Aquilo que é necessários
Na manhã do dia 1 de Janeiro de 1962, eu, o meu irmão e as minhas duas irmãs fomos acordados, não pelo meu pai ou a minha mãe como era costume, mas por um tio e uma tia. Mandaram-nos vestir um roupão sobre os pijamas e acompanhá-los. Atravessámos a curta distância que separava da casa do meu avô materno a casa onde vivíamos, e à qual nunca mais voltei. Durante semanas só nos disseram coisas vagas. As empregadas do meu avô calavam-se de repente quando passávamos. Soubemos depois que a família não tinha a certeza que o meu pai sobrevivesse aos ferimentos de bala que sofrera no ataque ao quartel de Beja na madrugada daquele dia 1. A minha mãe estava presa. Voltou para casa um ano e meio depois. Ele, ao fim de seis anos. Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um fantasma desvanecido contra a luz da janela, aquele homem que eu recordava grande, alegre, garboso na sua farda. Desapareceu de vez a infatigável alegria do meu irmão, um miúdo palrador e de olhos cheios de luz. Ganhou dificuldades de fala e endureceu. Nunca mais encontrou a paz. Por mim, fui adolescente a querer ser homem sem ter para isso pai. Não foi fácil e não se tornou menos difícil depois. As minhas irmãs, eu sei lá, nunca falamos disso. A família juntou-se para nos acolher e ajudar, houve amigos que estiveram à altura da ocasião, mas vivíamos com alguma dificuldade. Quando a minha mãe foi libertada, tinha perdido a profissão que a PIDE a impediu de retomar. Arranjou os empregos possíveis. Dormia pouquíssimo, trabalhava loucamente e aguentou tudo. Só perdeu a juventude e a saúde.
Quando visitávamos os meus pais em Caxias, em Peniche, encontrámos pessoas que sofreram muito mais que nós e estavam muito mais desamparadas. Especialmente os familiares de militantes do PCP, gente heróica sem bravata. Aprendemos que, para além dos nossos pais e dos que, com eles, foram a Beja (alguns, com menos sorte e resistência física que o meu pai, para lá morrerem), havia em Portugal muitas pessoas rectas que, ao fazerem o que era necessário fazer, causaram danos colaterais como aqueles que a minha família sofreu. Aprendemos que é mesmo assim, que nada se consegue sem danos colaterais. Aprendemos também, todavia, que a maioria das pessoas não suporta esta ideia e quer somente paz e sossego. É a vida, mas felizmente haverá sempre aqueles que são maiores que a vida. Se os não houvera, a iniquidade venceria necessariamente.
Coincide com os 50 anos da Revolta de Beja a perseguição movida pelo regime que hoje vigora em Portugal contra Otelo Saraiva de Carvalho, o operacional responsável pela revolta seguinte, o 25 de Abril de 1974. Que isso não nos impeça de dizer e fazer o que é necessário. A iniquidade não pode vencer.
Historiador
Jornalista
https://www.publico.pt/opiniao/jornal/aquilo-que-e-necessarios-23714297
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