Salazar, o
prosador desconhecido
11 mar. 2017,
15:526
Seria o único a
resistir a tão encomiástico apodo da parte de António José Saraiva. “a mais
perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em língua portuguesa”,
qualifica o Historiador. Salazar acima do estilo cuidado de Jerónimo Osório?
Lido com maior prazer do que a sanha ideológica de José Agostinho de Macedo ou
de Frei Fortunato de S. Boaventura? Estávamos em 1982, já Saraiva tinha deposto
a casaca vermelha e adoptado a defesa do Salazarismo, pelo que o elogio poderia
ser apenas o excesso de um entusiasmo político.
Só isso explica
que, mesmo com a canonização do, já não sacerdote, mas autêntico Cardeal da
crítica literária, a prosa de Salazar continue sem ser tida nem achada nos
altares das letras. Estudos literários há poucos: um de Manuel Anselmo, outro
de António Barahona e talvez mais um ou dois prefácios
que tentem encabar uma leitura sistemática no ofício laudatório. E dado que,
nos casos citados (não excluído António José Saraiva), junta-se à admiração
literária um apreço pessoal e político, talvez o público tenha tomado as loas
por juízos inquinados.
Das barricadas
opostas, nem tugido nem mugido: nunca a obra de Salazar vem referida,
seja para um louvor, seja para uma condenação, na sua perspectiva literária. É
compreensível: para os Historiadores há tanto rincão fértil para estudar o
Salazarismo que pegar nos seus aspectos literários pode parecer tão ridículo
quanto, diante de um banquete, comer apenas o pão seco. Para os literatos, a
tomada do monopólio literário pela poesia e pela ficção afasta a prosa
doutrinária dos seus interesses. E para o resto dos nossos contemporâneos o
hábito dos discursos políticos dessorados, tantas vezes lavrados por encomenda,
sempre à procura do mais inofensivo lugar-comum, sempre apostados na formulação
vaga que não ofenda eleitor nenhum, para quem está habituado a estes discursos
quase burocráticos, a leitura de um discurso político é tão prazenteira quanto
a leitura do diário da República.
Enquanto em
França sempre foi ponto de honra um certo cuidado estilístico na forma de um
governante se dirigir ao País, enquanto Léon Blum, De Gaulle ou Mitterrand
engolfavam o papel dos discursos nas suas pretensões literárias, em Portugal o
discurso saiu do âmbito da literatura para entrar no da publicidade. Daí que,
se não quisermos aderir a teses conspiratórias contra o Estado Novo, possamos
considerar normal que a obra de Salazar não tenha a atenção literária que
merece.
Ora, a
verdade é que houve, de facto, o cuidado literário nos Discursos,
que justifica a atenção. Nem as suas são as palavras de um repentista que
quadrasse melhor em anedotários do que em Histórias da Literatura, à Churchill,
nem são as frases lacónicas de um burocrata em que por acaso se acharão certas
feitiçarias involuntárias de bom estilo. É o próprio Salazar que lhes
chama, no prefácio ao primeiro volume dos Discursos, “pedaços de
prosa que foram ditos”, como que a mostrar que as suas intervenções são, antes
de mais, para ser lidas – “pedaços de prosa”. Se a isto juntarmos o
misterioso Ais, livro de poemas que terá publicado na sua mocidade,
teremos confirmada, mesmo que exangue, uma veia literária em Salazar.
“Eram
versos, mas não eram poesia”
Uma das mais
cuidadas críticas literárias à sua obra parte, aliás, da sua curta vida de
poeta. Na biografia de Salazar que escreveu, Franco Nogueira ressuscita por
momentos o crítico literário que fora na mocidade e avalia os poemas que o
jovem António, ainda seminarista, ia ensaiando. O veredicto é implacável:
“candura literária, pobreza poética, monotonia de temas, indigência de
imaginação, ingenuidade, romantismo imaturo”… Franco Nogueira assesta mesmo –
“eram versos: mas não eram poesia”. Mesmo fora da poesia a sentença não é mais
complacente: “estilo pessoal incaracterístico, que se procura sem se
encontrar”, diz o Embaixador sobre uma palestra proferida num liceu. Ora, mesmo
em tão larga gama de fraquezas é já possível encontrar certas características
mais pertinazes que acompanharão (polidas, é claro) a vida do autor dos Discursos.
Tem, é
certo, um gosto heroico e a mesma admiração dos Integralistas pela forma como
os Românticos reanimaram os tesouros pré-modernos. Mas herda também a estrutura
frásica de Herculano, as frases longas de complexos contornos gramaticais que
já não eram e não mais voltaram a ser moda.
Do Romantismo
não aproveita apenas os temas, o elogio da organicidade medieval, os episódios
que Herculano fixou fundamentais da nossa História, os heróis e a exaltação de
nobres sentimentos empenhados na construção da pátria. Tem, é certo, um gosto
heroico e a mesma admiração dos Integralistas pela forma como os Românticos
reanimaram os tesouros pré-modernos. Mas herda também a estrutura frásica de
Herculano, as frases longas de complexos contornos gramaticais que já não eram
e não mais voltaram a ser moda. “A desproporção das forças em presença – 7.000
portugueses para mais de 30.000 inimigos — , o fulminante da vitória, as
pesadíssimas perdas infligidas aos Castelhanos, a fuga do rei de Castela, a
maneira como foi conduzida a batalha sob o aspecto puramente militar por esse
extraordinário generalíssimo, assombroso de misticismo religioso e de génio
guerreiro, que se chamou D. Nun’Álvares Pereira, fazem de Aljubarrota o ponto
central da longa guerra havida com Castela e a vitória mais representativa do esforço
dos nossos avós pela independência de Portugal.”, diz no discurso “Aljubarrota
festa da mocidade”.
Numa frase,
longa, claro, descreve a dificuldade da batalha, explica que consequências
exacerbaram o seu simbolismo, troca o sujeito para um Nun’Álvares rapidamente
biografado e volta ao primeiro para explicar a importância da batalha. A oração
verbal (“fazem de Aljubarrota…”) surge no fim para, mesmo com a quantidade de
apostos ao sujeito, conseguir manter o suspense. Se já soubéssemos que o elo de
ligação entre a ladainha bélica estava na importância que dão a Aljubarrota,
podíamos dedicar-nos independentes a elencar tudo o que julgamos essencial para
fazer desta a verdadeira batalha da independência.
É o estilo
narrativo dos românticos, que Salazar mescla com asserções curtas mais
habituais nos discursos: “Compenetrados do valor, da necessidade na
vida de uma espiritualidade superior, sem agravo das convicções pessoais, da
indiferença ou da incredulidade sinceras, temos respeitado a consciência dos
crentes e consolidado a paz religiosa. Não discutimos Deus”. É o próprio Franco
Nogueira que atesta a influência. Em Coimbra, “Continuava fiel aos clássicos
portugueses, ao Padre Manuel Bernardes, a Alexandre Herculano”. E é nestas
leituras, recolhidas por Franco Nogueira, que podemos encontrar mais uma pista
para o seu estilo.
O biógrafo
chamou “candura literária” àquilo que no Estado Novo se tornou uma espécie de
vanguarda. Depois da moda do romance científico, das ilusões positivas em que
Eça ou Teixeira de Queirós traduziram o romance de Zola, a literatura como que
ressacou das suas ingénuas pretensões objectivas. Deixou de ser cozinhada em
godés, descreu do futuro mirífico das Histórias Naturais e, farta das
maravilhas da Civilização, agarrou-se aos restos de um mundo perdido. Não é
preciso lembrar A Cidade e as Serras, o encanto de José Régio com a
religiosidade popular ou Pessoa com o “Menino de sua Mãe”.
Estilo de
época
A ruralidade, o
povo e a infância, coisas exóticas num mundo cada vez mais urbano e aburguesado
(e, demasiado óbvio mas para precaver de espertinhos, interpretado por
adultos). Esta franja literária, porém, complexifica aquilo que eram já os
temas base do romantismo. É que se o Romantismo também toma o povo como
pretexto, não o toma como forma. A volúpia erudita de um Garrett ou de um
Camilo contrastam com a forma de vida popular. Aquilo que Pessoa ou Régio já
não têm e querem – a simplicidade do povo ou da infância – manifesta-se também
na forma. Daí as Quadras ao gosto popular, daí, em parte, o “lirismo
simples de António Correia de Oliveira” que Salazar admirava. O paternalismo
brando dos discursos, o tom baixo, o elogio das virtudes quotidianas, tudo isto
é já não “candura literária” mas um estilo de época.
Claro que
Salazar também quer fugir à loquela tribunícia da Primeira República, adaptar o
tom dos discursos à serenidade que quer ver no país, contrastar a sua com a
prosa histriónica dos jornais da época; mas a forma ultrapassa a política e tem
algumas das preocupações fundamentais da literatura.
A singeleza
quadra com a personalidade, a estrutura dos discursos quadra com o próprio
veículo, para obedecer à tese de Truman Capote de que a literatura é encontrar
o tom adequado àquilo que se quer dizer. Salazar, nitidamente, encontrou-o:
embora doutrinários, os discursos não têm um único conector lógico (logo,
então, por conseguinte…) nem um raciocínio completo. É obviamente mais difícil
seguir um raciocínio ouvido do que lido, pelo que a simplicidade – que melhor
se diria clareza, já que a gramática é erudita e o vocabulário bastante rico –
também se manifesta aqui. Manifesta-se nos temas, nas descrições e na
estrutura, para se manifestarem também na personalidade. A “candura
literária” já não é, nem inteiramente cândida, nem inteiramente falsa. A
simplicidade, mais do que um engano, é um objectivo. Tanto em Salazar, como nos
escritores considerados do seu tempo.
Mesmo nos
tempos de maior euforia revolucionária, mesmo na crispação dos tempos de
guerra, Salazar é bastante lacónico nos seus termos. Nunca faz comparações, não
usa metáforas, tem um estilo absolutamente descritivo: empenha-se em
caracterizar com precisão o estado das finanças, com as palavras mais certas e
mais sóbrias, sem tomar de uns assuntos imagens que se pudessem
aproveitar noutros.
Ora, os
escritores do seu tempo, diz-nos Franco Nogueira, também eram lidos por Salazar
na sua juventude. Não apenas ou já referido Correia de Oliveira ou Malheiro
Dias – a literatura francesa, de Comte, Le Play ou Maurras (os primeiros mais
antigos mas muito em voga na época) também terá corrigido a “indigência de
imaginação” do Presidente do Conselho. Não que Salazar tenha alargado o seu
campo de referências a misturas surrealizantes ou alegorias rebuscadas; mas
aquilo que poderia de facto ser uma insuficiência literária – a falta de
colorido – tornou-se um ex-libris da sua pena.
Mesmo nos
tempos de maior euforia revolucionária, mesmo na crispação dos tempos de
guerra, Salazar é bastante lacónico nos seus termos. Nunca faz
comparações, não usa metáforas, tem um estilo absolutamente descritivo:
empenha-se em caracterizar com precisão o estado das finanças, com as palavras
mais certas e mais sóbrias, sem tomar de uns assuntos imagens que se pudessem
aproveitar noutros. Esta “indigência”, porém, marca com o mesmo
opróbrio o estilo de outros grandes prosadores. A falta de comparações é já uma
reacção da Arcádia ao Barroco; mas o que José Agostinho e Bocage compensavam
com a escolha de vocabulário erudito, grande elasticidade de temas e uma verve
apaixonada está vedado a Salazar.
Por feitio não é apaixonado, por ofício trata de temas circunscritos e já estabelecidos. Salazar, tanto nas ideias como no estilo, aproxima-se assim de Maurras; esburgada a agressividade do Mestre da Action Française, tem a sua clareza e a sua aposta em fórmulas vigorosas e a dinâmica da prosa dada pela variedade verbal. É, de facto, nas palavras de acção que o vocabulário de Salazar mais foge do comum, na dinâmica verbal que há mais frescura. A riqueza verbal, aliás, característica do estilo clássico que Maurras tanto exalçava, traz à prosa a limpidez que não a torna imediatamente identificável como literária.
n
Como se
fossem sermões
É por não
abundarem as repetições consentidas, os jogos de palavras e as referências
discretas a passagens anteriores que a prosa é limpa. Não tem aliterações, tem
apenas uma variedade discreta que lhe dá grande parte da elegância. Não será
fácil extrair exemplos de uma característica que é própria de conjunto, mas as
frases “A fraqueza dos regimes liberais está essencialmente em que, por
imposição da sua própria doutrina – porque também eles a têm – se vêem forçados
em muitas circunstâncias a parecer que não a possuem. Sempre para se sustentar
têm de se contradizer” são um eco daquilo que ensejávamos demonstrar. Para um
só tema – a existência de doutrinas liberais – sete verbos diferentes em duas
frases. A mostrar que Maurras não é mestre apenas nas ideias de Autoridade e
Hierarquia e que só não o é na violência do humor.
Ora, a
serenidade tão característica de Salazar poderia fazer desconfiar de uma tese
apresentada por António José Saraiva no texto de que tirámos a primeira destas
linhas. Diz Saraiva que Salazar, educado na escola do século de
Pascal, na prosa seiscentista, era grande leitor e seguidor do Padre António
Vieira. Pela sua formação eclesiástica, pelo tom brando tão ao género do Pão
partido aos pequenitos, pelo uso constante do superlativo absoluto sintético de
inspiração latina, seria normal associar Salazar a Manuel Bernardes, Frei Luís
de Sousa e toda essa gama de frades prosadores – Manuel Anselmo fá-lo e
Barahona também. Agora, ao Padre António Vieira? Ao grande exibicionista das
possibilidades da língua, ao verdadeiro barroco estilístico, ajoujado de jogos
de palavras e malabarismos gramaticais? É certo que Salazar não usa os atavios
do Jesuíta, mas o olho arguto de António José Saraiva não se engana: o ditador
deve-lhe alguma coisa na estrutura da prosa.
A coabitação de
contrários – “Tão frágil que a brisa ameaçava tombá-lo, tão forte que uma
revolução o não podia subverte” (a propósito de Carmona) – o manejar simultâneo
de duas ideias diferentes, tantas vezes em confronto, é tão característico dos
sermões de Vieira como dos Discursos de Salazar. Vieira terá,
é certo, a imaginação e a fabulosa capacidade de, a partir de uma doutrina
conhecida, encontrar formas originais e divertidas de a transmitir. Salazar não
terá a mesma destreza, mas também não a procura. É tão sóbrio quanto o outro é
alegre, tão contido quanto o outro é exuberante.
Não podemos,
porém, dizer que à sua elegância modesta falta originalidade. Entre a
abstracção labiríntica dos tratadistas morais e a chã narrativa dos
Historiadores, entre o Leal Conselheiro e a História de Herculano, Salazar
conseguiu ter um discurso que fala das virtudes com o exemplo do país e em que
eleva o país à aspiração da virtude. E isso poucos, mesmo entre os grandes
doutrinadores, poucos conseguiram, menos ainda com tamanho donaire.
Se, como diz Saraiva, será “o melhor”, não sabemos. Mas é com certeza um grande
prosador. Estranhamente, talvez entre todos, e nesta matéria, o mais ilustre
desconhecido.
Carlos Maria
Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.
https://observador.pt/especiais/salazar-o-prosador-desconhecido/
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