sábado, 8 de março de 2025

Viriato Soromenho-Marques - PORTUGAL À DERIVA NA TEMPESTADE – quatro notas de leitura

Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa L. Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer.

* Viriato Soromenho-Marques


As grandes crises revelam os grandes líderes. Contudo, apenas quando os povos têm a sorte e a capacidade de os produzirem. A guerra da Ucrânia, que já entrou no seu quarto ano é, sem dúvida, a maior crise existencial de toda a história portuguesa, pois é a primeira vez que Portugal tem um governo que se deixou, com entusiástica estultícia, enrolar num confronto com a Rússia, totalmente contrário ao interesse nacional mais elementar, o salus populi suprema lex esto (seja a salvação do povo a lei suprema), imortalizado no De Legibus, de Cícero. Nem os fanáticos que queriam declarar guerra ao império britânico, na sequência do Ultimato de 1890, nem o furioso Afonso Costa, colocando Lisboa a ferro e fogo em maio de 1915 para enviar, por decisão unilateral, milhares de soldados analfabetos para a Flandres, se comparam à façanha do mesquinho consenso nacional que vai de António Costa a Rui Tavares, numa contemporânea demonstração da veracidade da tese de Unamuno que considerava ser Portugal um país de suicidas. O que continua em causa é a possibilidade de Portugal ser destruído num conflito total com a Rússia, o país com o mais poderoso e moderno arsenal nuclear do planeta.

Estamos a falar de acontecimentos vertiginosos, desde a chegada de Trump à Casa Branca. Vejamos, apenas, alguns das dimensões mais permanentes, neste quadro de incerta mudança.

Primeira. As negociações de paz, iniciadas por Trump com a Rússia, são boas notícias para os povos da Europa e do mundo. Afastam, pelo menos provisoriamente, o pior cenário, para onde estaríamos a rumar caso a linha de escalada bélica seguida por Biden tivesse prosseguido. Essas negociações, onde nem Zelensky nem a UE contam, revelam a justeza dos analistas, entre os quais me encontro desde sempre, que consideraram esta guerra como uma guerra de procuração (proxy war) dos EUA contra a Rússia, usando o território e o sangue ucranianos como instrumentos. Bruxelas protesta, porque Trump deixou cair o véu de Maia, a cortina ilusória, que fazia do apoio da UE à Ucrânia um assunto de direito internacional. Na verdade, tratava-se da prova de que os nossos governantes europeus não hesitam em sacrificar a qualidade de vida e a segurança dos seus povos, para servirem o império americano, e o seu desígnio persistente de fragmentar a Rússia. O caso mais aberrante de autoflagelação europeia é o da Alemanha, quando o governo de Scholz tudo fez para manter a lealdade canina com Washington, imolando para isso a qualidade de vida e a saúde económica do seu próprio país.

Segunda. As perspetivas de “paz imperfeita”, mil vezes melhor do que a continuação do conflito, só foram possíveis, para além das mudanças em Washington, pela clara superioridade militar das forças convencionais russas, apesar da valentia das tropas ucranianas e das correntes inesgotáveis de material bélico recebido dos países da NATO ao longo destes três anos. Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa L. Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer. No cenário, altamente improvável, de as tropas de Kiev com o apoio de “voluntários” ocidentais se aproximarem de uma derrota das forças convencionais russas, Moscovo não se renderia. Faria o que a sua doutrina há décadas promulga: escalaria ao uso limitado do nuclear, para obrigar o inimigo a pensar duas vezes antes de prosseguir até à guerra total. Por outras palavras, a vitória convencional e limitada da Rússia, parece ter salvo os povos da Europa de serem vítimas da irresponsabilidade estratégica dos seus dirigentes.

Terceira. A paz que está a ser negociada só poderá ser duradoura se se traduzir num tratado que defina as regras do jogo no sistema internacional europeu, pretensão que a Rússia sempre perseguiu, mesmo desde os tempos de Gorbachev. Há, contudo, dois obstáculos no caminho. Por um lado, aquilo que prevalece no discurso europeu (com apoio da administração Trump) é a ideia de a UE fazer da corrida armamentista o novo objetivo estratégico (rasgando e substituindo o famoso Pacto Ecológico, onde a minha derradeira credulidade se esgotou). A Rússia jamais permitirá que uma nova guerra seja preparada à sua vista, sem nada fazer. Por outro lado, Trump está a jogar perigosamente não só com os seus aliados, mas também com o próprio aparelho de Estado federal e com alguns dos poderosos interesses nele instalados. Considero bastante provável que um atentado contra Trump, desta vez bem-sucedido, possa desencadear uma segunda guerra civil americana, cujas consequências são totalmente imprevisíveis.

Quarta. Só um milagre poderia impedir as forças centrífugas dentro da UE de prevalecer. Não sei quanto tempo ainda teremos antes de este edifício, cheio de fissuras, nos tombar sobre a cabeça. A zona Euro, totalmente dependente de Wall Street e da Reserva Federal, irá contribuir para que governos e povos fiquem paralisados à espera do pior. Curiosamente, os furiosos governos anti-russos do Leste da Europa, darão, provavelmente, lugar a novos governos favoráveis à colaboração com Moscovo. A UE será a grande vítima da guerra da Ucrânia. Os insensatos que em Bruxelas abraçaram uma política totalmente oposta às realidades históricas e geopolíticas da Europa, serão, pelo menos, testemunhas do imperdoável caos em que nos fizeram mergulhar.

(Publicado no Jornal de Letras, edição de 5 de março de 2025)

Post scriptum. O artigo acima foi escrito antes da famosa “disputa” de Zelensky contra Trump e toda a sua equipa na Sala Oval, no dia 28 de fevereiro de 2025. Aconselho os leitores do Azorean Torpor a visionarem o filme completo (49’47’’), antes de fazerem coro com a transformação de Zelensky numa vítima heróica. Fazer um juízo a partir da parte final dessa conversa, satisfaz o alinhamento manipulatório que foi dado na Europa a essa longa conversa. Também não tenho simpatia por Trump, mas reconheço que existe um esforço sério da sua administração para acabar com esta guerra, em absoluto contraste com a corrida para o confronto total com a Rússia a que nos conduziria a continuação da política de Biden e Blinken. Pelo contrário, Zelensky aproveitou a amabilidade dos seus anfitriões norte-americanos para mostrar, perante um auditório universal, a sua total oposição a esse processo de paz. Para um cidadão europeu, ao fim de três anos de guerra, não perceber onde é que está o nosso interesse vital, preferindo o discurso de ódio ao discurso da via diplomática, significa até que ponto chagámos na Europa a um lamentável estado de degradação da nossa capacidade coletiva e individual de distinguir entre o que é essencial e o que é perigosamente ilusório.

2025 03 06 

https://azoreantorpor.wordpress.com/2025/03/06/

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