23/02/2012
Arnaldo Trindade.“O Zeca era um ‘charmeur’ com um humor extraodinário”
Em 1968, contra tudo e todos, o criador da editora Orfeu arriscou editar “um génio sensacional”. José Afonso morreu há 25 anos
Na efervescência da Invicta, um jovem Arnaldo Trindade, grande coleccionador de discos, associou à importação da marca de electrodomésticos Philco a edição discográfica própria, depois de o pai ter criado uma editora que lançava discos da Polydor. Da etiqueta Orfeu sairiam muito mais que mitos, com a edição fonográfica assente na vertente comercial e divulgação artística. Dos anos 40 para finais de 60, quando a editora da Rua da Santa Catarina arriscou engrossar o catálogo da “música de tema” com um cantor “nervoso”, que à falta da caixa de calmantes só gravou “Cantigas do Maio” graças a um truque do judo.
Como começou a sua relação com o José Afonso?
Na altura ele tinha acabado de fazer o EP com os “Vampiros” [1963], que foi o primeiro disco dele proibido. Passado uns tempos fez outra obra, o “Cantares de Andarilho”, e nenhuma editora quis gravar, por receio de o proibirem. Chegaram à minha firma através do Rui Pato, que tocava e produzia. O disco era uma maravilha.
Não teve receio de avançar?
Era um jovem e achava que se deviam fazer as coisas. Tive uma educação nos EUA, tinha a ideia do que era a liberdade, de toda a gente ter uma voz, mesmo que as ideias fossem contrárias. Não comungava totalmente com as ideias do José Afonso. Claro que também não era a favor da situação vigente. Sempre fui um social democrata. Como o José Afonso, era adepto de um mundo melhor. Aceitei gravar o álbum, contra tudo. Era tão bom que não devia ficar encalhado. Ele foi logo passar uns dias ao Porto. Era uma pessoa extraordinária, de um grande charme. Contra tudo o que possam dizer hoje, o José Afonso era um “charmeur”.
Apesar de dizerem que não tinha um feitio sempre fácil?
Tinha um feitio um bocadinho complicado, mas quando tinha um interlocutor como eu, também com um feitio complicado, era mais fácil. Gostávamos ambos de boas músicas e ele vinha de uma classe social alta, era filho de juízes. Tinha berço, educação, muito bons termos e um humor extraordinário. Disse-lhe para fazermos um contrato a sério. Ele na altura não tinha meios de sobrevivência. Tinha sido expulso da escola em que ensinava.
Estamos a falar de 1968, depois do álbum “Baladas e Canções”?
Exactamente. Esse, de 1964, não é nosso. Era inócuo, podia-se gravar porque eram só baladas. Depois com o “Andarilho” é que começou a mexer com tudo. Criei um sistema engraçado que já tinha com o Adriano Correia de Oliveira, que foi uma das pessoas que insistiu muito para fazer contrato com o Zeca.
É verdade que foi um contrato olhos nos olhos, sem papéis?
Sim, mas depois foi escrito. Eu dava um x ao Zeca, que na altura já era bastante. O José Niza, que também entrou na nossa firma, muito amigo do Zeca e do Adriano, tinha a obrigação de me trazer cantores novos. Trouxeram o Fausto, o Sérgio Godinho, o Padre Fanhais. Dessa época, só não gravei o José Mário Branco. Fez um pedido muito elevado nas condições, superior ao do Zeca, e considerei que não dava.
Quanto ganhava o José Afonso?
Era o equivalente a poder comprar três automóveis novos por ano. Quem fez esse cálculo foi o José Niza, que estava a fazer a minha biografia quando morreu.
Recorda-se de episódios durante a gravação do “Cantares de Andarilho”?
Já o tinham gravado, mas profissionalmente fomos ao Monte da Virgem, no estúdio da RTP. O Zeca era uma pessoa muito nervosa e levava sempre uma caixa de comprimidos para os nervos. Só que tinha-se esquecido da caixa. Dizia que não ia gravar. O Adriano disse-lhe para ele tirar os sapatos e começou a dar-lhe uns toques de judoca nas palmas dos pés.
Funcionou?
Ficou bom e lá gravou. O Zeca era uma pessoa muito engraçada. Era obrigação dele, e de outros contratados, vir ao Porto uma vez por mês. Deviam gravar um disco por ano para poderem receber x, e depois, claro, eram pagos pelas gravações, direitos de autor, etc.
Cumpria a visita mensal?
O Zeca nunca me falhou em nada. Era um profissional autêntico.
Conviviam fora do trabalho?
Éramos amigos. A primeira coisa que ele me ofereceu foi o “Cem anos de Solidão”, do García Marquez. Depois vinha para a minha discoteca, ouvir e comprar discos.
O que gostava de comprar?
Adorava canto gregoriano, Bach, Debussy, Stravinsky. Há um mês, em Lisboa, conheci um professor de música da Universidade de Évora que o conheceu muito bem na Holanda. Mostrou como no Zeca, não sabendo nada de música, todas as canções são musicalmente correctas. Perguntou-me se eu sabia se ele gostava de canto gregoriano. Gostava e muito! Há coisas dele que são canto gregoriano puro.
Chegou a ser incomodado pela PIDE?
Não, convivíamos bem com o problema. As letras eram subentendidas e eles eram muito iludidos. Depois, o José Niza era muito amigo do indivíduo que estava à frente do SNI [Pedro Feytor Pinto, do Secretariado Nacional de Informação]. Propúnhamos-lhe as letras que podiam levantar dúvidas e eles faziam uma pré-selecção, para evitarmos gastos e depois ir tudo para o galheiro. Nunca tivemos um disco proibido do Zeca.
Os discos vendiam-se bem?
Não se vendia bem. Começou-se a vender sobretudo a partir da pedrada no charco, com o “Cantigas do Maio”, por causa do “Grândola”. O Zeca era um cantor de elite. A qualidade dele é extraordinária e é dos melhores poetas portugueses. Estamos a falar de um tempo em que o que vendia era fado e folclore.
A que juntou a “música de tema”.
Tivemos a sorte da nossa firma não viver só da música. Era das mais importantes distribuidoras de electrodomésticos do país, da Philco, e a secção de discos fui eu que a criei, porque o meu pai e o meu tio, os proprietários, tinham mais que fazer. Gravei os maiores poetas portugueses ditos por eles mesmos. Comecei com o Miguel Torga, o José Régio, a Agustina.
Tinha noção do impacto que o “Grândola” teria?
Não. Gravei o “Cantigas do Maio” porque achei que era o melhor disco feito em Portugal. Foi o nosso maior investimento. Custou-me mil contos, o que na altura era um balúrdio, e fomos gravar aos Strawberry Studios, o maior estúdio da Europa, onde na véspera tinham estado os Stones. A produção foi do José Mário Branco e foram todos lá cantar, o Adriano, o Fausto, o Vitorino. Um detalhe engraçado foi como foi feito o som da marcha. Os pés dos músicos a deslizar no saibro do castelo, que deram aquele som importantíssimo. É uma obra-prima da música portuguesa e foi o que vendeu mais.
Sobretudo depois do “Grândola”?
Sim, fez-se um single e tudo, vendeu-se para todo o mundo, excepto para os países de leste. Como é que podiam gostar de uma música onde se dizia que “o povo é quem mais ordena”?!
Como foi o trajecto na editora depois do 25 de Abril?
Acabou-se aquela linguagem subentendida, poeticamente muito mais bonita. O Zeca envolveu-se na parte política. Mas atenção que o Zeca nunca foi nem quis ser do PCP.
Falavam sobre política?
Não discuti política com ele, mas conversávamos. Perguntava-lhe como é que ele se dava comigo não sendo eu comunista. “Também não sou comunista”, dizia-me ele. “Sou um revolucionário, e a revolução não se pode fazer sem a burguesia liberal”. Entediamo-nos muito bem. Aliás, a última coisa que ele me deixou foi um autógrafo. “Ao Arnaldo Trindade, politicamente adversários, mas amigos”. E até acrescentou “O Porto é uma nação”.
Manteve-se consigo até aos últimos álbuns?
Depois do 25 de Abril as pessoas começaram a comprar os discos não pelo que eles eram, mas sim a conotá-los politicamente. Muitos não gostavam do Zeca por ser de esquerda. Isso reflectiu-se nas vendas. O contrato dele era muitíssimo caro, para ser comercialmente possível tínhamos que vender. Disse-lhe que ele estava a encaminhar-se para coisas mais violentas e que certa parte do mercado não gostava.
Costumava dar-lhe indicações?
Nunca interferi em nada na criação, só recusei um disco que ele fez sobre a tomada da sede do PPD em Setúbal, um single editado pela LUAR [Liga de Unidade e Acção Revolucionária]. Deve ter sido por volta de 75. Aquilo era um panfleto e eu panfletos não gravo. Gravo poesia e ideias, agora mata e esfola não é comigo, nem de um lado nem de outro. Ficámos amigos na mesma. O “Fados de Coimbra” [1981] foi o último que gravei, para poder recuperar investimentos que não estavam a dar frutos.
Foi pacífico o afastamento?
Sim. Ele já andava perturbado com a doença. Quiseram fazer uma editora com todos os cantores mas não deu nada. Não existem discos sem editores e um editor tem que ser independente, como um juiz imparcial. Descobrir o que é bom, o que se vende e o que é bom mesmo que não se venda. Gravámos o José Calvário com a Orquestra Sinfónica de Londres. Veja o balúrdio. Tínhamos o melhor que havia. Só nos faltava a Amália.
Quando esteve com o José Afonso pela última vez?
Não me recordo. Ainda o via mas ele andava ocupado com a parte revolucionária. Penso que vivia numa luta íntima entre o belo da poesia e o sentido social que tinha. Era um génio sensacional desinteressado de tudo. Ia cantar a todo o lado sem levar um tostão e nem sei se não terá passado dificuldades quando deixou de gravar, com o turbilhão do PREC. Perdeu-se a utopia do início, em que ele era grande.
Por Maria Ramos Silva | Jornal i
https://aja.pt/entrevista-a-arnaldo-trindade/?
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