
egípcios e outros reinos do Oriente Próximo começaram os seus reinados com uma
folha em branco. A folha em branco cancelava as dívidas pendentes. A maioria
era devida ao próprio governo e aos palácios e templos. E libertaram os servos
que tinham prometido o seu trabalho aos credores e devolveram as terras que
haviam sido confiscadas. Mantinham assim um equilíbrio bastante estável, o
papel dos reis era proporcionar ordem e preservar o equilíbrio económico.
Isso é o
que não existia na antiguidade clássica. A Idade do Bronze foi muito estável,
mas chegou ao fim em todo o Mediterrâneo Oriental por volta de 1200 a.C.,
quando houve um tempo muito mau, houve mudanças climáticas e isso colocou as
populações em movimento. As populações da Grécia e do Mediterrâneo Oriental
despencaram. A terra ficou despovoada. A escrita linear que os gregos micénicos
haviam desenvolvido para a contabilidade do palácio desapareceu, assim como o
poder do palácio.
MITCH
JESERICH: Era conhecida como idade das trevas.
MICHAEL
HUDSON: Sim, uma idade das trevas, de cerca de 1200 a.C. a
cerca de 750 a.C.[NR] Então,
surgiram estados mafiosos locais. Os historiadores desse período dizem que não
havia regras. Assim, os administradores locais dos palácios da Grécia
simplesmente disseram: bem, agora estou no comando. Os senhores da
guerra assumiram o poder.
Mais a
ocidente, na Itália e em todo o resto da Europa Ocidental, havia chefias
básicas. Essas chefias não cobravam juros. Não tinham uma moeda única para uso
geral. Não faziam parte de toda a ascensão económica do Oriente Próximo, que
deu origem ao dinheiro, aos pesos e medidas e à cobrança de juros. Por volta de
meados do século VIII a.C., 750 a.C., comerciantes da Síria e da Fenícia
começaram a se deslocar para o oeste a fim de comerciar. Eles estabeleceram
templos locais como câmaras de comércio para negociar com as cidades-estado
gregas e italianas, Roma e os estados vizinhos. E trouxeram essas práticas de
cobrança de juros para os governantes locais.
Vou começar
pela Grécia, porque é aí que começa a maior parte do desenvolvimento histórico
do Ocidente. Havia estados autocráticos locais, semelhantes a máfias, a
desenvolverem-se em todas as principais cidades-estado. O resultado foi que os
próprios membros da aristocracia — não a aristocracia mais alta, mas, por
exemplo, uma espécie de primos em segundo grau distantes — disseram: bem, isso
é realmente injusto. Temos toda a riqueza concentrada nas mãos desses chefes
que usaram essa ideia de emprestar dinheiro, cobrar juros e dizer: se
não pode pagar, então tem de trabalhar para nós e tem de nos dar as suas
terras.
Havia então
uma autocracia totalmente concentrada em Atenas, Corinto e Esparta. E cada uma
dessas cidades-estado teve uma revolução. Em Esparta, eles foram mais longe.
Houve tanta repulsa que aboliram o dinheiro por completo. Eles tinham uma
espécie de estado pré-soviético que apenas distribuía: é assim que você
vai viver a sua vida e treinar para o exército. A cidade-estado mais avançada
era Corinto. Eles tiveram uma revolução. Derrubaram, não vou dizer a oligarquia
porque não era uma oligarquia. eram apenas os chefes no topo, a aristocracia.
Eles
disseram: bem, ou cancelamos as dívidas e redistribuímos as terras... porque
sem dar terras à população, eles não podem servir no exército. Não podem
prestar serviços públicos. E estamos a dar-lhes terras para que possam fazer o
que um cidadão deve fazer, lutar pelo país e apoiar-nos. E se não gostarem
disso, podem ir embora e vamos exilá-los. Isso foi no final do século VII, na
época de Atenas. Atenas foi realmente a última cidade a começar a derrubar a
oligarquia. Foi quando nomearam Sólon como arconte, como todos sabem, por volta
de 490 a.C. Ele não redistribuiu as terras, mas cancelou as dívidas.
MITCH
JESERICH: Sólon foi chamado porque havia uma grande
disparidade/desigualdade em Atenas, e isso estava a causar conflitos e muitos
problemas. Eles chamaram Sólon, que é comumente mencionado como o legislador,
para criar um novo sentido de constituição que, esperavam, traria a paz de
volta. Acho que ele até prometeu que faria a redistribuição de terras, mas não
o fez. No entanto, cancelou o resto.
MICHAEL
HUDSON: Ele era muito impopular. E a população como um todo
estava ressentida pelo facto de ele não ter redistribuído as terras, como
fizeram os coríntios e os espartanos, mas apenas cancelado as dívidas. Isso por
si só ainda não era uma constituição, mas abriu caminho para dar início a um
século inteiro de reformas que se transformaram em democracia. As reformas
foram basicamente lideradas por Corinto. Todos esses novos
governantes/reformadores, que derrubaram as ditaduras, eram chamados de
tiranos.
Tirano era
uma palavra estrangeira e significava pessoa no comando. Mais tarde, os
propagandistas deram-lhe um significado mau, à medida que a oligarquia se
desenvolvia. Porque, em cada uma dessas áreas onde houve uma derrubada da
realeza ou basicamente dos governantes locais, não houve uma mudança nas leis e
na constituição — nada como no Oriente Próximo, onde havia um governante
central com poderes para cancelar dívidas, redistribuir terras e libertar as
pessoas escravizadas por dívidas. Mas o que os tiranos fizeram foi abrir
caminho para a democracia usando gastos públicos e projetos de investimento
público.
Sólon foi
seguido por tiranos, por Pleisistratus, que desenvolveu os gastos públicos e
começou a criar uma prosperidade geral. E, no final do século, você teve a
verdadeira Constituição ateniense escrita por outro ex-aristocrata ou membro da
família aristocrática, Pleisthenes, que realmente redesenhou o sistema
eleitoral de Atenas, tentando ter democracia.
MITCH
JESERICH: Ele desfez a classe aristocrática, certo? Na estrutura
de poder.
MICHAEL
HUDSON: Ele tentou fundir todas as classes e, de certa forma,
fundir as pessoas ricas com as classes menos abastadas. Alguns séculos mais
tarde, quando Aristóteles escreveu o seu estudo sobre as constituições das
cidades-estado gregas, ele disse que elas se autodenominavam democracias, mas
na verdade eram oligarquias, porque eram democracias para votação, mas os votos
eram todos controlados pelas pessoas ricas, um pouco como os Estados Unidos
hoje.
Algo
semelhante aconteceu em Roma. Roma não teve uma revolução para derrubar os
oligarcas existentes. Roma começou como uma área muito pouco povoada perto do
rio Tibre. E o Tibre estava cheio de mosquitos, como os rios tendem a ficar no
verão na Itália. Portanto, não havia muita gente lá. O problema dos líderes
locais de Roma era: como vamos conseguir cidadãos? Como vamos aumentar a
população para sermos uma potência e não sermos conquistados pelos etruscos ou
por outros?
De acordo
com os historiadores romanos, os reis fizeram uma oferta. Se vocês, outros
italianos, querem fugir das vossas pequenas cidades-estado despóticas e vir
para cá porque são escravizados e querem fugir da servidão, ou querem ter
terras próprias que perderam para os credores, venham para cá. Nós vos daremos
as vossas próprias terras. Protegeremos as vossas terras. Vocês servirão no
exército para nós. Serão cidadãos públicos, mas teremos uma democracia e não
permitiremos que uma classe dominante se desenvolva em Roma como nos lugares de
onde estão a fugir. E assim conseguiram atrair cada vez mais pessoas. No final
do século VI, havia até aristocratas de outras cidades que lutaram pelo poder e
perderam, e trouxeram as suas fortunas para Roma.
Depois de
Roma ter tido sete ou mais reis, todos os quais protegeram repetidamente os
proprietários de terras, os cidadãos com as suas próprias terras impediram que
os cidadãos as perdessem e impediram que se desenvolvesse o tipo de polarização
que se desenvolveu mais tarde, os aristocratas uniram-se e derrubaram os reis.
E disseram que os reis queriam ser tiranos. Fizeram os habituais ataques
pessoais aos reis e a aristocracia assumiu o poder.
MITCH
JESERICH: Gostaria de voltar a Aristóteles enquanto fala sobre
isso, porque ele apresenta uma fórmula muito interessante que me lembro de ter
estudado há muitos anos. E essa é a natureza do poder entre a monarquia, a
aristocracia e a democracia.
Dentro
desse ciclo, vamos começar com a monarquia. A monarquia vai decair para a
tirania; então isso vai ser tão desfavorável que será derrubada pela
aristocracia, palavra que, na minha opinião, significa o melhor dos melhores.
Finalmente, isso decaia e se torne uma oligarquia. E então as pessoas ficam
fartas disso e derrubam-na. E então vem a democracia, agora o poder do povo.
Mas isso também decairá, acho que a palavra é oclocracia,
uma espécie de governo da multidão. E então isso se torna intolerável, e as
pessoas desejam apenas que a normalidade volte à vida. E assim elas estão
prontas para aceitar mais uma vez o retorno de um monarca forte para trazer
ordem.
MICHAEL
HUDSON: Foi basicamente isso que ele disse. Lembre-se de que ele estava a falar
para uma classe — basicamente, para a própria classe oligárquica, ou para os
líderes de sua época. Não é que os governantes tenham se tornado autocráticos.
Na verdade, os governantes foram derrubados pela oligarquia. E o que
Aristóteles disse foi: uma vez que os governantes são derrubados e há
uma revolução popular, como aconteceu em todas as cidades gregas, essa
revolução leva à prosperidade. E na prosperidade, famílias ricas se desenvolvem
e, dentro da democracia, uma oligarquia se desenvolve e assim uma oligarquia se
desenvolve até que finalmente tenha de haver uma revolução e isso leva à
criação de uma nova autoridade central. Eles chamavam isso de tirania ou monarquia,
mas na verdade é uma revolução antioligárquica.
Acho que a
melhor maneira de pensar sobre isso é que as civilizações antigas, antes do
Ocidente, protegiam os devedores a fim de manter o equilíbrio e preservar a sua
liberdade e a posse da terra, e para impedir a oligarquia. A antiguidade
clássica tinha leis favoráveis aos credores desde o início. Apesar de haver
democracia política (todos tinham direito a voto), as leis favoreciam os
credores e uma dívida era uma dívida. Tinha de ser paga. Não havia cancelamento
e os devedores acabavam por se tornar servos dos seus credores e perdiam as
suas terras. E quando Roma entrou em guerra e começou a conquistar mais terras,
entregou-as à oligarquia, não aos veteranos.
Portanto,
houve um sistema de desenvolvimento completamente diferente. E a maioria das
pessoas não pensa na antiguidade dessa forma, mas pode-se pensar nela como uma
oligarquia versus uma espécie de, não diria realeza, mas monarcas que agiam
para alcançar o que deveria ser o objetivo da democracia económica. A monarquia
ou realeza de que Aristóteles falava, historicamente, estava na verdade a
proteger a população em geral e as suas propriedades e a sua liberdade da
escravidão de uma oligarquia em desenvolvimento. Mas não havia proteção
semelhante no caso da antiguidade clássica. Em Roma, eles manipularam a votação
de modo a que fosse favorável às classes ricas. E se fosse um membro rico da
classe alta, o seu voto valia 10 ou mais, muitas vezes mais do que o voto das
classes menos abastadas. Assim, basicamente, todas as eleições eram decididas
pelos votos das classes mais ricas, e todos podiam votar, mas alguns votos eram
mais importantes do que outros.
MITCH
JESERICH: Esta é a criação do Senado. E o Senado, acho que a
palavra significa até mesmo velhos, velhos ricos. Deixe-me perguntar-lhe:
gosto do seu argumento quando se trata do fim dos reis em Roma. A
história tradicional é conhecida como o estupro de Lucrecia. E há um rei,
Tarquínio, que é derrubado depois de estuprar Lucrecia porque as pessoas ficam
indignadas com isso. Mas você aborda essa história como sendo o fim da
monarquia.
MICHAEL
HUDSON: Bem, isso virou a história do avesso. A realidade, que
sabemos por todas as queixas do povo romano, é que os aristocratas é que
violavam. Todas as violações, toda a violência e toda a força eram exercidas
pelos aristocratas e oligarcas, pelos ricos, pelos credores contra os
devedores. Eles fizeram uma espécie de ataque pessoal a Tarquínio, cuja ofensa
foi realmente tentar impedir os oligarcas de aumentar a sua capacidade de
colocar a população em servidão. Portanto, esta violação de Lucrécia foi concebida
para retratar os reis como opressores e não como protetores da ordem económica,
contra a oligarquia.
Tal como
hoje, temos o presidente Biden a dizer que os Estados Unidos apoiam a
democracia, como a que temos na Ucrânia e em Israel, contra a autarquia, que
temos na China e nos países que estão a alcançar um rápido crescimento e
prosperidade. Temos uma espécie de vocabulário orwelliano e uma visão
orwelliana da história. Portanto, houve toda uma reavaliação da história
romana. Percebe-se até que ponto a história foi escrita pela aristocracia e
tornou-se a oligarquia que derrubou os reis do seu próprio ponto de vista. E é
em grande parte injurioso: todo o vocabulário injurioso e a mitologia
são injuriosos, representando os reis como sendo violentos.
Enquanto
toda a história de Roma, século após século, foi uma guerra social em que a
oligarquia usava assassinatos políticos contra qualquer um que tentasse
promover um membro da classe dominante ou do senado ou patrícios que
promovessem a proteção dos devedores ou realmente aplicassem as leis que
impediam que uma dívida crescesse além de um valor específico ou cobrasse juros
ilegalmente altos. Qualquer pessoa que tentasse proteger os devedores era
assassinada sistematicamente, desde o início da República Romana até ao
assassinato de César. Havia assassinatos políticos e violência. Era como se
eles tivessem a sua própria CIA para um estado policial.
MITCH
JESERICH: Não foi Brutus quem matou César — você sabe, o
famoso Et tu Brutus — ele não era um cobrador de dívidas?
MICHAEL
HUDSON: Bem, todos eles fizeram isso juntos. Todos conspiraram
juntos. Cícero, que era uma espécie de porta-voz eloquente da classe rica,
escreveu uma carta dizendo: «Oh, sinto muito por não ter podido estar lá
para cravar a minha própria faca». Houve um medo quando Júlio César assumiu o
poder. Já havia ocorrido outra revolta de devedores liderada por Catilina. Os
devedores incluíam não apenas os pobres, mas muitos aristocratas que se haviam
endividado e gasto sua herança e corriam o risco de perder seus próprios bens e
poder.
Essa foi a
luta que Catilina organizou. Isso é apresentado aos estudantes de Roma como a
conspiração de Catilina, mas não foi uma conspiração. Obviamente, eles
disseram: «Temos que organizar a revolta em segredo para que todos possamos nos
revoltar juntos». E havia um exército inteiro e houve lutas durante décadas que
continuaram depois disso. César fora um apoiante silencioso, uma espécie de
apoiante discreto de Catilina. E o Senado ficou preocupado quando César voltou
para Roma. Podemos pensar nele como um reformador social-democrata liberal. Ele
estava a tentar restabelecer o equilíbrio económico de uma Roma muito
desequilibrada, que se tinha tornado uma nova aristocracia romana dentro da
oligarquia, a classe dominante romana.
E eles
tinham muito medo de que ele fizesse o que Catilina fez, ou seja, cancelasse as
dívidas. De facto, César promulgou uma lei de falências, mas a falência era
principalmente para indivíduos ricos que realmente podiam pagar as dívidas, mas
receberam um prazo longo para quitá-las e condições favoráveis de reembolso.
Ele não procedeu realmente a um cancelamento geral das dívidas populares.
Mas todos
estavam preocupados com a possibilidade de que ele fizesse isso, porque essa
era toda a história de cinco séculos da República Romana: uma longa luta
da população em geral para se libertar da escravidão e do endividamento. Era
uma luta para tentar alcançar o que realmente seria a democracia, uma luta
contra a oligarquia e pela democracia. Tornou-se evidente que apenas um
governante central forte, como César, poderia fazer o que os governantes da
Idade do Bronze tinham feito. E era necessário um governo forte o suficiente
para impedir que uma oligarquia se desenvolvesse, endividasse a população em
geral e monopolizasse suas terras.
MITCH
JESERICH: Este é o programa Letters and Politics. Estamos
conversando com Michael Hudson. Michael Hudson é presidente do Instituto para o
Estudo de Tendências Económicas de Longo Prazo e professor emérito de Economia
na Universidade do Missouri, em Kansas City. Ele é autor de muitos livros.
Estamos a conversar sobre um deles. Chama-se The Collapse of Antiquity (O Colapso da Antiguidade).
Na nossa
conversa, estou ciente de que pode parecer que estamos a elogiar a monarquia ou
a realeza. E tivemos o que chamamos de protesto No Kings Day (Dia
Sem Reis) aqui nos Estados Unidos há algumas semanas, onde milhares de pessoas
em todo o país protestaram contra a ideia de ter um rei e, na verdade, contra
Donald Trump. Acredito que é possível ter um rei benevolente. Acredito que é
possível ter (daí o termo) um ditador benevolente, alguém que realmente está a
tentar servir o povo. Mas, na maioria das vezes, não é isso que acabamos por
ter, não é?
MICHAEL
HUDSON: Tem razão. A realeza no Ocidente não é o que era na
Idade do Bronze. A realeza [ocidental] é muito mais autocrática. A realeza
[ocidental] teve origem nos senhores da guerra que conquistaram as terras, e
eles eram apoiados pela Igreja Católica, que basicamente ia até os senhores da
guerra normandos e dizia: bem, se conquistarem a Inglaterra e jurarem
lealdade ao Papa e a Roma — se concordarem em deixar Roma nomear os vossos
bispos responsáveis por todas as vossas finanças, para que possam enviar as
finanças do vosso reino para Roma — se pagarem tributo a Roma — então,
apoiaremos o vosso poder autocrático contra a reforma parlamentar.E assim,
quando houve uma tentativa, por exemplo, na Inglaterra em 1215, de criar
a Magna
Carta, que permitiria ao parlamento impedir os reis de contrair dívidas
externas para pagar as guerras que os romanos apoiavam — em vez de excomungar
os praticantes da usura, o papa excomungou os signatários da Magna Carta por se
oporem à usura.
Eles
disseram: somos a favor do direito divino dos reis, sem controlo parlamentar,
desde que sejam leais a Roma, porque isto é feudalismo e há servos e eles têm
de fazer o que quisermos. Tudo começou uma geração antes de Guilherme, o
Conquistador, em 1066. Começou com Roberto Guiscard, no sul da Itália e na
Sicília, que fez um acordo com o papa: bem, se conquistares a Sicília,
reconheceremos-te como rei, desde que nos pagues tributo, jures lealdade a Roma
e nos deixes governar o teu país. E dar-te-emos poder total sobre qualquer
reforma, desde que sirvas aos nossos interesses. Esse é o tipo de monarquia que
existia no Ocidente. Portanto, a monarquia aqui tem um significado
compreensivelmente negativo, porque no Ocidente, as monarquias tornaram-se o
que sabemos que os reis fazem. É hereditária, não é democrática.
Os reis não
tinham nenhuma obrigação de promover o bem-estar de suas terras. Eles eram
egoístas ou serviam inicialmente à Igreja Católica até cerca do século XIV,
quando, após o fim das Cruzadas, começaram a se endividar para travar suas
próprias guerras, não pelo Vaticano e por Roma, mas por si mesmos. De repente,
acabaram por passar dois séculos a agir como agentes de cobrança para a classe
bancária internacional que se desenvolveu entre os séculos XIV, XV, XVI e XVII.
A classe bancária tornou-se a organização, os organizadores políticos da
Europa, em substituição da Igreja.
Assim,
basicamente por toda a Europa, os reis agiram com poderes para se sobrepor aos
seus parlamentos e consignar todas as suas receitas fiscais para pagar à classe
credora para financiar as suas guerras uns contra os outros.
Obviamente,
esse não é o mesmo tipo de realeza que existia na antiguidade, na Idade do
Bronze. Na Idade do Bronze, os reis cancelavam as dívidas. Na civilização
ocidental, eles se endividavam e usavam o seu poder de forma autocrática para
impor impostos, sem qualquer preocupação em promover o bem-estar público, mas
apenas em promover a si mesmos, às suas famílias e à nobreza que herdara as
terras dos antepassados senhores da guerra que conquistaram as suas terras.
Portanto, a realeza no Ocidente era completamente diferente.
Como
mencionei, tenho uma história em sete volumes sobre a dívida ao longo dos
tempos. E o primeiro volume, ... and Forgive Them Their Debts (... e perdoai-lhes
as suas dívidas), era todo sobre as origens das práticas económicas no
antigo Oriente Próximo, juros e dinheiro e tudo isso, sob uma forma de
estabilidade para impedir uma oligarquia. The Collapse of Antiquity mostra
como a civilização ocidental não tinha proteção contra a oligarquia. Ela
estabeleceu leis pró-credores. E mesmo que Roma tenha entrado em colapso, o seu
sistema jurídico tornou-se o sistema jurídico da Europa Ocidental e de todo o
Ocidente.
MITCH
JESERICH: Bem, quero perguntar sobre isso porque está muito
presente na minha mente agora. Sempre fui fascinado pela história da
Constituição [dos EUA] e pelo estudo dos Federalist Papers e os Anti-Federalist
Papers. Quando os lê, sente realmente que está a ler um debate sobre a história
romana e o quanto eles confiaram na República Romana para criar o seu próprio
sistema de governo. Também me lembro que o que levou à Convenção Constitucional
foi uma crise da dívida que se desenrolava em muitos dos estados. Tivemos a Rebelião
de Shays, na qual os estados foram forçados a cancelar a dívida devido a
revoltas populares. A Constituição, pelo menos em parte — a Convenção
Constitucional — tinha como objetivo tentar impedir que o cancelamento da
dívida continuasse, se bem me lembro.
MICHAEL
HUDSON: Sim, e impostos cobrados para pagar a dívida. Desde o
início das colónias americanas, havia uma espécie de opressão dos credores
sobre as colónias. A Inglaterra não permitia que as colónias criassem o seu
próprio dinheiro ou o seu próprio crédito. Insistiam que as transações fossem
feitas com comerciantes e banqueiros ingleses.
Os
banqueiros começaram a fazer empréstimos aos agricultores com toda a
intenção... eles faziam um empréstimo ao agricultor ostensivamente para ser
pago com as colheitas, mas depois exigiam o pagamento antes da colheita e
executavam a hipoteca da terra. Os credores, os credores ingleses, usavam o
crédito para tentar tomar as terras das colónias. Foi por isso que
Massachusetts e a Pensilvânia disseram: não vamos ficar sujeitos aos
credores britânicos. Vamos criar o nosso próprio dinheiro, o nosso próprio dinheiro
público. Paralelamente, surgiram os banqueiros privados, que eram tão
opressivos quanto os credores britânicos, de tal forma que, durante todo o
século XIX, havia um sentimento tão forte contra os bancos nos Estados Unidos
que o Tesouro nunca permitiu realmente o desenvolvimento da banca comercial.
Insistia em que as receitas das tarifas fossem pagas em ouro, e não em
papel-moeda.
O Tesouro
opôs-se realmente ao desenvolvimento do papel-moeda e da banca porque achava
que os bancos eram muito opressivos. E essa foi uma das características
retardadoras dos Estados Unidos, até que a Reserva Federal foi criada
especificamente para permitir que os bancos criassem papel-moeda e retirassem o
controlo do Tesouro, não permitindo que nem mesmo um funcionário do Tesouro
atuasse no conselho da Reserva Federal e transferindo o centro do controlo
financeiro de Washington para Nova Iorque, Chicago, Boston e outros centros
financeiros. Portanto, sim, essa luta financeira ocorreu nos Estados Unidos
contra a banca na estrutura legal e monetária como um todo. Mas não creio que
os fundadores da Constituição realmente compreendessem a história romana, exceto
na medida em que ela foi escrita pela classe credora. Eles não tinham o
conhecimento acadêmico que temos hoje.
MITCH
JESERICH: Também gostaria de perguntar sobre a queda do Império
Romano. Isso ocorreu muitos anos após a queda da República, quando a República
foi substituída por (chamamos de império) um imperador para governar Roma,
voltando a ser um rei. Eles não queriam chamá-lo de rei porque tinham uma
tradição de não ter reis. Mas a queda é interessante. Você apresenta esse
argumento interessante em seu livro, The Collapse of Antiquity, que
eu nunca tinha pensado. Acho que a noção comum da queda do Império Romano — e
há muitas explicações para isso, incluindo ambientais — era que eles foram
simplesmente invadidos por esses bárbaros germânicos, que eram guerreiros
implacáveis. O seu argumento é bem diferente disso. O seu argumento é que, não,
esses invasores germânicos, os vândalos, Alarico, o godo: eles foram bem-vindos
quando chegaram.
MICHAEL
HUDSON: Eles não eram invasores, foram contratados. Os
indivíduos que queriam ser imperadores ou controlar os seus próprios
territórios contrataram guerreiros germânicos. E os guerreiros germânicos
estendiam-se por toda a França naquela época. Eles contrataram guerreiros
gauleses e germânicos para lutar nas suas guerras contra os seus rivais. E
houve uma grande deserção de Roma para os guerreiros germânicos. Os germânicos
invadiram então Roma e o Norte de África, a qual era o celeiro de Roma, desde o
Egito até onde se encontrava Santo Agostinho, a oeste, em Hipona. E tomaram o
controlo do Norte de África e de Roma e estabeleceram-se. Livraram-se da classe
dominante romana, que ficara corrupta e despovoada.
O facto é
que não foram os europeus do norte, os invasores, as tropas que foram
contratadas e se moveram contra Roma, para a espécie de Roma que existira
séculos antes. Roma estava despovoada porque, à medida que se reduz a economia
à servidão da dívida não se tem crescimento populacional. O feudalismo, tal
como se desenvolveu em Roma, tinha quartéis segregados sexualmente. As terras
romanas foram divididas em grandes propriedades aristocráticas, e havia
dormitórios para os homens e dormitórios para as mulheres. Houve um grande
despovoamento.
Toda a
economia estava a polarizar-se tanto que levou ao empobrecimento e os filósofos
romanos diziam que aparentemente os germânicos tinham uma organização económica
superior. Eles não tinham esse tipo de servidão. As pessoas emigravam para eles
eram menos opressivos do que os romanos. E assim, de certa forma, pode-se dizer
que eram libertadores. Tudo isso chegou a um ponto crítico no século IV, século
V, com Santo Agostinho, quando Constantino se converteu ao cristianismo. Mas,
ao torná-lo a religião oficial do Estado, foi a religião da aristocracia romana
que prevaleceu.
A questão
é: como iriam livrar-se do que Jesus disse sobre o cristianismo? E
assim, Agostinho chamou as tropas romanas, e os romanos insistiram que os
cristãos locais apoiassem a aristocracia e entregassem as suas Bíblias. E havia
uma igreja cristã pró-romana e uma anti-romana, e a igreja cristã original que
era totalmente a favor do cancelamento da dívida e da proteção dos devedores.
Em Hipona, onde estava Agostinho, onde ocorreram invasões que tomaram grandes
propriedades, eles eram chamados de donatistas.
Os cristãos originais estavam a proteger os devedores. E se os aristocratas
tentassem executar a hipoteca, os seus associados teriam gangues armadas para
protegê-los.
Agostinho
disse: bem, sabem, temos um problema. E o problema é o Sermão da
Montanha de Jesus e a Oração do Senhor, que dizia: perdoai as dívidas
deles, assim como nós perdoamos os nossos devedores. Agostinho disse: bem, isso
nada tem a ver com dívidas. É: perdoai os nossos pecados. Todos têm um pecado
inato de Adão, e é preciso que a igreja interceda por si, libertando-o do
pecado, dando-lhe o perdão. Mas ele apoiava os devedores. Houve lutas armadas.
Ele chamou o exército romano para entregar as igrejas cristãs ao seu povo
pró-romano e, de certa forma, refez o cristianismo como uma religião orientada
para os credores, não como uma religião dos devedores.
E ele tinha
rivais dentro da igreja cristã, como Pelágio, que diziam: bem,
espere um minuto, se você é uma pessoa rica e dá o seu dinheiro aos pobres e
faz boas obras e é um filantropo, você não entrará no céu por ser uma boa
pessoa? Agostinho disse: «Não, não, você tem que dar à igreja. Aos pobres — os
pobres são os pregadores da igreja. Você tem que dar aos pobres para apoiar a
igreja a rezar por si. Você não pode salvar-se, exceto dando dinheiro à
igreja».
Foi isso
que envenenou o cristianismo desde o início e fez com que a queda do Império
Romano transformasse todo o caráter do cristianismo no Ocidente. Não tanto em
Constantinopla, não tanto no cristianismo ortodoxo oriental, mas no Ocidente.
Isso faz parte de toda essa tomada oligárquica e concentração da propriedade da
terra, do poder dos credores que ocorreu em toda Roma, legada ao Ocidente não
apenas através do cristianismo, mas através de todo o sistema de propriedade, o
sistema de leis e execução hipotecária sobre a propriedade e a terra dos
devedores aos credores.
Tudo isso
faz parte do culminar da forma como a República Romana foi criada desde o
início como uma oligarquia, impedindo qualquer poder público de controlar os
oligarcas, qualquer poder central forte de impedir os oligarcas e empobrecer a
economia e, por fim, reduzi-la à servidão, o que levou cinco séculos para
realmente destruir toda a economia. Assim, estou a preencher o que foi deixado
de fora nas visões do início do século XVIII sobre a história romana. E,
felizmente, temos as suas histórias e tudo está muito bem documentado, mas fora
praticamente ignorado antes de meados do século XIX, quando os historiadores
começaram a dizer: espere um minuto, há dois lados na história romana e no que
aconteceu. É preciso preencher o que foi deixado de fora nas visões do início
do século XVIII sobre a história romana.
MITCH
JESERICH: Então, acha que essa dinâmica ainda está viva hoje
quando se trata de dívida? Com tudo isso em mente, enquanto falamos sobre reis,
oligarquias e dívida, quero perguntar como Joe Biden e Donald Trump se
encaixariam nessa narrativa, se é que se encaixariam. Porque reparei que, ao
falar sobre a aristocracia romana, o Senado romano, a República romana,
mencionou algumas coisas que Joe Biden diz hoje. Então, como é que Joe Biden e
Donald Trump, que foi eleito num movimento populista, se encaixam nesta dinâmica,
se é que se encaixam?
MICHAEL
HUDSON: Na verdade, há muito pouco que eles possam fazer,
porque a oligarquia americana atual, desde o caso Citizens
United da Suprema Corte, significa que há dois partidos e é quase
impossível criar um terceiro partido. A liderança dos dois partidos é
responsável por nomear quem serão os candidatos para a democracia votar.
MITCH
JESERICH: Não acha que Donald Trump quebrou essa dinâmica? O
partido não o queria.
MICHAEL
HUDSON: Não há como ele superar o caso Citizens United e dizer:
«Esperem um minuto, não podemos ter financiamento privado para campanhas
políticas. Isso é suborno». Não há como ele democratizar o sistema eleitoral,
porque isso é um impedimento constitucional e legal. E ele foi eleito
prometendo adotar, como você apontou, um programa populista. Mas foi apoiado
pelos seus seguidores porque consegue mentir de forma tão convincente que as
pessoas realmente acreditam nele quando diz: «Vou ajudar a classe
trabalhadora. É por isso que estou a cortar o Medicaid. É por isso que sou a
favor de todos os cortes de impostos para os ricos e do aumento dos impostos
para as pessoas de baixo rendimento. Mas é tudo por vocês. Tudo isso vai ajudar
a classe trabalhadora».
Era um
demagogo muito bem-sucedido, sendo uma celebridade da televisão. Pense nele
como uma espécie de Zelensky americano ou o russo... Pode pensar nele como
todos os tipos de demagogos, mas ele é um demagogo. Neste momento está a
ameaçar saquear, essencialmente centralizar o aumento dos défices orçamentais a
fim de pagar à oligarquia americana, a qual percebe que estamos praticamente no
fim de toda a ascensão americana desde a Segunda Guerra Mundial. Cada
recuperação tem ocorrido com um nível cada vez mais elevado de endividamento.
Isso significa, finalmente, que a classe média está a ser esmagada. Os
assalariados estão endividados. Estão endividados com hipotecas, se forem
proprietários de imóveis. Estão endividados com empréstimos estudantis. Estão
endividados com cartões de crédito. Estão endividados com automóveis. A
economia está a contrair devido não só ao rendimento dos assalariados, mas
também das empresas que estão endividadas com seus detentores de títulos. Há
tanta dívida que a economia está a ser travada.
Então Trump
diz: ok, estamos no fim de toda esta maravilhosa decolagem de 80 anos desde
1945. Vamos ter uma privatização, assim como Yeltsin teve na Rússia. E eu vou
apoiar a oligarquia, apanhando tudo o que puder, apanhando o dinheiro deles e
fugindo. Essa é a política dele. E ele conseguiu, até muito recentemente,
manter o apoio dos eleitores que realmente achavam que nada poderia ser pior do
que o que os democratas, Biden e Hillary, têm feito. Vamos votar nele só para
dizer: expulsem esses malandros. Bem, acaba-se por ficar com um malandro ainda
maior. E realmente não há escolha, porque as mesmas pessoas/poderes que
apoiaram Trump estavam a apoiar os democratas, embora Trump seja mais dos
multimilionários do Vale do Silício.
A questão
é: qual grupo de multimilionários quer que governe o país? Quer que os
multimilionários da Wall Street governem o país financeiramente, ou quer que os
multimilionários monopolistas do Vale do Silício e outros multimilionários o
façam? Mas os multimilionários vão governar o país, independentemente do
partido que estiver no poder, e a população vai ser esmagada.
MITCH
JESERICH: Estamos na final.
MICHAEL
HUDSON: Pode-se dizer que isso tornou os Estados Unidos uma
economia falida e um Estado falido por causa da Constituição. Na minha
concepção, uma revisão constitucional deveria ser para continuar a modernizar a
Constituição e ajustá-la aos tempos modernos. Se tivermos um Supremo Tribunal
que diz: «Queremos pensar o que os proprietários de escravos teriam
feito na época da Constituição original», temos quase palavra por palavra o
Supremo Tribunal de direita a fazer o que os atenienses fizeram a Sólon. Eles
disseram que queriam restaurar a Constituição original de Sólon. E o que se
tinha eram visões rivais sobre o que era a Constituição. E os oligarcas diziam:
«Não, o que Sólon realmente fez foi não cancelar as dívidas. Ele apenas alterou
a taxa de câmbio monetária para facilitar o pagamento das dívidas.» Havia uma
negação de que Sólon tivesse feito tudo o que fez.
Esse é o
tipo de luta que se tem hoje nos Estados Unidos, dizendo: «Não modernizem a
Constituição. Não democratizem a Constituição americana. Ela foi escrita por
proprietários de escravos. Foi escrita e dominada pelos ricos. Esse é o tipo de
América que teremos. Caso contrário, é inconstitucional ser democrático, é
inconstitucional impedir que a oligarquia rica financie as campanhas políticas
dos políticos que concorrem nas primárias, de modo que quem ganhar as primárias
de qualquer um dos partidos será o político apoiado pelos doadores de campanha
mais ricos.
MITCH
JESERICH: Michael Hudson é presidente do Institute for the Study
of Long-Term Economic Trends (ISLET) e Professor Distinto de Investigação em
Economia na Universidade do Missouri, Kansas City. Ele está a escrever uma
série de livros sobre a história da dívida, incluindo aquele sobre o qual
conversámos. Chama-se The Collapse of Antiquity (O Colapso da
Antiguidade). Michael Hudson, gostei muito da nossa conversa e
agradeço-lhe.
MICHAEL
HUDSON: Bem, muito obrigado por me receber. Estou muito feliz
por discutirmos estas questões de forma ampla.
MITCH
JESERICH: É tudo por hoje no Letters and Politics. O programa é
produzido por Deanna Martinez. Kristen Thomas é a engenheira. Sou Mitch
Jeserich e agradeço por terem nos acompanhado.
[NR] Certamente
é um lapso. A idade da trevas foi entre os séculos V e XV da presente
era, depois de Cristo. As deficiências da tradução devem-se ao
próprio original, transcrição de uma conversa.
01/Setembro/2025
[*] Economista.
O original
encontra-se em michael-hudson.com/2025/09/romes-arc-americas-echo
Esta
entrevista encontra-se em resistir.info
03/Set/25
https://resistir.info/m_hudson/antiguidade_01set25.html