* Manuel Loff
Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Era o que ele lembrava aos seus compatriotas desde que, chegado à Presidência, enxotava os escrevedores de discursos que havia no Palácio. Ele por ele tinha “fome de vencer e sou muito ambicioso e não gosto de perder.” Mas o país que aprendesse a trabalhar, porque isto de “distribuir a riqueza inexistente, que não produzimos”, não podia ser!
Triunfara contra dois figurões dos velhos partidos. Pelo Partido Alcrata (popularmente conhecidos como “alcatras”), o comendador Parques Tendes, que se achava velha raposa dos tempos idos do professor Tamanco. No Partido Lista, como era habitual, não se tinham entendido, ofuscados muitos deles pelo brilho do uniforme do Comodoro, com quem se tinham dado tão bem. De entre eles, em bicos de pés, lá fizera o seu número o soporífero Dr. Apólice.
Foi a desgraça para eles. O Comodoro resolveu tudo logo à primeira volta. Irritara-se, isso sim, com o palavroso Porventura. O Comodoro tratava-o como quem trata um aspirante; todos conheciam os pedagógicos raspanetes públicos que gostava de dar aos praças. Mas sabia que precisava dele para livrar-se dos velhos partidos. E ainda por cima, o outro tratava-o com o mesmo grau de reverência com que despachava despautérios contra o resto do mundo. O Comodoro achava que o tinha posto na linha.
Depois veio o rearmamento, o serviço militar obrigatório e a crise. O país era pequeno, tinha de poupar, a guerra vinha aí, e de guerras sabia ele. “Tempos de emergência” tinham chegado; aliás, a vida devia ser vivida toda ela como uma emergência, único meio ambiente no qual um povo desleixado compreende o seu dever. Chamou-se os constitucionalistas. Disse-lhes o que queria. Presidencialismo, o único regime das nações dignas desse nome. E que se reduzisse o número de deputados, 70 chegavam muito bem. Poucos mas bons. Os listas e os alcatras balbuciaram algumas dúvidas mas disseram que sim. Afinal, explicou-lhes o Comodoro, os tempos eram outros, e todos estavam de acordo que “já não estamos em 1975!”, a frase preferida dos comentadores. O Porventura disse que nunca tinha querido outra coisa, pudesse o Comodoro dar-lhe uma chance para demonstrar a sua valia no governo.
Numa comemoração do 25 de Novembro – cuja passagem a feriado nacional o Comodoro aplaudira -, o Presidente fardado (por que não podia ele usar a farda como presidente?) apresentou o projeto. Os poucos deputados da esquerda abandonaram a sala. Vários cantavam uma canção sobre uma “vila morena”. O Comodoro queixou-se de “falta de respeito!”. Estava na altura de os pôr na ordem. O Porventura foi o primeiro a levantar-se para o aplaudir. “Sempre à disposição do senhor Comodoro para limpar a Pátria!”, garantiu. O Comodoro sorriu. Achou que o tinha no bolso. O Porventura achava que era ele que tinha o Presidente no bolso. Coisas da política, eles lá saberiam.
Depois, veio a guerra com a China. E mais austeridade. Agora assumia-se que era mesmo austeridade, e que tinha de ser. Quando começaram as greves, o Comodoro disse “Basta! Isto assim não pode ser!”, e a imprensa aplaudiu a linguagem genuína, a voz de comando, o caráter decidido! Impôs o estado de emergência, coisa que o país já conhecia. Explicaram-lhe que tinha de ser só por 15 dias e que depois havia que perguntar aos deputados se podia ser por mais tempo. “Claro que tem de ser, ou os senhores deputados acham que as guerras têm calendário?!” Fizeram-lhe a vontade. Proibiram-se as greves nos serviços públicos. Ele, militar, a servir a Nação, nunca tinha feito uma greve, por que haveriam os outros poder fazê-la?
E agora era assim. Como dizia o ele, no seu habitual “Colóquio à Lareira” pela televisão: “Para a frente, compatriotas! A pátria nos contempla e o passado nos espera.”
2025 03 05
https://www.publico.pt/2025/03/05/opiniao/opiniao/comodoro-212469
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