sábado, 23 de abril de 2016

antónio sousa homem - Resistir ao tempo, cuidar das memórias


* antónio sousa homem

 A vida de um velho compõe-se de resistência e de memórias. 
07.02.2016 00:30 

Resistir ao tempo, recordar o que passou como se não tivesse passado: nisto se compõe tudo o que escrevo e colecciono como um caçador de borboletas. 

O velho Doutor Homem, meu pai, incorporou todos os defeitos das burguesias e do racionalismo do Porto, moldado pela penumbra do céu e pela chuva que caía nas suas ruas de granito escuro. A sua vida intelectual era um luxo permitido pela família; a moeda de troca eram férias de Verão e temporadas de preguiça. As viagens levavam-nos a hotéis e cidades com museus, lojas e restaurantes, com a perseverança tutelar de Dona Ester, minha mãe; a preguiça depositava-nos em Ponte de Lima para um a dois meses de Verão, onde as tardes eram invadidas pelos seus discos (a voz de Anna Moffo, a sua soprano favorita, interpretando ‘La Bohème’ ou a ‘Norma’ para ouvir ‘Casta Diva’) ou/e pela desarrumação na biblioteca do velho casarão miguelista – onde se misturavam, nos sofás e nos cadeirões, jornais da época e livros que convidavam à sesta. 

Se me contagiasse, algum dia, a tentação (muito frequente nos portugueses de várias origens) de escrever um romance, eu teria nos anos de ouro de Ponte de Lima um cenário atraente e luminoso. A vida foi-me fácil nesses anos; poupado às atribulações do casamento (mas também ao seu conforto) e da economia familiar, uma segunda adolescência prolongou-se até aos meus trinta anos, e as minhas preocupações essenciais eram, no fundo, a epistolografia e o guarda-roupa. O temperamento ajudava. Eu era preguiçoso. Aprendi o essencial – e o essencial era um certo conformismo e a vontade de aproveitar a felicidade do tempo. Coleccionei, portanto, recordações que hoje uso como uma flor antiga numa lapela fora de moda. 

Penso nisso porque, com a Primavera que há-de chegar, abriremos a casa de Ponte de Lima para arejar os corredores e as salas de sobrado de madeira. Os meus sobrinhos consideram esse ritual (antes da pausa da Páscoa) uma obrigação moral. No fundo, acho que têm pena da solidão do senhor Dom Miguel, cujo rosto triste e perturbado naquele retrato ao fundo do corredor do piso térreo lembra que os derrotados também têm direito à vida. Foi o que nos salvou. De contrário, seríamos muito menos interessantes. 


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