sábado, 8 de março de 2025

Zaíra Pires - Dia Internacional da Mulher Branca

? Zaíra Pires, Blogueiras Negras

Mais um 8 de março se aproxima e recebemos aquela enxurrada de chorume em nossas existências femininas nos “homenageando” por sermos delicadas, amorosas, resilientes, submissas, mães, esposas, damas na sociedade e amantes ardentes entre quatro paredes.


Todo esse repentino amor tem hora pra começar e acabar, durando o tempo do mês de março, da semana do 8 ou só desse dia mesmo, de acordo com o tanto de baboseira que cada um consegue produzir.

Nesse sentido, as mulheres homenageadas são sempre as mesmas: brancas, jovens, magras, ocidentais, cristãs e cisgêneras.

E para não perder o costume, nós, as pretas neuróticas, recalcadas, mal amadas e que veem racismo em tudo, vamos direcionar nossa crítica destrutiva ao bode expiatório da vez: a Riachuelo e sua campanha pela Semana da Mulher Brasileira 2014 (leiam ironia nas minhas palavras, por favor)

ver aqui o vídeo referido no artigo


Dia da Mulher Brasileira - Propaganda Riachuelo 03/2014

Como podemos ver no vídeo, a mulher brasileira padrão, essa do comercial, corresponde exatamente ao padrão médio da brasileira, afinal, somos majoritariamente brancas, loiras, com traços faciais finos e tão magras e altas como sílfides mitológicas. Uai, não somos?

E então que a presença negra no comercial é de uma mão que serve. Um corpo sem cara, que não consome, não tem vontades, sequer existe, apenas serve. Uma sombra semivivente que só se presta a apoiar a existência da sua senhora.

Sim, porque a mulher que deve ser homenageada na semana da mulher é aquela branca que trabalha fora, independente, bem resolvida, que limpa a casa, cuida dos filhos, serve ao seu marido e sempre está com as unhas feitas e a depilação em dia. Essa é uma super mulher que consegue viver seus rompantes de modernidade sem deixar de lado suas obrigações femininas. Essa merece ser louvada e ganhar um desconto nas compras da semana por cumprir suas funções com tanto esmero.

A preta que sustenta a família com seu salário do subemprego, que enfrenta 5 horas de ônibus sujeita a abuso sexual, que vê seu filho ser morto pela polícia, que morre por complicações aborto inseguro, que está fadada ao serviço doméstico desde sempre como se isso fosse inerente à sua existência, que suporta as investidas sexuais do patrão e do filho do patrão para não perder o sustento dos seus, que é a principal vítima de negligência na saúde pública, que deixa seus filhos sozinhos em casa pra cuidar dos filhos da patroa branca, que é a maioria entre as trabalhadoras do sexo, que não completa os anos básicos de estudo porque precisa sair para trabalhar, que tem que se virar em quinze para viver e ainda manter o sorriso no rosto, essa não merece as homenagens desse dia.

Na verdade essa mulher é a serviçal que deve se alegrar por ter a honra de ver seus braços pretos aparecerem na televisão.

Afinal, o que a Riachuelo nos diz com esse filme, e o que muitas outras nos dirão nessa semana, é que mulher negra consumidora é paradoxo, e já que ela não existe, porque deveria ser representada numa propaganda? Quem disse que preta tem dinheiro? Quem disse que preta compra alguma coisa? Quem disse que preta entende de publicidade?

Pois estamos aqui, consumidoras, pensadoras, cidadãs, formadoras de opinião, dizendo que esse comercial não nos representa. Durmam com esse barulho!

2014 03 08

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=237240&id_secao=8

Viriato Soromenho-Marques - Na tempestade de fogo


Na guerra, mesmo os sobreviventes prosseguem um cruel combate. Entre culpa e redenção, para resgatar uma réstia de bondade humana dos campos de batalha.

* Viriato Soromenho-Marques


Na guerra da Ucrânia, os soldados dos dois lados, mortos e feridos, não têm direito à revelação completa dos nomes. A lista de baixas está transformada num segredo de Estado. A batalha que se trava nos jornais e nas televisões é de pólvora seca verbal. Que sabemos, verdadeiramente, sobre a experiência desses soldados, homens e mulheres, ucranianos e russos, dilacerados nesse inferno de fogo e sangue lavrando há quase três anos?


Para nos aproximarmos de uma resposta teremos de recuar à I Guerra Mundial (I GM). As semelhanças esmagam. Duas guerras de dominância industrial e tecnológica. Novas e antigas armas encontram-se reunidas num concerto letal, colocando o mais treinado e valente dos guerreiros numa situação de impotência e acaso perante o fogo de artilharia, o ataque de drones e mísseis, as minas, a investida dos tanques, o tiro furtivo dos snipers, o fogo de armas ligeiras, os ataques aéreos a distâncias que inibem qualquer defesa por antecipação. Na I GM não ameaçavam drones assassinos, mas imperavam os gases venenosos, banidos hoje dos teatros de operações. Na I GM, o combate desenrolou-se, a partir do final de 1914, numa linha contínua de fortificações, que, na frente ocidental, correspondia aos 750 km que vão do Mar do Norte até à fronteira franco-suíça. Na Ucrânia, a frente fortificada estende-se por mais de 1200 km. Nos dois conflitos a maioria das baixas é causada pela arma de artilharia. As condições dos combatentes nas trincheiras são, em ambos os casos, de enorme dureza, e os tempos médios de sobrevivência (sem algum tipo de ferimento), podemos alvitrar, serão de escassos meses.


Ernst Jünger
Para quem queira conhecer (e sentir) melhor a brutalidade do esforço que Kiev e Moscovo pedem aos seus soldados nesta guerra (nada comparável com as campanhas assimétricas travadas pelos EUA contra rivais muito inferiores) aconselho a leitura do melhor livro sobre a I GM: Tempestades de Aço (edição portuguesa de Guerra & Paz, 2023), da autoria do grande escritor alemão Ernst Jünger (1895-1998), na altura um jovem oficial, miraculosamente sobrevivente a quatro anos de combate contínuo, pontuado por catorze ferimentos graves: “Cinco tiros de espingarda, dois estilhaços de granada, uma bala de granada, quatro granadas de mão e dois estilhaços de projétil de espingarda” (p. 278). Em setembro de 1918, Jünger receberia a mais alta condecoração militar prussiana, Pour le Mérite, normalmente apenas atribuída a generais e marechais.


O livro baseia-se nas anotações dos seus diários de guerra. Nele se pratica um hercúleo exercício de distanciamento e objetividade, tratando a guerra como se fosse um cataclismo natural, semelhante a um sismo ou um furacão. A narrativa está povoada pelos nomes de companheiros mortos, por gratidão com camaradas que por ele deram a vida, pela lembrança de soldados inimigos, mortos pelas suas armas, ou por ele poupados. Entre 1920 e 1978, o livro conheceu sete edições, revistas parcialmente. Na última edição, Jünger, a propósito de um jovem soldado inglês abatido pela sua espingarda, acrescenta o seguinte: “Mais tarde, pensei nele muitas vezes, cada vez mais, com o decorrer dos anos. O Estado, que nos isenta da responsabilidade, não nos pode libertar da dor; temos de ser nós a lidar com ela. Ele penetra até às profundezas dos nossos sonhos” (p. 235). Na guerra, mesmo os sobreviventes prosseguem um cruel combate. Entre culpa e redenção, para resgatar uma réstia de bondade humana dos campos de batalha.

Diário de Notícias, 2025/01/03

https://azoreantorpor.wordpress.com/2025/01/04/


James Brown - I feel good (Good Morning Vietnam Soundtrack) 1988

Viriato Soromenho-Marques - PORTUGAL À DERIVA NA TEMPESTADE – quatro notas de leitura

Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa L. Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer.

* Viriato Soromenho-Marques


As grandes crises revelam os grandes líderes. Contudo, apenas quando os povos têm a sorte e a capacidade de os produzirem. A guerra da Ucrânia, que já entrou no seu quarto ano é, sem dúvida, a maior crise existencial de toda a história portuguesa, pois é a primeira vez que Portugal tem um governo que se deixou, com entusiástica estultícia, enrolar num confronto com a Rússia, totalmente contrário ao interesse nacional mais elementar, o salus populi suprema lex esto (seja a salvação do povo a lei suprema), imortalizado no De Legibus, de Cícero. Nem os fanáticos que queriam declarar guerra ao império britânico, na sequência do Ultimato de 1890, nem o furioso Afonso Costa, colocando Lisboa a ferro e fogo em maio de 1915 para enviar, por decisão unilateral, milhares de soldados analfabetos para a Flandres, se comparam à façanha do mesquinho consenso nacional que vai de António Costa a Rui Tavares, numa contemporânea demonstração da veracidade da tese de Unamuno que considerava ser Portugal um país de suicidas. O que continua em causa é a possibilidade de Portugal ser destruído num conflito total com a Rússia, o país com o mais poderoso e moderno arsenal nuclear do planeta.

Estamos a falar de acontecimentos vertiginosos, desde a chegada de Trump à Casa Branca. Vejamos, apenas, alguns das dimensões mais permanentes, neste quadro de incerta mudança.

Primeira. As negociações de paz, iniciadas por Trump com a Rússia, são boas notícias para os povos da Europa e do mundo. Afastam, pelo menos provisoriamente, o pior cenário, para onde estaríamos a rumar caso a linha de escalada bélica seguida por Biden tivesse prosseguido. Essas negociações, onde nem Zelensky nem a UE contam, revelam a justeza dos analistas, entre os quais me encontro desde sempre, que consideraram esta guerra como uma guerra de procuração (proxy war) dos EUA contra a Rússia, usando o território e o sangue ucranianos como instrumentos. Bruxelas protesta, porque Trump deixou cair o véu de Maia, a cortina ilusória, que fazia do apoio da UE à Ucrânia um assunto de direito internacional. Na verdade, tratava-se da prova de que os nossos governantes europeus não hesitam em sacrificar a qualidade de vida e a segurança dos seus povos, para servirem o império americano, e o seu desígnio persistente de fragmentar a Rússia. O caso mais aberrante de autoflagelação europeia é o da Alemanha, quando o governo de Scholz tudo fez para manter a lealdade canina com Washington, imolando para isso a qualidade de vida e a saúde económica do seu próprio país.

Segunda. As perspetivas de “paz imperfeita”, mil vezes melhor do que a continuação do conflito, só foram possíveis, para além das mudanças em Washington, pela clara superioridade militar das forças convencionais russas, apesar da valentia das tropas ucranianas e das correntes inesgotáveis de material bélico recebido dos países da NATO ao longo destes três anos. Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa L. Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer. No cenário, altamente improvável, de as tropas de Kiev com o apoio de “voluntários” ocidentais se aproximarem de uma derrota das forças convencionais russas, Moscovo não se renderia. Faria o que a sua doutrina há décadas promulga: escalaria ao uso limitado do nuclear, para obrigar o inimigo a pensar duas vezes antes de prosseguir até à guerra total. Por outras palavras, a vitória convencional e limitada da Rússia, parece ter salvo os povos da Europa de serem vítimas da irresponsabilidade estratégica dos seus dirigentes.

Terceira. A paz que está a ser negociada só poderá ser duradoura se se traduzir num tratado que defina as regras do jogo no sistema internacional europeu, pretensão que a Rússia sempre perseguiu, mesmo desde os tempos de Gorbachev. Há, contudo, dois obstáculos no caminho. Por um lado, aquilo que prevalece no discurso europeu (com apoio da administração Trump) é a ideia de a UE fazer da corrida armamentista o novo objetivo estratégico (rasgando e substituindo o famoso Pacto Ecológico, onde a minha derradeira credulidade se esgotou). A Rússia jamais permitirá que uma nova guerra seja preparada à sua vista, sem nada fazer. Por outro lado, Trump está a jogar perigosamente não só com os seus aliados, mas também com o próprio aparelho de Estado federal e com alguns dos poderosos interesses nele instalados. Considero bastante provável que um atentado contra Trump, desta vez bem-sucedido, possa desencadear uma segunda guerra civil americana, cujas consequências são totalmente imprevisíveis.

Quarta. Só um milagre poderia impedir as forças centrífugas dentro da UE de prevalecer. Não sei quanto tempo ainda teremos antes de este edifício, cheio de fissuras, nos tombar sobre a cabeça. A zona Euro, totalmente dependente de Wall Street e da Reserva Federal, irá contribuir para que governos e povos fiquem paralisados à espera do pior. Curiosamente, os furiosos governos anti-russos do Leste da Europa, darão, provavelmente, lugar a novos governos favoráveis à colaboração com Moscovo. A UE será a grande vítima da guerra da Ucrânia. Os insensatos que em Bruxelas abraçaram uma política totalmente oposta às realidades históricas e geopolíticas da Europa, serão, pelo menos, testemunhas do imperdoável caos em que nos fizeram mergulhar.

(Publicado no Jornal de Letras, edição de 5 de março de 2025)

Post scriptum. O artigo acima foi escrito antes da famosa “disputa” de Zelensky contra Trump e toda a sua equipa na Sala Oval, no dia 28 de fevereiro de 2025. Aconselho os leitores do Azorean Torpor a visionarem o filme completo (49’47’’), antes de fazerem coro com a transformação de Zelensky numa vítima heróica. Fazer um juízo a partir da parte final dessa conversa, satisfaz o alinhamento manipulatório que foi dado na Europa a essa longa conversa. Também não tenho simpatia por Trump, mas reconheço que existe um esforço sério da sua administração para acabar com esta guerra, em absoluto contraste com a corrida para o confronto total com a Rússia a que nos conduziria a continuação da política de Biden e Blinken. Pelo contrário, Zelensky aproveitou a amabilidade dos seus anfitriões norte-americanos para mostrar, perante um auditório universal, a sua total oposição a esse processo de paz. Para um cidadão europeu, ao fim de três anos de guerra, não perceber onde é que está o nosso interesse vital, preferindo o discurso de ódio ao discurso da via diplomática, significa até que ponto chagámos na Europa a um lamentável estado de degradação da nossa capacidade coletiva e individual de distinguir entre o que é essencial e o que é perigosamente ilusório.

2025 03 06 

https://azoreantorpor.wordpress.com/2025/03/06/

Jailme Nogueira Pinto - A Europa e a decadência,

 Opinião

* Jaime Nogueira Pinto

DN 07 Mar 2025, 00:27

Por vezes a resposta à realidade desagradável é ignorá-la; outras vezes é passar a tratá-la ao modo de Cruzada contra o Mal, o mal absoluto, contra o qual vale tudo; e nessa narrativa alternativa, concentrar tudo o que possa contraditar a realidade, usando argumentos laterais, colaterais, formais, por importantes que sejam, mas fugindo ao cerne da questão.

É este o juízo que me parece mais próprio, vendo o alheado agitar, esbracejar e passarinhar dos líderes europeus para longe do centro da intriga (o almejado fim do conflito Rússia-Ucrânia), perante a nova Administração americana e o seu dilúvio diplomático e executivo.

Em vez de caírem na realidade e nas consequências da realidade, “os europeus”, ou seja, essencialmente o duo Macron-Stamer (a que Merz ameaça juntar-se), continuam em manobras de diversão que, além de inconsequentes, se podem tornar perigosas.

Isto porque a Europa mudou neste último século. A Europa foi o centro do poder e da economia mundial até à Grande Guerra de 1914-1918. E saiu da guerra com os impérios alemão e austro-húngaro vencidos e desfeitos e com o vizinho império otomano também vencido e esfrangalhado.

Entretanto, na Rússia, dera-se uma revolução radical de esquerda, utópica e marxista, que praticava e prometia o genocídio de classe. Uma revolução que, posta em marcha, ameaçava a Europa, onde vários Estados - da Itália fascista ao Portugal da Ditadura Militar - adoptaram soluções autoritárias.

Para vencer a Alemanha, os aliados franco-britânicos tinham trazido os norte-americanos que, com o presidente Wilson, um cruzado da democracia mundial com nostalgias sulistas, quebravam o isolacionismo dos Founding Fathers e de Monroe.

Na Segunda Guerra passou-se algo semelhante; outra vez, contra uma forte corrente isolacionista, liderada pelo então “herói americano” Charles Lindbergh e pelo seu movimento America First, F.D. Roosevelt, depois de os japoneses atacarem Pearl Harbour, conseguiu levar a América para a guerra. E outra vez os americanos - com os russos de Estaline a vir do Leste atrás dos invasores hitlerianos - desembarcaram na Europa e resgataram os Ocidentais, vencidos e ocupados pelos alemães.

Estas “guerras civis europeias” - fosse qual fosse a sua justiça e sentido - além de causarem grandes destruições humanas, materiais e morais, marcaram o fim do mundo eurocêntrico. Na verdade, para ganhar a guerra e lograr o concurso dos seus colonizados no esforço de guerra contra a Alemanha e o Japão, os Aliados tiveram de lhes prometer o autogoverno. Nem de outro modo podia ser. Os impérios ultramarinos iam ser a principal vítima colateral da nova ordem mundial, redigida e fixada na Carta das Nações Unidas. E a Europa vencida, constrita e ocupada, iria avançar com projectos de união aduaneira e económica e até, para algumas elites políticas e tecno-burocráticas, de união e federação, sonhando e copiando o que acontecera nos Estados Unidos.

E face ao perigo comunista, que ocupara uma série de países da Europa Oriental, confiou-se com gratidão no amigo americano, a nova superpotência que, arcando com a defesa comum, libertava aos europeus recursos para, em democracia, construírem o Estado Social.

É isso que, agora, pode estar para acabar: os Estados Unidos não vão abandonar a NATO nos próximos tempos, mas também não parecem dispostos a tolerar o jogo duplo dos que vão a Washington ao beija-mão, mas bloqueiam a paz; dos que falam em rearmamento, mas se encolhem quando se trata dos seus filhos ou do seu dinheiro; dos que mandam os outros fazer peito aos poderosos e depois estender-lhes a mão.

Politólogo e escritor

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

https://www.dn.pt/opiniao/a-europa-e-a-decad%C3%AAncia?utm_source=website&utm_medium=related-stories

sexta-feira, 7 de março de 2025

Manuel Loff - O Comodoro e as coisas



* Manuel Loff


Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Era o que ele lembrava aos seus compatriotas desde que, chegado à Presidência, enxotava os escrevedores de discursos que havia no Palácio. Ele por ele tinha “fome de vencer e sou muito ambicioso e não gosto de perder.” Mas o país que aprendesse a trabalhar, porque isto de “distribuir a riqueza inexistente, que não produzimos”, não podia ser!

Triunfara contra dois figurões dos velhos partidos. Pelo Partido Alcrata (popularmente conhecidos como “alcatras”), o comendador Parques Tendes, que se achava velha raposa dos tempos idos do professor Tamanco. No Partido Lista, como era habitual, não se tinham entendido, ofuscados muitos deles pelo brilho do uniforme do Comodoro, com quem se tinham dado tão bem. De entre eles, em bicos de pés, lá fizera o seu número o soporífero Dr. Apólice.

Foi a desgraça para eles. O Comodoro resolveu tudo logo à primeira volta. Irritara-se, isso sim, com o palavroso Porventura. O Comodoro tratava-o como quem trata um aspirante; todos conheciam os pedagógicos raspanetes públicos que gostava de dar aos praças. Mas sabia que precisava dele para livrar-se dos velhos partidos. E ainda por cima, o outro tratava-o com o mesmo grau de reverência com que despachava despautérios contra o resto do mundo. O Comodoro achava que o tinha posto na linha.

 Depois veio o rearmamento, o serviço militar obrigatório e a crise. O país era pequeno, tinha de poupar, a guerra vinha aí, e de guerras sabia ele. “Tempos de emergência” tinham chegado; aliás, a vida devia ser vivida toda ela como uma emergência, único meio ambiente no qual um povo desleixado compreende o seu dever. Chamou-se os constitucionalistas. Disse-lhes o que queria. Presidencialismo, o único regime das nações dignas desse nome. E que se reduzisse o número de deputados, 70 chegavam muito bem. Poucos mas bons. Os listas e os alcatras balbuciaram algumas dúvidas mas disseram que sim. Afinal, explicou-lhes o Comodoro, os tempos eram outros, e todos estavam de acordo que “já não estamos em 1975!”, a frase preferida dos comentadores. O Porventura disse que nunca tinha querido outra coisa, pudesse o Comodoro dar-lhe uma chance para demonstrar a sua valia no governo.

 Numa comemoração do 25 de Novembro – cuja passagem a feriado nacional o Comodoro aplaudira -, o Presidente fardado (por que não podia ele usar a farda como presidente?) apresentou o projeto. Os poucos deputados da esquerda abandonaram a sala. Vários cantavam uma canção sobre uma “vila morena”. O Comodoro queixou-se de “falta de respeito!”. Estava na altura de os pôr na ordem. O Porventura foi o primeiro a levantar-se para o aplaudir. “Sempre à disposição do senhor Comodoro para limpar a Pátria!”, garantiu. O Comodoro sorriu. Achou que o tinha no bolso. O Porventura achava que era ele que tinha o Presidente no bolso. Coisas da política, eles lá saberiam.

Depois, veio a guerra com a China. E mais austeridade. Agora assumia-se que era mesmo austeridade, e que tinha de ser. Quando começaram as greves, o Comodoro disse “Basta! Isto assim não pode ser!”, e a imprensa aplaudiu a linguagem genuína, a voz de comando, o caráter decidido! Impôs o estado de emergência, coisa que o país já conhecia. Explicaram-lhe que tinha de ser só por 15 dias e que depois havia que perguntar aos deputados se podia ser por mais tempo. “Claro que tem de ser, ou os senhores deputados acham que as guerras têm calendário?!” Fizeram-lhe a vontade. Proibiram-se as greves nos serviços públicos. Ele, militar, a servir a Nação, nunca tinha feito uma greve, por que haveriam os outros poder fazê-la?
 
E agora era assim. Como dizia o ele, no seu habitual “Colóquio à Lareira” pela televisão: “Para a frente, compatriotas! A pátria nos contempla e o passado nos espera.”

2025 03 05

https://www.publico.pt/2025/03/05/opiniao/opiniao/comodoro-212469

Carlos Ferro - A LÍNGUA PORTUGUESA DE RASTOS - Preguiça linguística ou um “elefante na sala”?



Carlos Ferro* | Diário de Notícias, opinião

Há em Portugal uma nova moda entre as crianças: não usam o verbo principal quando falam. Os exemplo são vários e há diversas opiniões e alertas sobre a situação que pode vir a ter consequências mais tarde.

“Professora, posso água? Posso bolachas?”. Estes são dois exemplos que a jornalista Cynthia Valente apresentou no Diário de Notícias no trabalho onde ouviu pais, professores e um psicólogo sobre este fenómeno que se está a tornar num “elefante na sala”, não só nas casas das famílias como nas escolas.

Chegados aqui, qual a explicação para tal e quais as consequências futuras para estes alunos do 1.º ciclo - o fenómeno está a ser mais detetado neste período escolar?

Parece que há várias justificações. Uma são os vídeos curtos a que as crianças e adolescentes assistem diariamente e que acabam por transmitir a ideia que qualquer conversa pode ser tida com pequenas frases, mais ou menos completas. Talvez seja a versão 2.0 do ditado “para bom entendedor meia palavra basta”.

Outra explicação passará pelo facto de as famílias falarem pouco entre si, ou seja, os pais devem ter uma maior interação com os filhos - e voltamos ao muito falado uso excessivo do telemóvel - e corrigi-los sempre que não completem as frases.

Uma terceira razão para esta “evolução” é o “mundo acelerado” em que vivemos como frisou ao DN, no trabalho já referido, Alberto Veronesi, professor do 1.º ciclo e diretor do Agrupamento de Escolas de Santa Maria dos Olivais. Disse este responsável que “a comunicação é geralmente rápida e eficiente e, assim sendo, as crianças sentem que as frases completas são desnecessárias para se fazerem entender”.

No entanto, agora que já se detetou esta “preguiça linguística” talvez seja o momento de os estudiosos da Educação e os responsáveis do setor verem como se pode/deve lidar com esta supressão verbal para que mais tarde os jovens adultos e adultos não sintam dificuldades numa sociedade cada vez mais comunicacional. E, já agora, para tentarmos, como País, melhorar nos rankings que vão sendo conhecidos e nos quais Portugal não está a ter boa figura.

* Editor executivo do Diário de Notícias

Nota PG: Em nossa observação e opinião não é só nas escolas do ensino básico que se fala e escreve mal a língua portuguesa em Portugal. Um grande mau exemplo temo-lo em vários canais de televisão e de rádios. Eles 'comem' palavras e dizem profusamente TÁ em vez de está, TAMOS em vez de estamos BORA em vez de embora, etc., etc,. e assim consecutivamente. Além disso usam e abusam da língua anglófona misturada com frases em português. A comunicação social - principalmente - nos comentários e em notícias - é completamente assucatada via  'angloportufonês'. Uma vergonha, principalmente naquelas profissões rádio-televisivas faladas. Não são crianças do ensino básico mas sim jornalista 'dótores' que mais parecem estar a falar mau português em conversas de café ou numa chungaria muito rasca. Esses maus exemplos são imensos. E o assunto devia de ser aprofundado e dar-lhe combate. A língua portuguesa é linda e muito completa mas não, comprovadamente, para as atuais gerações 'modernas e estrangeiradas' que não se exprimem em língua de 'peixe nem de carne' mas sim em expressões bárbaras todas misturadas e chafurdadas. São esses o setor principal de aplicação do mau português que se fala em Portugal. Está por saber qual será a Pátria desses 'maduros e maduras' tão 'calinosos' a falar em português.

at março 07, 2025 
https://paginaglobal.blogspot.com/2025/03/a-lingua-portuguesa-de-rastos-preguica.html

Carlos Coutinho - Terras raras


 
 




» Carlos Coutinho
  
DIZ quem sabe que, na conjuntura atual de equilíbrios políticos instáveis, os noticiários e os comentadores políticos passaram e integrar no seu léxico o termo “terras raras”, sem um conhecimento mínimo do que isso significa e muitas vezes até com dificuldades em pronunciar os nomes desses elementos químicos, olhados como estranhos e “objetos de cobiça”, representando assim “moedas de troca valiosas”

O que é facto é que as terras raras constituem “um conjunto de 17 elementos químicos da Tabela Periódica: os 15 lantanídeos – do lantânio (La) au lutéc io (Lu) –, mais o ítrio  e o escândio (Sc), que possuem propriedades químicas semelhantes. (…) A produção mundial de óxidos de terras raras foi aproximadamente 350 mil toneladas métricas em 2023. Apesar do nome, muitas terras raras não são tão raras assim, mas estando os seus depósitos principais e a sua produção mundial concentrados na China, esles são estratégicos para as necessidades tecnológicas mundiais”.

Quem isto diz são os professores universitários José Moura (Coimbra) e Carlos Geraldes (Nova de Lisboa), in “Público” (26.2.2025) que logo explicam:

“As terras raras apresentam vários estados de oxidação e são metais reativos especialmente quando em pó. A maioria tem comportamento químico parecido, o que dificulta a sua separação, e reagem facilmente com oxigénio, formando óxidos estáveis. Muitas aplicações específicas, resultantes das suas propriedades magnéticas e luminescentes, cruciais para a manufatura de muitos produtos para a alta tecnologia, tornam as terras raras muito apetecíveis na química e na indústria, sendo em geral denominadas materiais tecnológicos. 

“Enumeramos aqui as aplicações mais relevantes: em materiais supercondutores (neodímio e samário; na preparação de catalisadores químicos usados na indústria automóvel (cério e lantânio): em lasers (neodímio e ítrio); em motores magnéticos usados em turbinas eólicas e componentes de automóveis (neodímio e dispósio, o Dy); em luminóforos (európio e térbio) usados em telas e lâmpadas LED; em ligas metálicas (lítrio e escândio): e no desenvolvimento de materiais resistentes aplicados baterias e dispositivos eletrónicos (disprósio, praseodímio, ou Pr); em fibras óticas (´´erbio, ou Er) e células fotovoltaicas, por exemplo, em painéis solares (itérbio).

“O design a funcionalidade de smartphones, a nitidez dos seus altifalantes, microfones e dispositivos de vibração são possíveis graças à incorporação de150 a 250 miligramas de nove destes elementos, por exemplo, em motores e ímanes pequenos e potentes que são fabricados com neodímio e praseodímio. Deste modo, as terras raras são essenciais para o crescimento de tecnologias verdes, tais como veículos elétricos e conversão de energia solar e eólica, bem como telecomunicações, etiquetas de segurança (códigos QR)m, cirurgia e imagens médicas e na indústria de defesa.”

Tenho de parar aqui na citação, porque se trata de ingredientes indigestos. Basta-me lembrar que são tudo coisas em que a Europa é muito pobre e os EUA também. 

Ora, nisto como em tudo, só é cego quem não quer ver, podemos perceber, além do mais, quem inspirou, financiou e mantém a guerra da Ucrânia, com o nosso inefável Costa abraçado a Ursula van der Leyen, generais-chefes da NATO, Netanyahu e Zelensky.


2025 03 07
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quinta-feira, 6 de março de 2025

Zelensky na Ucrânia

Saiba quem é Volodymyr Zelensky e a verdadeira história da Guerra da Ucrânia com a Russia. 

Durante anos, ele foi aclamado como um herói. Para alguns, ele ainda é. Agora ele está exposto.

Aqui está a história da Ucrânia e de Volodomyr Zelenskyy que você não ouvirá da mídia. 

Zelenskyy nunca teve as cartas. Ele não é um líder corajoso dando as cartas. Ele é um homem desesperado, agarrado ao poder em um regime em colapso — apoiado por dinheiro, armas e propaganda ocidentais. E com a Ucrânia perdendo a guerra de relações públicas e a guerra real, ele está em pânico. 

A Ucrânia não foi um ator independente nesta guerra. Os verdadeiros corretores de poder estão em Washington, Bruxelas e Londres, jogando seus jogos geopolíticos.

Esta guerra foi planejada para enfraquecer a Rússia. Para entender isso, você precisa entender a história que eles nunca lhe contarão.

Ucrânia e Rússia estão unidas há mais de 1.000 anos. Kiev, a capital da Ucrânia, outrora o coração da Rus de Kiev — o primeiro grande estado eslavo — lançou as bases para a própria Rússia. O próprio nome Ucrânia significa "fronteira" — o que significa a fronteira da Rússia.

Por séculos, foi parte integrante do Império Russo, não uma nação "oprimida". Mesmo durante a era soviética, a Ucrânia não foi ocupada — era central para a URSS. Até o líder soviético Nikita Khrushchev era ucraniano.

Quando a URSS(União Soviética) entrou em colapso, a Ucrânia se tornou independente e Washington interveio — não para ajudar a Ucrânia, mas para armá-la contra a Rússia.

Os EUA e a OTAN mentiram para Gorbachev, prometendo que não se expandiriam "nem um centímetro para o leste". No entanto, a OTAN entrou na Polônia e nos Estados Bálticos.

A Ucrânia era o prêmio máximo da OTAN.

O Ocidente despejou bilhões na Ucrânia, financiando grupos políticos pró-OTAN, ONGs e mídia para fabricar um estado antirrusso.

Em 2004, a CIA apoiou a "Revolução Laranja", anulando uma eleição que favorecia um candidato pró-Rússia.

O verdadeiro golpe veio em 2014.

O presidente democraticamente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, rejeitou um acordo comercial da UE que teria destruído a economia da Ucrânia. Isso era inaceitável para Washington. Então, eles o removeram por meio de uma revolução colorida fabricada.

A chamada "Revolução Maidan" não foi um movimento popular. Foi um golpe apoiado pela CIA, orquestrado por autoridades como Victoria Nuland. Washington era tão descarada que Nuland foi pega em uma ligação vazada, escolhendo a dedo o próximo líder da Ucrânia antes Yanukovych havia partido. 

As multidões violentas que tomaram Kiev não eram manifestantes pacíficos. Eram líderes por grupos neonazis como o Batalhão Azov, grupos que celebram abertamente os colaboradores nazistas e usam insígnias das SS.

Esses mesmos grupos recebem agora armas ocidentais.

O regime pós-golpe proibiu então a língua russa, atacando diretamente milhões de ucranianos russófonos no leste.

Foi então que Donbass e Crimeia disseram basta. A Crimeia realizou um referendo — mais de 90% votaram pelo regresso à Rússia. O Donbass também votou pela independência.

O povo do Donbass rejeitou Kiev, mas Kiev não saiu de lá. Em vez disso, iniciaram uma guerra brutal contra o seu próprio povo, bombardeando civis durante oito anos. Onde estava a indignação ocidental? Em lado nenhum! 

E o que Zelensky disse? Quem é ele? É um líder orgânico que surgiu do nada ou foi instalado?

O Covert Action noticiou que, em 2020, Zelenskyy se encontrou secretamente com o chefe do MI6, Richard Moore. Porque é que um presidente estrangeiro se reuniu com o principal espião do Reino Unido em vez do seu primeiro-ministro?

Zelenskyy é um ativo do Reino Unido? Segundo os relatos, é protegido pessoalmente pela segurança britânica, e não pela ucraniana. Quando visitou o Vaticano, desprezou o Papa e encontrou-se com um bispo britânico. Adivinha quem mais estava lá? Richard Moore do MI6 novamente! Que coincidência.

Antes da política, Zelenskyy foi comediante e ator, interpretando literalmente o presidente num programa de TV. Depois, com a ajuda das equipes de relações públicas ocidentais, a ficção tornou-se realidade.

A sua campanha foi financiada pelo oligarca Ihor Kolomoisky, dono da maior empresa petrolífera e do banco da Ucrânia.

Uma vez no poder, a prioridade de Zelenskyy não foi combater a corrupção, mas sim garantir que a BlackRock e os bancos ocidentais assumissem o controlo da economia da Ucrânia.

Entretanto, canalizou milhões para contas no estrangeiro e adquiriu uma mansão de 34 milhões de dólares em Miami, bem como um apartamento de várias libras em Londres.

Em 2022, a NATO tinha armado a Ucrânia até aos dentes, e Kiev tinha forças reunidas perto do Donbass.

A Rússia tinha uma escolha: Deixar o Donbass enfrentar a limpeza étnica;

Deixe que a NATO transforme a Ucrânia numa base militar;

Ou, Intervir.

Intervieram, tal como outras nações fariam nessas situações.

A comunicação social relatou “invasão não provocada”. Mas a expansão da NATO, o golpe de 2014, oito anos de guerra no Donbass — esta guerra foi provocada a cada passo.

A Ucrânia foi colocada como um peão.

Com a derrota da Ucrânia, Zelenskyy está abandonado. Donald Trump disse-lhe: “Não tem as cartas.” Ele tem razão. Esta guerra foi planejada. A Ucrânia precisava da intervenção ocidental para vencer e isso significaria que a Terceira Guerra Mundial seria/poderia ser inevitável. 

É hora de o mundo acordar para essa realidade.

A guerra na Ucrânia foi provocada deliberadamente pelo Ocidente. Zelenskyy é apenas mais um fantoche – o seu tempo está a esgotar-se... e Trump sabe disso.

A questão é: você vê a verdade agora? Ou você ainda o vê como um herói?

2025 03 06

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Carlos Branco - O pacto com o diabo

 No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje.

Carlos Branco, Major-General
2025 03 06

O tema ganhou uma renovada acuidade quando o presidente Donald Trump apelidou o seu congénere ucraniano de ditador. Independentemente do rigor das palavras usadas por Trump importa perceber qual é a verdadeira natureza do regime presentemente instalado em Kiev. Segundo a Varities of Democracy, uma organização de elevada credibilidade académica, que estuda o tema dos regimes políticos a nível mundial, considera a Ucrânia uma autocracia eleitoral, portanto, longe de ser uma democracia plena. Embora não se pretenda com este artigo fazer incursões teóricas no domínio da ciência política, ele apresenta alguns factos que podem ajudar o leitor a fazer uma apreciação do tema mais informada.

Para uma melhor compreensão dos factos e com o intuito de facilitar a sua leitura e sistematização, consideraram-se neste trabalho quatro períodos distintos: desde a independência (1991) até à vitória de Viktor Yanukovych (2010); durante a presidência Yanukovych (2010 – 2014); desde o golpe de Maidan (2014) até à eleição de Zelensky (2019), e desde a eleição deste até aos dias de hoje. Por questões de parcimónia, iremos, fundamentalmente, concentrar-nos no último período.

O aparecimento na Ucrânia, à luz do dia, de organizações ultranacionalistas teve lugar no primeiro período, acelerando após a revolução laranja (2004) e a chegada ao poder de Viktor Yushchenko que, por exemplo, em 2006 reabilitou a organização nacionalista ucraniana OHH UN, responsável pela execução de cerca de 100 mil polacos e judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa sequência, em 2010, pouco antes de abandonar a presidência, Yushchenko concedeu o título de Herói da Ucrânia aos líderes da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) Stepan Bandera e Roman Shukhevych (22 de janeiro).

Durante a presidência de Yanukovych houve uma pausa nessa política de estado, com a anulação do título de herói da Ucrânia concedido por Yushchenko. Mas, isso não impediu que esses grupos continuassem a proliferar. Por exemplo, em 2013, nasce a Misanthropic Division, uma rede internacional neonazi cujo dirigente Dmytro Kanuper foi condecorado pelo parlamento dinamarquês, em 2024, como um combatente pela liberdade, o mesmo que tinha o Mein kampft como a sua leitura preferida; ou, a trasladação (21 de julho de 2013) por ativistas da organização ucraniana Pamiat (Memória) dos restos mortais de soldados ucranianos que combateram na Divisão SS “Galicia”.

O golpe de estado arquitetado pelos EUA no início de 2014 – numa audição no Congresso norte-americano, Vitória Nuland confessou terem sido gastos, desde 1991, cinco mil milhões de dólares em ações subversivas na Ucrânia – foi executado com a colaboração ativa destes grupos. Não é, por isso, de estranhar ver Oleg Tyanibok, um confesso nazi líder do Svoboda, uma organização de extrema-direita, impedido de entrar nos EUA devido às suas opções políticas, ser reabilitado e aparecer ao lado do falecido John McCain.

Em 2014 realizaram-se eleições presidenciais (25 de maio) e legislativas (25 de agosto). Nas primeiras concorreram 21 candidatos e nas segundas 29 partidos, num ambiente de grande hostilidade relativamente às forças não apoiantes do novo regime. O Partido das Regiões que tinha ganhado as eleições em 2010 não teve condições para concorrer às eleições legislativas, apesar de ter apresentado um candidato às presidenciais. O sistema marginalizou e absorveu os partidos pró-russos influentes. Nesse ambiente iniciaram-se as perseguições e o assédio a jornalistas e opositores ao regime.

Petr Poroshenko, presidente, entretanto, eleito, vem dizer, num tom “conciliador” que os “ucranianos terão empregos, eles [os russos] não; nós teremos pensões, eles não; as nossas crianças irão para as escolas e jardins de infância, as deles terão de se esconder em caves.” Iniciam-se os ataques indiscriminados às populações russófonas do Donbass por milícias ultranacionalistas, com a anuência do governo, recorrendo ao bombardeamento intensivo de áreas residenciais. Tornaram-se triviais as procissões destes grupos pela Avenida Moscow Prospect, redenominada Avenida Bandera Prospect, com archotes, em datas simbólicas.

Poroshenko toma medidas para diminuir a relevância social da língua russa e da Igreja Canónica Ortodoxa. Em 2017, foi aprovada uma lei que proibia o uso do russo no sistema de ensino. Em dezembro de 2018, foi criada a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (OCU), independente da igreja canónica ortodoxa, alinhada com Constantinopla, cujos sacerdotes não só subscrevem a ideologia dos setores politicamente mais radicais do espetro político ucraniano, como homenageiam publicamente colaboradores nazis, personagens como Stepan Bandera.

Neste período generalizaram-se as punições públicas extrajudiciais dos chamados marauders, uma forma de justiça popular, “em que pessoas são atadas a árvores e postes com fita-cola, com as calças ou saias baixadas e as nádegas fustigadas com chibatas e varas.” Estas práticas sociais passaram a ser dirigidas contra quem se suspeitasse ser russófilo. Bastava ser ouvido pela “polícia de costumes” a falar russo ao telemóvel. Em 2015, Poroshenko bane o partido comunista, do antecedente, uma força política com uma considerável influência na sociedade.

Em maio de 2019, Zelensky ganha as eleições e assume o poder com a promessa de resolver o problema das províncias rebeldes que dilacerava a sociedade ucraniana havia cinco anos e fazer a paz. Mas fez tudo ao contrário do que tinha prometido. Tendo chegado ao poder escudado num partido – “Servo do Povo” – com uma ideologia libertária, rapidamente se posicionou como um partido russo fóbico e pró-americano, navegando num pântano de contradições ideológicas que combinava ideias liberais, socialistas e nacionalistas.

A intervenção na Rada (27 de maio de 2019) de Dmytro Yarosh, fundador do Sector Direito e comandante do Exército Voluntário ilustra bem a importância dos referidos grupos na sociedade ucraniana, quando ameaçou Zelensky de morte se “traísse a Ucrânia”, ou seja, se tivesse a aleivosia de implementar os Acordos de Minsk (“que não eram para ser cumpridos, mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o Donbass e a Crimeia”).

Com a tomada de posse de Zelensky, acelera-se o processo de deterioração das liberdades cívicas iniciado no mandato do seu antecessor, particularmente no que respeita à promiscuidade entre Estado e grupos ultranacionalistas, que aumentam de protagonismo. Completamente alinhado ideologicamente com aqueles grupos, Zelensky vai aprofundar aquilo que Poroshenko tinha iniciado. Os oligarcas seguem-lhe o exemplo.

Um dos principais objetivos do presidente, ex-russo falante, é a completa eliminação da língua e cultura russa. Imediatamente após os protestos de Maidan, o Verkhovna Rada decidiu revogar a lei sobre os princípios da política linguística do Estado, que estava em vigor desde 2012. Em 2017, Poroshenko proíbe o ensino em russo, e a partir de janeiro de 2021, Zelensky dá outra machada na língua russa, ao proibir a sua utilização na administração do Estado.

Foram igualmente proibidos os livros escritos em russo, incluindo os clássicos da literatura russa. Zelensky ordenou a retirada de 100 milhões de livros de autores russos das bibliotecas da Ucrânia. Tolstoi, Pushkin, Dostoievski e Gorky, entre outros, foram proscritos. O mesmo sucedeu aos compositores russos. Tchaikovsky, Prokofiev, Shostakovich, Borodin, Glinka, Rimsky-Korsakov e muitos outros foram também banidos. Espetáculos e quaisquer outras manifestações culturais em língua russa foram igualmente proibidas. O inglês passou a ser a segunda língua na Ucrânia. As minorias húngaras e romenas, que tinham pretensões semelhantes à russa foram igualmente atingidas e objeto de discriminação.

No plano religioso, Zelensky foi mais além de Poroshenko e proibiu a igreja canónica ortodoxa (ICO). Foi penoso ver, em abril de 2023, o cerco ao Kiev Pechersk Lavra (KPL) e os correligionários da nova igreja ucraniana expulsarem os sacerdotes da ICO com a ajuda da polícia. De santuário de referência da ICO, o KPL passou a ser lugar de cerimónias pagãs e de encontros gastronómicos sem qualquer relação com a religião. Por toda a Ucrânia, os acólitos da nova igreja apoderaram-se dos santuários da ICO e expulsaram os seus sacerdotes.

Foi durante a vigência de Zelensky, que se realizaram os maiores ataques à liberdade de expressão no país. No dia 3 de fevereiro de 2021 foram banidos três canais de televisão (ZIK, News 1 e 112 Ukraine). No dia 20 de março de 2022, obedecendo às ordens de Zelensky, o Conselho de Defesa e Segurança Nacional da Ucrânia ilegalizou, de uma assentada, 11 partidos políticos por supostas ligações à Rússia. Viktor Medvedchuk, o líder da “Plataforma para a Vida”, o principal partido da oposição, que ocupava 44 lugares no parlamento ucraniano, foi colocado em prisão domiciliária.

Destino semelhante teve o presidente do supremo tribunal. O presidente do Tribunal Constitucional “ausentou-se” para parte incerta para não ter a mesma sorte. Até o antigo Presidente Poroshenko, um adversário político e inimigo de longa data de Zelensky, foi vítima da repressão política e da caça às bruxas “politicamente motivada” promovida por Zelensky, que o acusou de “alta traição” e de auxílio a organizações terroristas. É longa a lista de políticos, jornalistas e empresários mortos, sequestrados ou torturados durante a presidência de Zelensky. Um deles, é Oleksander Dubinskyi deputado na Rada, vítima de duas tentativas de assassinato e preso há mais de 15 meses por criticar a corrupção no país.

Em contrapartida, nenhuma das organizações neonazis foi ilegalizada. O nazismo e as insígnias fascistas normalizaram-se na sociedade e no seio das forças armadas. A suástica, o Sol negro e a caveira de Totenkopf vulgarizaram-se e tornaram-se moda. Zelensky publicou, sem qualquer pudor, fotografias destas insígnias nas suas contas das redes sociais.

A 13 de maio de 2023, Zelinsky visitou o Papa envergando uma camisola preta com o emblema da UNO, uma organização nacionalista ucraniana, e entregou-lhe um ícone com uma silhueta negra de Cristo ao colo da Virgem Maria, o que, de acordo com os cânones da Igreja Católica pode ser considerado satânico. A moda chegou também a outros domínios como monumentos, toponímia e filatelia, utilizados para exaltar figuras prominentes do movimento ucraniano bandeirista, responsável pela morte de judeus.

No dia 1 de março de 2022, de acordo com o decreto assinado por Zelensky, foi criada a “Legião Internacional de Defesa da Ucrânia” que passou a ser integrada na estrutura das Forças Armadas, cujo pessoal incluía mercenários, adeptos de ideias extremistas e terroristas de várias partes do mundo.

Zelensky aderiu e alimentou a fantasia, promovida pelos ultranacionalistas, de um estado mono étnico, monocultural e centralizado. A aprovação na Rada da lei racista e xenófoba sobre os povos indígenas” (13 de dezembro 2022) foi uma materialização desse desígnio. Inserido neste projeto, assiste-se a um movimento de revisionismo histórico com laivos fantasiosos e caricatos. Igor Tsar, autor do livro “Ucrânia – a pátria ancestral da humanidade”, vencedor do Prémio Stepan Bandera, publicado em Lvov alerta-nos para uma imensidão de “factos históricos” desconhecidos (foram as tribos arianas da Ucrânia que fundaram o Irão no 4º milénio a.C. e colonizaram a Palestina. A língua inglesa é proveniente da Ucrânia. Até Jesus era ucraniano).

Nesta análise sobre o regime ucraniano sob a tutela de Zelensky, não podíamos deixar de referir o envolvimento de Zelensky na corrupção que grassa no país, que se encontra devidamente documentada. No outono de 2021, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação publicou os chamados Pandora Papers, onde se incluíam dados das contas offshore de 35 líderes mundiais. Zelensky e os seus parceiros do estúdio Cartel 95 estavam entre eles.

Entre 2012 e 2016, foram transferidos 41 milhões de dólares para a empresa offshore de Zelensky. Num país normal teria sido preso. Uma das múltiplas mansões que tem por esse mundo fora encontrava-se na Crimeia, um erro que lhe custou caro. Foi expropriado e a mansão vendida em hasta pública, tendo o resultado da venda revertido para um fundo de ajuda a combatentes russos.

No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje. O “Guardian”, entre outros órgãos de referência da comunicação social, que antes do início da guerra em 2022 escrevia “bem-vindo à Ucrânia, o país mais corrupto da Europa”, passou depois a considerar que “A luta pela Ucrânia é a luta pelos ideais liberais.” A corajosa reportagem de Mariana Van Zeller sobre grupos neonazis na Ucrânia foi censurada e retirada do canal Disney. Quem desmonta esta e outras falácias (o tema está longe de se esgotar neste artigo) foi acusado de ser propagandista do Kremlin.

O branqueamento do regime instaurado em 2014 é feito com base em dois argumentos: se o regime tivesse a filiação ideológica de que é acusado não teria um presidente judeu; os neonazis não têm expressão eleitoral significativa, por isso o regime é democrático. As questões devem, no entanto, ser colocadas de outro modo. Seria insuportável para as democracias europeias admitirem que estão a apoiar um regime que permite a proliferação da ideologia nazi e protege organizações neonazis.

Por outro lado, omite-se o facto de que muitos desses partidos/grupos ultranacionalistas não concorreram às eleições, e menospreza-se deliberadamente a sua influência na sociedade, sobretudo nas forças militares e de segurança, consolidada no rescaldo do golpe de Maidan. O facto da Ucrânia ter servido de tirocínio de combate a vários grupos neonazis europeus está superlativamente documentado em língua portuguesa (aqui (cap.IV) e aqui).

A farsa completa-se quando Zelensky participou nas comemorações do 80º aniversário da libertação do campo de extermínio nazi de Auschwitz, ou se ajoelha no memorial de Babyn Yar, em Kiev, não obstante a sua adesão incondicional à exaltação histórica dos bandeiristas, os mesmos que perpetraram o massacre lembrado por aquele memorial.

Não podemos deixar de nos questionar sobre a complacência e promiscuidade do Ocidente com as forças neonazis que proliferam na Ucrânia, porque é que se omitiu essa realidade e se tornou um tabu a partir de fevereiro de 2024, apesar de denunciada antes, com o conluio da comunicação social. Os exemplos são gritantes, e são muitos. Os aplausos em pé no parlamento canadiano a Yaroslav Hunka, que durante a Segunda Guerra Mundial serviu na 14ª Divisão de Granadeiros da Waffen-SS, considerado um “herói” durante a visita do Presidente Zelensky. Por terem sido vítimas da brutalidade destes grupos, os polacos são uma exceção a este unanimismo.
  
Pelo exposto, pode concluir-se que Donald Trump não anda afinal muito longe da verdade. Pelo andamento da carruagem, não se admire o leitor se um dia acordar e perceber que andou três anos a ser enganado. A possibilidade de isso acontecer já esteve mais distante.

https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/o-pacto-com-o-diabo/?fbclid=IwY2xjawI2aU5leHRuA2FlbQIxMQABHf13H1DZICT84exe4XVofi81IqaykaYaXyrxOBk3B_P5HjLHJeJR3w214w_aem_d96DFPD0psdSB2Dt4p1MTA

quarta-feira, 5 de março de 2025

Jonathan Cook - Sim, Trump é ordinário. Mas a extorsão global dos EUA é a mesma de sempre

*  Jonathan Cook, MEE.

Se há uma coisa pela qual podemos agradecer ao Presidente dos EUA, Donald Trump, é esta: ele eliminou de forma decisiva a noção ridícula, há muito cultivada pelos media ocidentais, de que os EUA são um bom polícia global que impõe uma "ordem baseada em regras". Washington é melhor entendido como o chefe de um império de gangsters, com 800 bases militares em todo o mundo. Desde o fim da Guerra Fria, tem procurado agressivamente o "domínio global de espetro total", como define a doutrina do Pentágono educadamente.

Ou se presta fidelidade ao Don ou se é atirado ao rio. Na sexta-feira passada [28fev2025], o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi presenteado com um par de botas de betão de marca na Casa Branca. A novidade foi que tudo aconteceu em frente ao corpo de imprensa ocidental, na Sala Oval, e não numa sala das traseiras, fora das vistas. Foi ótimo para a televisão, disse Trump.

Os especialistas apressaram-se a tranquilizar-nos, dizendo que a cena de gritos foi uma espécie de número estranho de Trump. Como se a inospitalidade para com os líderes de Estado e o desrespeito para com os países que lideram fossem exclusivos desta administração. Veja-se apenas o exemplo do Iraque. A administração de Bill Clinton achou que "valia a pena" - como disse a sua secretária de Estado, Madeleine Albright, de forma infame - matar cerca de meio milhão de crianças iraquianas, impondo sanções draconianas durante a década de 1990. Sob o comando do sucessor de Clinton, George W Bush, os EUA desencadearam uma guerra ilegal em 2003, com base em argumentos totalmente falsos, que matou cerca de meio milhão de iraquianos, de acordo com as estimativas pós-guerra, e deixou quatro milhões de desalojados.

Aqueles que se preocupam com o facto de a Casa Branca humilhar publicamente Zelensky talvez devessem guardar a sua preocupação para as centenas de milhar de homens, na sua maioria ucranianos e russos, mortos ou feridos numa guerra totalmente desnecessária - uma guerra que, como veremos, Washington planeou cuidadosamente através da NATO nas duas décadas anteriores.

Capanga Zelensky

Todas essas baixas serviram o mesmo objetivo que no Iraque: lembrar ao mundo quem é que manda. Só que o público ocidental não compreende isto porque vive dentro de uma bolha de desinformação, criada para ele pelos media ocidentais.

Henry Kissinger, o antigo diretor da política externa dos EUA, afirmou: "Pode ser perigoso ser inimigo da América, mas ser amigo da América é fatal." Zelensky acabou de descobrir isso da maneira mais difícil. Os impérios de gangsters são tão inconstantes como os gangsters que conhecemos dos filmes de Hollywood. Durante a anterior administração de Joe Biden, Zelensky tinha sido recrutado como um capanga para fazer as vontades de Washington à porta de Moscovo. O pano de fundo - aquele que os media ocidentais mantiveram em grande parte fora de vista - é que, após o colapso da União Soviética, os EUA rasgaram tratados cruciais para tranquilizar a Rússia quanto às boas intenções da NATO. Do ponto de vista de Moscovo, e tendo em conta o historial de Washington, o guarda-chuva de segurança europeu da NATO deve ter parecido mais uma preparação para uma emboscada.

Embora Trump esteja agora empenhado em reescrever a história e apresentar-se como pacificador, ele foi fundamental para a escalada de tensões que levou à invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022. Em 2019, ele retirou-se unilateralmente do Tratado de 1987 sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio. Isso abriu a porta para que os EUA lançassem um potencial primeiro ataque contra a Rússia, usando mísseis estacionados nas proximidades dos membros da NATO, Roménia e Polónia. Também enviou armas anti-tanque Javelin para a Ucrânia, uma medida evitada pelo seu antecessor, Barack Obama, por recear que fosse vista como uma provocação.

A NATO prometeu repetidamente trazer a Ucrânia para o seu seio, apesar dos avisos da Rússia de que esse passo era visto como uma ameaça existencial, de que Moscovo não podia permitir que Washington colocasse mísseis na sua fronteira, tal como os EUA não aceitaram os mísseis soviéticos estacionados em Cuba no início da década de 1960. Washington avançou na mesma, chegando mesmo a apoiar um golpe ao estilo da revolução colorida em 2014 contra o governo eleito em Kiev, cujo crime foi ser demasiado simpático a Moscovo.

Com o país em crise, Zelensky foi eleito pelos ucranianos como candidato da paz, para pôr fim a uma guerra civil brutal - desencadeada por esse golpe - entre forças anti-russas e "nacionalistas" no oeste do país e populações de etnia russa no leste. O Presidente ucraniano quebrou rapidamente essa promessa.

Trump acusou Zelensky de ser um "ditador". Mas se o é, é apenas porque Washington assim o quis, ignorando a vontade da maioria dos ucranianos.

A mais vermelha das linhas vermelhas

A função de Zelensky era fazer um jogo da galinha com Moscovo. O pressuposto era que os EUA ganhariam qualquer que fosse o resultado. Ou o bluff do Presidente russo, Vladimir Putin, seria desfeito. A Ucrânia seria acolhida na NATO, tornando-se a mais avançada das bases avançadas da aliança contra a Rússia, permitindo que mísseis balísticos com armas nucleares ficassem estacionados a minutos de Moscovo. Ou então Putin iria finalmente concretizar as suas ameaças de anos de invasão do seu vizinho para impedir que a NATO ultrapassasse a mais vermelha das linhas vermelhas que ele tinha estabelecido sobre a Ucrânia.

Washington poderia então alegar "auto-defesa" em nome da Ucrânia, e ridiculamente simular receio perante o público ocidental de que Putin estaria a seguir a Polónia, a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha. Foram estes os pretextos para armar Kiev ao máximo, em vez de procurar um acordo de paz rápido. E assim começou uma guerra de atrito por procuração contra a Rússia, utilizando homens ucranianos como carne para canhão. O objetivo era desgastar a Rússia militar e economicamente, e provocar o derrube de Putin.

Zelensky fez exatamente o que lhe foi pedido. Quando, no início, pareceu vacilar e considerou assinar um acordo de paz com Moscovo, o primeiro-ministro britânico da altura, Boris Johnson, foi despachado com uma mensagem de Washington: continuem a lutar. Este é o mesmo Boris Johnson que agora admite, sem qualquer problema, que o Ocidente está a travar uma "guerra por procuração" contra a Rússia. Os seus comentários não geraram qualquer polémica. O que é muito estranho, uma vez que os críticos que chamaram a atenção para este facto óbvio há três anos foram imediatamente denunciados por espalharem "desinformação sobre Putin" e "pontos de discussão" do Kremlin.

Pela sua obediência, Zelensky foi festejado como um herói, o defensor da Europa contra o imperialismo russo. Todas as suas "exigências" - exigências que tiveram origem em Washington - foram satisfeitas. A Ucrânia recebeu pelo menos 250 mil milhões de dólares em armas, tanques, jatos de combate, treino para as suas tropas, informações ocidentais sobre a Rússia e outras formas de ajuda. Entretanto, centenas de milhares de homens ucranianos e russos pagaram com as suas vidas - tal como as famílias que deixaram para trás.

Etiqueta da máfia

Agora o velho Don em Washington foi-se embora. O novo Don decidiu que Zelensky foi um fracasso caro. A Rússia não está ferida de morte. Está mais forte do que nunca. É hora de uma nova estratégia. Zelensky, imaginando ainda ser o capanga favorito de Washington, chegou à Sala Oval apenas para receber uma dura lição de etiqueta mafiosa.

Trump está a interpretar a sua punhalada nas costas como um "acordo de paz". E, em certo sentido, é-o. Com razão, Trump concluiu que a Rússia ganhou - a menos que o Ocidente esteja pronto para travar a Terceira Guerra Mundial e arriscar uma potencial guerra nuclear. Trump enfrentou a realidade da situação, mesmo que Zelensky e a Europa ainda estejam a lutar para o fazer.

Mas o seu plano para a Ucrânia é, na verdade, apenas uma variação do seu outro plano de paz - o de Gaza. Ali, quer limpar etnicamente a população palestiniana e, sobre os corpos dos muitos milhares de crianças mortas no enclave, construir a "Riviera do Médio Oriente" - ou "Trump Gaza", como lhe chamam num vídeo surrealista que partilhou nas redes sociais. Da mesma forma, Trump vê agora a Ucrânia não como um campo de batalha militar, mas como um campo económico onde, através de acordos inteligentes, pode obter riquezas para si e para os seus amigos bilionários.

Ele apontou uma arma à cabeça de Zelensky e da Europa. Façam um acordo com a Rússia para acabar com a guerra, ou estão por vossa conta contra uma potência militar muito superior. Vejam se os europeus podem ajudar-vos sem um fornecimento de armas de Washington.

Não surpreende que Zelensky, o primeiro-ministro britânico Keir Starmer e o presidente francês Emmanuel Macron se tenham reunido no fim de semana para encontrar um acordo que apaziguasse Trump. Tudo o que Starmer revelou até agora é que o plano vai "parar os combates". Isso é positivo. Mas os combates podiam ter sido travados, e deviam ter sido travados, há três anos.

Dinheiro, não paz

É profundamente insensato deixarmo-nos embalar pelo tribalismo - o mesmo tribalismo que as elites ocidentais procuram cultivar entre os seus públicos para que continuemos a tratar os assuntos internacionais como se fossem um jogo de futebol de alto risco. Ninguém aqui se comportou, ou está a comportar-se, de forma honrada.

O cessar-fogo na Ucrânia não é uma questão de paz. É uma questão de dinheiro, tal como foi a guerra anterior. Como todas as guerras são, em última análise. Um cessar-fogo aceitável para Trump, bem como para Putin, envolverá uma divisão dos bens da Ucrânia. Os minerais de terras raras, a terra e a produção agrícola serão a verdadeira moeda de troca do acordo. Zelensky compreende agora este facto. Ele sabe que ele e o povo da Ucrânia foram enganados. É o que tende a acontecer quando nos aconchegamos à máfia. Se alguém duvida da insinceridade de Washington em relação à Ucrânia, que olhe para a Palestina para ficar esclarecido.

No início da sua presidência, Trump tentou concretizar aquilo a que chamou o "acordo de paz do século", cuja peça central era a anexação de grande parte da Cisjordânia ocupada. A esperança era que os Estados do Golfo acabassem por financiar um programa de incentivo - a cenoura para o pau de Israel - para encorajar os palestinianos a fazer uma nova vida numa gigantesca zona industrial construída para o efeito no Sinai, junto a Gaza. Esse plano ainda está a fervilhar nos bastidores. No fim de semana, Israel recebeu luz verde de Washington para reavivar a sua fome genocida da população de Gaza, depois de Israel se ter recusado a negociar a segunda fase do acordo de cessar-fogo original. A administração Trump e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, estão agora a fazer passar a sua própria má fé por "rejeição" do Hamas.

Eles e a câmara de eco que são os media ocidentais estão a culpar o grupo palestiniano por se recusar a ser enganado numa "extensão" do que nunca passou de um falso cessar-fogo - o fogo de Israel nunca cessou. Israel quer todos os reféns de volta, sem ter de sair de Gaza, para que o Hamas não tenha qualquer influência para impedir Israel de reativar o genocídio total.

O povo de Gaza continua a ser alimentado no moinho de carne da máfia de Washington, tal como o povo ucraniano tem sido. Trump quer tirá-los do caminho para poder desenvolver um parque de diversões mediterrânico para os ricos, pago com o dinheiro do petróleo do Golfo e com as reservas de gás natural, até agora inexploradas, ao largo da costa de Gaza. Ao contrário dos seus antecessores, Trump não finge que a Ucrânia e Gaza são mais do que bens imobiliários geoestratégicos para Washington.

O grande abalo

A extorsão de Zelensky não surgiu do nada. Trump e os seus funcionários tinham-na assinalado com bastante antecedência. Há duas semanas, o correspondente industrial do jornal britânico Daily Telegraph escreveu um artigo intitulado "Eis porque Trump quer fazer da Ucrânia uma colónia económica dos EUA". A equipa de Trump acredita que a Ucrânia pode ter minerais de terras raras debaixo do solo no valor de cerca de 15 biliões de dólares - um tesouro que será fundamental para o desenvolvimento da próxima geração de tecnologia. Na sua opinião, o controlo da exploração e extração desses minerais será tão importante como o controlo das reservas de petróleo do Médio Oriente foi há mais de um século.

E o mais importante de tudo é que os EUA querem que a China, o seu principal rival económico - se não mesmo militar - seja excluída da pilhagem. A China detém atualmente o monopólio efetivo de muitos destes minerais críticos. Ou, como diz o Telegraph, os "minerais da Ucrânia oferecem uma promessa tentadora: a possibilidade de os EUA quebrarem a sua dependência dos fornecimentos chineses de minerais críticos que são utilizados em tudo, desde turbinas eólicas a iPhones e caças furtivos". Um rascunho do plano visto pelo Telegraph, nas suas palavras, "equivaleria à colonização económica da Ucrânia pelos EUA, com perpetuidade legal". Washington quer ter preferência em todos os depósitos no país.

No seu confronto na Sala Oval, Trump reiterou este objetivo: "Por isso, vamos utilizá-los [os minerais de terras raras da Ucrânia], tirá-los e utilizá-los para todas as coisas que fazemos, incluindo a IA, as armas e as forças armadas. E isso vai realmente satisfazer as nossas necessidades". Tudo isto significa que Trump tem um grande incentivo para que a guerra termine o mais rapidamente possível e para que o avanço territorial da Rússia seja travado. Quanto mais território Moscovo conquistar, menos território restará para os EUA pilharem.

Auto-sabotagem

A batalha contra a China por causa dos minerais de terras raras também não é uma inovação de Trump - e acrescenta uma camada adicional de contexto para explicar por que razão Washington e a NATO têm estado tão empenhados, nas últimas duas décadas, em afastar a Ucrânia da Rússia.

No verão passado, uma comissão restrita do Congresso sobre a concorrência com a China anunciou a formação de um grupo de trabalho para contrariar o "domínio de minerais críticos" de Pequim.

O presidente da comissão, John Moolenaar, observou que a atual dependência dos EUA em relação à China para estes minerais "tornar-se-ia rapidamente uma vulnerabilidade existencial no caso de um conflito". Outro membro da comissão, Rob Wittman, observou: "O domínio das cadeias de abastecimento mundiais de minerais críticos e de elementos de terras raras é a próxima fase da competição entre grandes potências".

O que Trump parece apreciar é o facto de a guerra por procuração da NATO contra a Rússia na Ucrânia ter, por defeito, levado Moscovo a aproximar-se ainda mais de Pequim. Tem sido uma auto-sabotagem em grande escala. Juntos, a China e a Rússia são um adversário formidável, que está no centro do crescente grupo Brics - composto pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Têm procurado expandir a sua aliança, acrescentando potências emergentes, para se tornarem um contrapeso à agenda global intimidatória de Washington e da NATO.

Mas um acordo com Putin sobre a Ucrânia daria a Washington a oportunidade de construir uma nova arquitetura de segurança na Europa - mais útil para os EUA - que colocasse a Rússia dentro da tenda e não fora dela. Isso deixaria a China isolada - um objetivo de longa data do Pentágono. E também deixaria a Europa menos central para a projeção do poder dos EUA, razão pela qual os líderes europeus - liderados por Keir Starmer - têm parecido e soado tão nervosos nas últimas semanas.

O perigo é que a "pacificação" de Trump na Ucrânia se torne simplesmente um prelúdio para o desenvolvimento de uma guerra contra a China, usando Taiwan como pretexto, da mesma forma que a Ucrânia foi usada contra a Rússia. Como Moolenaar sugeriu, o controlo dos EUA sobre minerais críticos - na Ucrânia e noutros locais - garantiria que os EUA deixariam de ser vulneráveis, no caso de uma guerra com a China, a perder o acesso aos minerais de que necessitariam para continuar a guerra. Isso libertaria a mão de Washington.

Trump pode estar a comportar-se de uma forma ordinária. Mas o império de gangsters que ele agora dirige está a liderar a mesma extorso global de sempre.

Posted by OLima at quarta-feira, março 05, 2025  

https://onda7.blogspot.com/2025/03/leituras-marginais_01749339301.html

segunda-feira, 3 de março de 2025

Ron Garan e o “Efeito da Visão Geral”



Astronauta que passou 178 dias no espaço revela "grande mentira" que percebeu ao ver a Terra.

Ron Garan, ex-astronauta da NASA, passou 178 dias no espaço e acumulou mais de 114 milhões de quilômetros viajando em 2.842 órbitas ao redor da Terra. Sua jornada, no entanto, não foi apenas sobre números impressionantes. Durante uma dessas viagens, ele experimentou algo que poucos humanos já vivenciaram: o chamado Overview Effect, um fenômeno que transforma a maneira como enxergamos nosso planeta.

O Overview Effect — ou “Efeito da Visão Geral” — é um choque de realidade comum entre astronautas. Ao observar a Terra do espaço, eles percebem, de forma visceral, que o planeta é um sistema único, frágil e interconectado. Para Garan, essa experiência foi tão marcante que ele a descreve como um “grande despertar”. Em entrevista ao site Big Think, ele revelou: “Certas coisas se tornam inegavelmente claras quando você está lá em cima”.

De sua janela na Estação Espacial Internacional, Garan testemunhou fenômenos naturais de tirar o fôlego: tempestades com relâmpagos que pareciam flashes de paparazzi, auroras boreais dançando como cortinas brilhantes e a atmosfera terrestre, tão fina que “dava para quase tocar com as mãos”. Mas foi a finura dessa camada que o deixou em alerta. “Percebi que tudo o que mantém a vida na Terra depende de uma camada frágil, quase como papel”, explicou.

A atmosfera, com seus poucos quilômetros de espessura, é o que protege todas as formas de vida das condições hostis do espaço. Para Garan, essa visão evidenciou um paradoxo: enquanto a biosfera é vibrante e cheia de vida, os sistemas humanos tratam o planeta como um “subsidiário da economia global”. Em outras palavras, priorizamos o crescimento econômico em detrimento dos sistemas naturais que nos sustentam. “Estamos vivendo uma mentira”, afirmou.

O astronauta também destacou como problemas como aquecimento global, desmatamento e perda de biodiversidade são tratados como questões isoladas, quando, na verdade, são sintomas de um problema maior: a desconexão humana com o planeta. “Do espaço, fica claro que não nos vemos como parte de um todo. Enquanto não mudarmos essa mentalidade, continuaremos em crise”, disse.

A solução, segundo Garan, está em uma mudança radical de prioridades. Em vez de pensar em “economia, sociedade, planeta”, devemos inverter a ordem: “planeta, sociedade, economia”. Essa simples troca reflete a necessidade de colocar a saúde do meio ambiente como base para todas as outras decisões. “Só assim evoluiremos de verdade”, argumentou.

Outro ponto crucial é a interdependência. Garan comparou o Overview Effect a “uma lâmpada que se acende” — uma epifania sobre como cada ação humana, por menor que pareça, afeta o equilíbrio global. “Não teremos paz na Terra até reconhecermos que tudo está interligado”, afirmou.

Desde que retornou à Terra, Garan dedica-se a projetos que promovem sustentabilidade e cooperação global. Sua mensagem é clara: precisamos urgentemente repensar nosso lugar no mundo. E você, já parou para imaginar como seria ver a Terra dessa perspectiva? Enquanto isso não acontece, a visão de Garan nos lembra que cada escolha — do consumo de energia ao uso de recursos — é um passo para preservar (ou destruir) essa “casca” delicada que chamamos de lar."  

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José Simões - As coisas como elas foram, as coisas como elas são


* josé simões

António Costa, por ter menos de 41 mil euros no banco e por isso estar dispensado de declarar qualquer conta à ordem, foi alvo de uma ataque cerrado da parte de ilustres - anteriormente conhecidos por "barões, comentadeiros, conhecidos e anónimos do PSD. Um fartote nas redes.

Luís Montenegro usou cinco contas distintas, todas abaixo dos 41 mil euros, para comprar uma casa no valor de 116 mil euros, o silêncio total. Se calhar ainda é elogiado pela "engenharia financeira."

 

O Ministério Público, que avançou com uma investigação a Mariana Mortágua por alegadamente violar o regime de exclusividade pelos escritos que publicava num jornal, nunca ouviu falar da chico-espertice que é Luís Montenegro receber avenças de entidades privadas enquanto primeiro-ministro de uma empresa que não era dele por ter vendido a quota à mulher com quem vive em comunhão de adquirido.

 

Marcelo, que aparecia a cada 5 minutos em todos os telejornais para comentar todos os assuntos da governação em temas onde nem sequer o ministro da tutela aparecia e que achou gravíssimo um assessor ter atropelado um vidro no ministério com uma bicicleta, acha agora natural Luís Montenegro ter na folha o pagamento de várias empresas para a sua morada e número de telemóvel.

 

Luís Marques Mendes, o candidato presidencial de Luís Montenegro, na calha para suceder a Marcelo, que enquanto comentadeiro na televisão do militante n.º 1 do PSD nunca se coibiu de surfar e amplificar a onda anti-Costa com origem na Santa à Lapa, agora acha uma irresponsabilidade a queda de um governo minoritário por causa do PRR e da "incerteza europeia e mundial", questões que não se colocavam ao governo de maioria absoluta PS, sem PRR para executar e sem guerra na Ucrânia, só certezas.

 

Marcelo, que na falta de tocar às campainhas andava feito criança pelo beco dos Távoras, pela máquina multibanco na Rua de Belém, a calcetar a esquina dos pasteis de Belém com os calcanhares, fez saber à televisão do militante n.º 1 que está irritadíssimo com Luís Montenegro, não pelas trafulhices que todos os dias vêm a público mas por não lhe ter comunicado que ia falar ao país. O nome do meio de Marcelo é Cardinali.

 2025 03 03

[Imagem retirada do site do PSD]

 https://derterrorist.blogs.sapo.pt/as-coisas-como-elas-foram-as-coisas-6266539

domingo, 2 de março de 2025

Prabhat Patnaik - A estratégia de renascimento do imperialismo


– Se Biden empurrou o imperialismo para um canto, a saída de Trump desse canto só o levará a ser empurrado para outro canto.

Prabhat Patnaik [*]


A política externa de Donald Trump deixou os comentadores num verdadeiro alvoroço. As suas posições marcadamente diferentes em relação à Ucrânia e a Gaza, no primeiro caso aparentemente em busca da paz, e no segundo a pedir a limpeza étnica de toda uma população, deixaram-nos a pensar se a sua influência nos assuntos mundiais é “positiva” ou não. No entanto, a razão de tal perplexidade não reside em nada do que Trump fez, mas sim no desconhecimento do fenómeno do imperialismo. Não restam dúvidas de que o imperialismo ocidental, liderado pelos EUA, se viu encurralado num canto, onde a escolha era entre uma escalada desastrosa da guerra na Ucrânia, até ao ponto de um confronto nuclear, ou uma erosão gradual da hegemonia imperialista. Donald Trump está a tentar libertar o imperialismo de uma esquina tão impossivelmente complicada. A questão não é se ele é “pela paz” ou “pela guerra” ou se tem em conta os interesses europeus ou não; a questão é que ele está a seguir uma estratégia imperialista alternativa que salvaria o imperialismo deste beco sem saída, e está em posição de o fazer porque não está contaminado pela política anterior que criou este beco sem saída .

O seu método para reafirmar a hegemonia imperialista que estava a ser gradualmente corroída é uma combinação de cenoura e pau. O pressuposto básico subjacente à provocação que deu origem à guerra na Ucrânia, nomeadamente que a Rússia poderia ser levada a render-se aos ditames ocidentais em resultado dessa provocação, provou ser falso. Não só a Ucrânia tem perdido terreno de forma constante durante a guerra, como as sanções económicas contra a Rússia, que supostamente iriam “reduzir o rublo a escombros”, foram totalmente contraproducentes. O rublo, após uma breve queda temporária, recuperou para um nível face ao dólar que era ainda mais elevado do que antes das sanções e, além disso, estas sanções produziram uma reação em que um desafio à hegemonia do dólar passou a estar na ordem do dia.

A cimeira de Kazan dos países BRICS colocou a “desdolarização” como uma possibilidade séria. As sanções imperialistas unilaterais, desde que dirigidas contra um pequeno número de países, podem ser bastante eficazes; mas quando visam um grande número de países e também países tão grandes, tão desenvolvidos e tão ricos em recursos como a Rússia, não só perdem a sua eficácia como sanções, como encorajam a formação de um bloco de países contra todo o arranjo imperial dominante que passa por ordem económica internacional, e esta alternativa tende a atrair para o seu seio mesmo países não sancionados.

É exatamente isto que tem acontecido e que Trump enfrentou quando chegou ao cargo. A parte do pau do seu método cenoura e pau é bem conhecida. Ameaçou impor tarifas pesadas contra os países que aderissem à desdolarização, o que é um ato imperialista flagrante e contra todas as regras do jogo capitalista; afinal de contas, qualquer país, de acordo com estas regras, tem a liberdade de negociar na moeda que quiser, desde que o seu parceiro comercial esteja disposto a isso, e também de deter a sua riqueza na moeda que desejar. Limitar essa liberdade através da imposição de tarifas elevadas contra esse país é uma manobra de braço de ferro flagrante que nenhuma ordem internacional pode apoiar explicitamente; mas Trump, como imperialista aberto e implacável, não teve quaisquer escrúpulos em exercer essa coerção económica de forma bastante explícita.

A sua tentativa de pôr fim à guerra na Ucrânia é a cenoura deste método de cenoura e pau. Em vez de se formar um bloco de poder alternativo contra os EUA e contra o imperialismo ocidental em geral, o fim desta guerra em termos que não sejam desfavoráveis à Rússia mante-la-á fora de qualquer bloco alternativo. Deste modo, prejudicará as tentativas em curso de desafiar a hegemonia imperialista.

É claro que qualquer fim para a guerra da Ucrânia baseado em negociações deve ser bem recebido por todos, mas ver esse fim como o resultado de um desejo de paz, ou como a busca dos interesses dos EUA à custa das “preocupações de segurança” europeias, é totalmente erróneo. Trump não está numa missão de paz, caso contrário não teria feito os comentários absolutamente beligerantes sobre Gaza. De facto, o capitalismo é, pela sua própria natureza, contra a paz:   como o socialista francês Jean Jaures observou de modo memorável, “o capitalismo transporta a guerra dentro de si, tal como as nuvens transportam a chuva”. O que motiva Trump é o desejo de colocar a hegemonia imperialista em melhores condições e não um desejo de paz. Da mesma forma, a questão da segurança europeia é uma completa pista falsa:   A segurança europeia nunca foi ameaçada pela Rússia, e toda a conversa sobre a ameaça de um “imperialismo russo” invadir a Europa foi apenas uma desculpa para justificar o expansionismo da NATO. Por isso, não há qualquer dúvida de que a segurança europeia está a ser prejudicada pela iniciativa de paz de Trump.

A diferença de Trump em relação às cliques dominantes europeias surge devido a duas estratégias alternativas diferentes que o imperialismo pode seguir atualmente. Uma é a velha estratégia de Biden de agressão contra a Rússia, que chegou a um beco sem saída; e a outra é uma estratégia alternativa de acabar com a guerra da Ucrânia e afastar a Rússia de um bloco de oposição contra a hegemonia do imperialismo ocidental. Os governantes europeus estão agarrados à primeira, enquanto Trump está a tentar a segunda. Temos de ver a oposição do [partido] AfD neonazi na Alemanha à guerra da Ucrânia exatamente nos mesmos termos:   a sua extrema agressividade em relação à Palestina, em contraste com o seu desejo de pôr fim à guerra da Ucrânia, não é sintomática nem de um desejo geral de paz nem de uma despreocupação com a “segurança europeia”, mas de uma certa posição estratégica.

É claro que o projeto de Trump de libertar o imperialismo do canto para onde foi empurrado é simultaneamente um projeto de afirmação da hegemonia dos EUA sobre o bloco imperialista como um todo. O seu slogan “Make America Great Again” é um projeto de recriação de um mundo inquestionavelmente dominado pelo imperialismo ocidental, com os EUA como seu líder inquestionável. Neste sentido, é uma continuação da estratégia de tornar a Europa dependente das fontes de energia americanas, que foi representada pela explosão do gasoduto Nord Stream II da Rússia para a Europa, alegadamente pelo “Estado Profundo” dos EUA.

Há, no entanto, uma grande contradição na estratégia de Trump. Há um preço a ser pago pela “liderança” do mundo capitalista – e Trump quer um papel de “liderança” para os EUA sem pagar esse preço. O preço é o seguinte:   o “líder” deve tolerar défices comerciais em relação a outras grandes potências capitalistas, a fim de acomodar as suas ambições e impedir que o mundo capitalista como um todo se afunde numa crise. Foi isso que a Grã-Bretanha fez durante os anos da sua “liderança” e é isso que os EUA têm feito no período mais recente. O facto de a Grã-Bretanha ter um défice comercial em relação à Europa Continental e aos EUA, que eram as outras grandes potências da época, não a prejudicou, porque equilibrou esse défice, entre outras coisas, reivindicando um excedente de rendimentos invisíveis em relação ao seu império colonial, a maior parte do qual era um excedente inventado, contra o qual extraiu um “dreno” dessas colónias de conquista, com o qual liquidou o seu défice com outras grandes potências capitalistas.

No entanto, os EUA do pós-guerra não se encontram numa posição “afortunada” semelhante; o facto de terem um défice comercial em relação a outras grandes potências fê-los afundarem-se cada vez mais em dívidas. A sua tentativa de evitar um endividamento ainda mais profundo – que faz parte do projeto “Make America Great Again” de Trump e para o qual ele está em vias de impor tarifas contra todos os seus parceiros comerciais, numa situação em que a procura global na economia mundial capitalista não está a expandir-se devido à pressão do capital financeiro globalizado para evitar défices orçamentais e a tributação dos ricos em favor do aumento da despesa pública em todo o lado – só irá acentuar a crise capitalista mundial, com um fardo particularmente pesado a recair sobre o mundo capitalista não americano.

A estratégia de Trump para o renascimento do imperialismo equivale, portanto, a ter o bolo e comê-lo também. A sua tentativa de afirmar a liderança dos EUA ao mesmo tempo que procura impor tarifas a outros equivale a uma política de “mendigar ao vizinho” em relação ao resto do mundo. Tal política de “mendigar ao vizinho”, que equivale a assegurar o crescimento para si próprio arrebatando mercados aos outros, é fundamentalmente inimiga do projeto de reafirmação da hegemonia imperialista. Se Biden empurrou o imperialismo para um canto, a saída de Trump desse canto só o levará a ser empurrado para outro canto.
  
02/Março/2025
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2025/0302_pd/imperialism’s-revival-strategy
https://resistir.info/patnaik/patnaik_02mar25.html