domingo, 10 de abril de 2016

Herberto Helder. Pode o poeta perder a aura?


10 Abril 2016

Joana Emídio Marques

Depois de anos refugiado numa obscuridade sem concessões, surgiram edições sucessivas e atenção mediática. Mas o que ficará da poesia de Herberto Helder?


Durante décadas a publicação de um livro de Herberto Helder era um acontecimento. Cada livro mexia com a tectónica da poesia portuguesa que se escrevia em redor. Obrigava a que todos e cada um se reposicionassem. Mesmo os que o odiavam. Ou sobretudo esses. Uns escreviam contra ele, outros escreviam como ele, outros escreviam o oposto a ele. Mas ninguém lhe ficava imune.

Os livros surgiam de vez em quando, sem data pré-estabelecida. Os poemas eram escritos e reescritos e carburavam esse tempo lento. Eram o poema contínuo. Um trabalho incessante sobre cada palavra e as suas respetivas ressonâncias, sobre cada imagem evocada fizeram da sua uma linguagem poética única na história da poesia portuguesa. Há lugares que só ele tocou, porque, entre outras coisas, escrevia contra a linguagem do poder. Escrevia contra a linguagem banalizada por um mundo ao sabor das modas e onde tudo passa sem deixar rasto. O poema contínuo era também um tempo contínuo. Um tempo que não coincide com esta modernidade onde tudo explode, se dissolve numa rapidez estonteante.

Mas a aura de Herberto Helder foi mais construída pela sua recusa de participar no circo mediático da literatura do que pela grandiosidade da sua poesia, que afinal poucos liam. O poeta que teimosamente desprezava o mundo das aparências construía, paradoxalmente, a aparência de um mito. Livros de edições únicas (por vezes corrigidos à mão pelo próprio autor), que faziam as delícias dos alfarrabistas, mas que eram sobretudo manifestação do constante desassossego e insatisfação que ele sentia em relação às coisas que escrevia.


O livro, agora lançado pela Porto Editora, contém 33 poemas inéditos. Preço:16.60 euros

A total recusa de falar aos media, a rejeição de quaisquer prémios e honrarias valeram-lhe uma corte de admiradores. Herberto era aquele que recusava majestaticamente aquilo que todos parecem querer: fama, mundanidade, dinheiro.

Esta postura que era, para Helder Macedo, escritor e amigo de longa data do poeta, “um misto de arrogância e integridade”, terminou em 2013, com a publicação de Servidões. O “fenómeno Herberto” explodiu.

Já com a Porto Editora a trabalhar a marca Assírio & Alvim, o livro esgota as tiragens, os media percebem o elan e os críticos apressam-se. E eis Herberto chegado às redes sociais, estrela pop de um mundo que ele nem sequer conhecia. A partir daqui saiu um livro por ano: A Morte sem Mestre, Poemas Canhotos e agora Letra Aberta. O primeiro terminado e publicado ainda em vida, o segundo estava pronto para ser publicado quando o autor morreu em março de 2013. Este agora é uma recolha feita nos cadernos de Herberto pela sua viúva, Olga Lima.

No meio deste frenesi, a grande questão que o novo livro nos deixa, e porque ele nos devolve a grandiosidade da poesia de Herberto, é: uma vez rasgada a aura de mistério do poeta como sobreviverá a sua poesia?

Os estudiosos da obra herbertiana desmultiplicam-se em análises, congressos, sonham com edições de aparato crítico. As redes sociais replicam a capa e alguns poemas. Os livros são celebrados, agraciados e rapidamente esquecidos. Há notícias de que o espólio vai ser digitalizado pela Universidade do Porto, que o professor Arnaldo Saraiva vai trabalhar quadras populares deixadas pelo autor e fala-se mesmo numa arca, apelando ao mito pessoano.

No meio deste frenesi, a grande questão que o novo livro nos deixa, e porque ele nos devolve a grandiosidade da poesia de Herberto, é: uma vez rasgada a aura de mistério do poeta como sobreviverá a sua poesia?


Servidões, livro de 2013 esgotou em poucas semanas. Como era desejo do autor o livro não foi reeditado.

O mito do poeta obscuro

“Qual poeta obscuro! O Herberto nunca quis ser obscuro, pelo contrário, nunca quis ser obscurecido pela mediocridade circundante”, afirma Helder Macedo, em conversa com o Observador. Já Gastão Cruz, outro poeta amigo de longa data de Herberto, afirma: “Essa coisa do obscuro é uma invenção da Maria Estela Guedes [uma das primeiras estudiosas da obra de HH].” Isto antes de desligar o telefone com a declaração “não falo com jornais de direita”.

Outro dos autores com quem o Observador falou foi Diogo Vaz Pinto, jovem poeta, editor, e crítico dos jornais i e Sol que, em 2014, assinou uma critica duríssima sobre o livro A Morte sem Mestre. Ao que Herberto, no seu habitual estilo combativo, resolveu contra-atacar num poema que surge no seu livro seguinte Poemas Canhotos (já publicado postumamente):

(…)

um jovem ávido cheio de cotovelos

no meio da multidão

(…)

oh dêem qualquer coisa ao rapaz frenético:

um relâmpago fotográfico em cheio no rosto,

um calmante,

um sôco,

um bombom recheado de maria gloriazinha,

vai ser difícil vai ser difícil o rapaz não tem escrúpulos,

tem uma fome que vem das primeiras letras,

o rapaz é órfão de toda a gente,

ele quer à força entrar no filme:

logo a primeira imagem em plano glorioso,

mas calma aí, isso não é assim tão raro

mas não vêem vocês aí aquele rosto faminto

não vêem os olhos assassinos?

ele era capaz de matar para ter uma chamada ao palco,

ora ora o mundo está cheio disso:

rapazes que nunca foram amados quando crianças com ranho no nariz e lágrimas nos olhos ardentes (…)

Mas também este crítico literário insiste na necessidade de se “abandonar esta mitificação da pessoa e da obra de Herberto, porque isto apenas acrescenta um ruído fútil, cansativo”.

Pelo contrário, diz, “é preciso deixar a poesia que ele criou respirar, repousar, pois será ela que abrirá caminhos para si própria, para se fazer sobreviver. A poesia dele ajuda-nos a pensar o futuro da poesia em geral e o futuro da sua poesia em particular. Porque questiona, como poucas, este tempo que vivemos, esta angústia e esta permanente sensação de estarmos a viver um tempo terminal. As suas perplexidades amplificam as nossas. O vazio que ela teme e confronta é o nosso vazio. Ao fazer ressoar os milénios passados como, eventualmente, os futuros ela está a dizer-nos que há outro tempo, outra forma de viver o tempo, que não tem que ceder a esta voragem, esta leviandade que a tudo e todos arrasta. Ou seja Herberto pôs-se à margem mas apenas para ver melhor, para não se deixar arrastar, compreender melhor este mundo e nunca deixou de sofrer com isso.”

‘Letra Aberta’: um regresso depois da despedida

“um nome que me digas ou não me digas duas vezes

em dois abismos de sono, esse nome

faz-se carne no mais âmago de mim mesmo,

esse nome trabalha-me,

é igual ao segredo:pão

eu cômo-o no mais escuro do mundo,

cortado a água e mais nada,

quase como quando se morre mais devagar,

se é noite que entra:pão profundo mastigado

acaso na maior parte das noites seguidas umas à outras”

(pag.39)

Tanto Helder Macedo como Diogo Vaz Pinto (dois poetas de gerações muito diferentes, um tem 80 anos e o outro 30) concordam que nos últimos livros o poeta estava a despedir-se. Ele sentia que já se perdia nesse tempo que foi o núcleo da sua poesia. Dai a reatividade e maior fisicalidade dos seus últimos poemas. Na opinião de Helder Macedo “os últimos livros do Herberto representaram, simultaneamente, uma recuperação de atitudes (iconoclásticas, desmistificadoras, irónicas em relação a si próprio) da sua juventude e uma tentativa de encontrar uma nova voz poética em que as veiculasse, não como início mas como fim de vida. Foram por isso livros de grande coragem, em que o Herberto (um dos poetas mais imitados no nosso repetitivo panorama literário) se não imitava a si próprio.”

“Ele impõe uma resistência ao processo de canonização e a espetacularização que haveria sempre de convertê-lo num ícone”, afirma Vaz Pinto. “Neste novo livro temos a possibilidade de espreitar sobre o ombro, temos vislumbres de um irrefreado ofício em busca do ponto último, em que de tão perfeitamente maduro o sabor de um verso não mais se esquece. É, ao mesmo tempo, uma espécie de post-scriptum, esse gesto tão humano de olhar para trás e questionar-se sobre se a grandeza do esforço em que empregou a vida toda poderá sobreviver a um tempo em que nada sobrevive, um tempo de obliteração. Sabemos que estes poemas eram apenas a crisálida do que viria a ser se o poeta continuasse vivo e a trabalhá-los continuamente como era seu hábito, obrigando-os a um período de estágio na gaveta para que se gastasse o fôlego a tudo o que fosse contingente. Talvez este livro demorasse muitos anos a vir a público, e depois poderia ser chamado de volta à liça, reescrito, porque Herberto não abandonava os versos a um destino público. Ele vigiava-os, escrutinava-se. Em muitos sentidos foi dos poetas que mais se empenhou em condicionar a forma como era lido. E nesse sentido estes são poemas imperfeitos, mas que nos permitem perceber a forma como ele se embrenhava, pairando em círculos elevados, até fixar um sentido especialmente acutilante, fixá-lo nas inúmeras vertentes da linguagem, das imagens ao som e aos ritmos”, continua o poeta e crítico.

"Os seus leitores que haviam ficado perplexos (ou mesmo dececionados, como alguns ficaram) com este livro vão ficar mais sossegados. Reconhecerão aqui o poeta que amavam e não queriam que mudasse." 

Helder Macedo

“Quanto à publicação destes poemas, acho que é um ato de partilha por parte da Olga Lima, que foi a constante e discreta companheira do Herberto durante longos anos até ao fim da vida dele. E que discreta continuou a ser, no modo como os recuperou e organizou. Que eu saiba, o Herberto nunca disse que não queria que estes poemas (ou outros textos que a Olga me disse que deixou inéditos) fossem publicados. Simplesmente deixou-os ficar entre os seus papéis, até ver. É bom que agora se vejam”, completa Helder Macedo

Neste livro, constituído por poemas que Herberto ainda não teria considerado prontos para publicação, diz ainda Helder Macedo “reencontramos, paradoxalmente (ou não), o poeta anterior a esses últimos livros. Os seus leitores que haviam ficado perplexos (ou mesmo dececionados, como alguns ficaram) com este livro vão ficar mais sossegados. Reconhecerão aqui o poeta que amavam e não queriam que mudasse. Em vez da sobre-humana voz bárdica dos seus grandes poemas, temos aqui a voz precariamente humana de quem os havia escrito. É, nos seus próprios termos, um belo livro. E, no contexto da obra do Herberto, um testemunho literário importante. De algum modo, ainda bem que o Herberto não os trabalhou mais, transformando-os no que, em termos de “oficina” literária, poderiam ter sido. No contexto da restante obra poética do Herberto e como expressão de quem o Herberto se havia tornado com a proximidade da morte, não são por isso menos belos nem menos verdadeiros.”


Herberto Helder
Depois de décadas sem se deixar fotografar, Herberto surge nas fotos de Alfredo Cunha, poucas semanas antes da sua morte.

“Alguns destes poemas lembram-nos o melhor de Herberto. Lembram-nos que como ele continuou até ao fim a tentar abrir novos caminhos para a poesia. Lembram-nos como ele consegue usar o mais amplo espetro da língua para continuar a realizar inversões bruscas na paisagem, ser ainda mais claro do que os que se limitam ao método da redução e simplificação banal das coisas, denunciando muito claramente o ambiente geral de indigência em que mergulhou o país. Apesar de imperfeitos estes poemas tremem de desgosto, cada palavra busca uma refulgência própria e é a expressão de um desencanto irado que choca com o desencanto cabisbaixo que se tornou um ânimo geral”, afirma Diogo Vaz Pinto.

Herberto Helder ou o poema contínuo

Se a aura de Herberto Helder sobreviverá ou não à máquina mercantil, isso não vai mudar a natureza da sua obra. Talvez só depois de rasgada esta aura artificial, mais alimentada pelos comportamentos sociais do poeta do que pela sua poesia, se possa enfim vislumbrar melhor a amplitude do que nos deixou Herberto.

Os poemas de HH foram, ao longo dos anos, sendo reunidos em várias sumulas. estas edições tiveram muitos titulos diferentes mas, como sugere o poeta Manuel gusmão, o melhor será este que dever ser lido assim:Herberto Helder ou o poema continuo


Os poemas de HH foram, ao longo dos anos, sendo reunidos em várias súmulas. Estas edições tiveram vários títulos diferentes mas, como sugere o poeta Manuel Gusmão, o melhor será este que deve ser lido assim:”Herberto Helder ou o poema continuo”

O trabalho de reescrita continua dos poemas, que o faziam recusar fazer mais do que uma edição de cada livro, demonstra como ele compreendeu bem a essência disruptiva e ambígua da modernidade, e como soube integrar isso no seu trabalho e na sua lírica. O seu profundo desassossego, a sua compreensão de que o mundo não é feito de uma geometria racional mas por pequenas e grandes catástrofes, fez com que o poeta construísse uma obra que replica essas metamorfoses contínuas. Letra Aberta parece ser assim um testemunho poético, onde ele nos mostra, precisamente, que cada palavra está aberta ao devir e que, portanto, a sua poesia poderá ser lida, compreendida e amada em qualquer tempo que vier.

http://observador.pt/especiais/herberto-helder-poeta-perdeu-aura/

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