A saga Millennium continua
– a Pipi das Meias Altas tem tatuagens e piercings
Os três
primeiros livros da série foram um fenómeno. As preocupações sociais de Stieg
Larsson inovaram. O 7.º volume chama-se A Rapariga nas Garras da Águia,
foi escrito por Karin Smirnoff.
José Riço
Direitinho
31 de Janeiro de 2024, 20:30
Quase vinte
anos depois de ter sido publicado na Suécia o primeiro volume da saga Millennium – Os
Homens Que Odeiam as Mulheres (D. Quixote, 2009) – do malogrado
jornalista e escritor sueco Stieg Larsson (1954-2004), os livros desta série já
venderam mais de cem milhões de exemplares em todo o mundo. Que fenómeno é
este? Para se responder, é necessário recuar ao tempo da publicação do primeiro
livro e à mudança de paradigma que representou na literatura policial.
Nos meses
seguintes à sua publicação, esse volume vendeu cerca de dois milhões de
exemplares num país que tem uma população de nove milhões de habitantes. Anos
depois, em 2007, e de acordo com a revista The Bookseller, o seu
autor ocupou o segundo lugar da lista dos mais vendidos em todo o mundo, à
frente de Ken Follet, Stephenie Meyer e J. K. Rowling.
Quais foram as
razões do sucesso internacional (países nórdicos à parte, pois aí elas serão
mais ou menos óbvias) dos três livros de Larsson – a série continuou depois da
sua morte, mas pelas mãos de David
Lagercrantz e de Karin Smirnoff, mas já lá iremos – que falam apenas
da sociedade sueca, da cartografia de Estocolmo, da solidão e da frieza
nórdicas, mas sobretudo das falhas de um Estado que se supunha modelar e que
afinal parece ser controlado por poderosas e ocultas forças malévolas? Porque é
que um leitor português, grego ou israelita – e não apenas os suecos, ou os
nórdicos – também corre o risco de ficar agarrado (literalmente) aos livros
lendo-os sem pensar na manhã seguinte? Fez esta trilogia de Larsson parte da
onda de romances policiais nórdicos que se tornou moda um pouco por todo o
mundo? O que é mesmo o “policial nórdico”?
Comecemos então pelo princípio. Os hábitos de leitura são parte da tradição cultural dos nórdicos desde há muito tempo. Eles são tidos como os maiores leitores do mundo, não apenas de livros, mas também em números de jornais e de revistas existentes. Nos anos 1970, uma dupla de autores suecos, marido e mulher, Per Wahlöö e Maj Sjöwall, assinaram os primeiros êxitos de livros policiais e criaram a figura do primeiro “inspector” sueco, Martin Beck. O modelo usado para a personagem principal e para a arquitectura dos romances estava ainda muito preso ao que era tido (e ainda é) como canónico no género, o hard-boiled norte-americano, muito estereotipado, apesar de já aflorar questões sociais.
A Rapariga nas
Garras da Águia
Autoria: Karin Smirnoff
Tradução de Maria de Fátima Carmo
Editora: Dom Quixote
496 págs., 23,30€
Efeito Olof Palme
Segundo alguns
críticos e outros estudiosos do género, foi só a partir de finais da década de
80 que o “policial” escrito por autores nórdicos se começou a alterar, e houve
uma razão forte para isso: a sociedade sueca não se refez do assassinato
do primeiro-ministro social-democrata Olof Palme numa rua do centro de
Estocolmo, em 1986, quando, perto da meia-noite, regressava a casa com a
mulher, a pé e sem guarda-costas dirigindo-se para o metro, depois de terem
assistido a uma sessão de cinema.
O crime
continuou por resolver durante décadas, apesar das muitas pistas de teorias da
conspiração seguidas (desde os independentistas curdos do PKK aos que se
opunham ao fim do apartheid na África do Sul, passando pela
CIA e por vários delinquentes menores com problemas de drogas e de alcoolismo).
As questões emocionais relativas a este caso demoraram a ser esquecidas, não
apenas pela ausência de resposta à pergunta “quem foi?”, mas sobretudo por ter
levantado pela primeira vez entre os escandinavos problemas mais complexos
sobre a sociedade moderna, o espaço privado, a tolerância e a violência.
O género policial foi o único que quase de imediato abordou estas questões, e tentou, de uma maneira ou de outra, minimizar todos aqueles estragos emocionais. O modelo foi-se alterando aos poucos, os autores suecos (e por extensão também os dos outros países nórdicos) deixaram de estar apenas interessados em resolver o puzzle constituído pelos factos mais ou menos óbvios de um crime, ou na montagem de uma experiência voyeurista violenta para oferecer ao leitor, e passaram a centrar-se mais nas causas e nos efeitos de um acto violento no tecido social, aprofundando um pouco mais as personagens, obviamente nunca deixando de lado o importante aspecto lúdico. Como se o novo romance policial tivesse vindo ocupar na Escandinávia o lugar do romance realista do século XIX.
O “crime
nórdico” passou a ter quase sempre uma inscrição no campo social. Na literatura
policial que se escreveu na década de 2010, raros foram os casos de histórias
em que o acto violento era apenas passional, ou familiar, ou então entre sócios
desavindos por alguns milhões roubados. Houve sempre a presença extra de uma
qualquer força dificilmente controlável, quer fosse política, económica ou
mesmo religiosa. E, como consequência, as personagens principais deixaram de
ser obrigatoriamente apenas os habituais polícias ou detectives privados,
homens de meia-idade com alguns problemas com álcool, e passaram a ser também
os advogados intuitivos, os jornalistas de investigação ou os hackers (esta
foi a novidade trazida pela série Millennium).
Alguns
escritores que até então se dedicavam à escrita de livros da literatura chamada
“séria” converteram-se em autores de best-sellers – é o caso
do sueco Henning Mankell e da norueguesa Karin Fossum, até então uma aclamada
poeta. Com este input cultural, o género fortaleceu-se e em
muitos casos as fronteiras entre literatura “séria” e “policial”
desapareceram; um dos primeiros casos surgidos foi o do dinamarquês Peter Høeg
com o romance A Senhora Smilla e a Sua Especial Percepção da Neve.
A juntar a isto tudo, há ainda a tradição cultural das sagas nórdicas, de que
foi recuperado o seu “grande sentido de tragédia”, como referiu o norueguês Jo
Nesbø numa entrevista.
A continuação
Mas a
série Millennium continuou após a morte do seu criador, que no
início a tinha previsto para dez volumes (escreveu apenas três). Para a
continuar, foi escolhido um sueco, David Lagercrantz (n. 1962), que até então
era conhecido por escrever biografias de importantes figuras suecas, entre as
quais o futebolista Zlatan Ibrahimovic. Manteve as duas personagens centrais: o
par do jornalista cínico (Mikael Blomkvist) e da hacker abusada,
vulnerável, que transforma agonia em energia, a carismática Lisbeth Salander,
uma das mais originais heroínas romanescas dos últimos tempos, uma espécie de
reconversão da Pipi das Meias Altas (foi o próprio Stieg Larsson quem faz a
comparação) em justiceira pós-moderna, num “factor de entropia no caos”.
Os livros
escritos por Lagercrantz não deixaram de ter essa inscrição social que
caracterizava a trilogia inicial, tendendo mesmo a actualizar os assuntos para
adequar os romances a tempos mais actuais. Por exemplo, no sexto volume, A
Rapariga que Viveu Duas Vezes, a morte de um sem-abrigo vai aos poucos
ficando inesperadamente associada ao ministro da Defesa sueco; Lagercrantz
continuou a ligar escândalos políticos e jogos de poder com novas tecnologias,
genética, "fábricas" de trolls que criam e difundem
notícias falsas, influenciadores de resultados de eleições, etc. A personagem
Lisbeth Salander é, entretanto, dada como desaparecida, mas o leitor encontra-a
em Moscovo a ajustar contas com a irmã Camilla, e "desta vez será o
caçador e não a presa, será o gato e não o rato".
Stieg
Larsson deu uma nova direcção à ficção policial escandinava, com um olhar frio
do mundo expresso num tom jornalístico e furioso
Mais
recentemente foi publicado o sétimo volume da série, A Rapariga nas
Garras da Águia, escrito por Karin Smirnoff, uma das autoras de maior
sucesso na Suécia. Ela continua o registo de Larsson no submundo do crime. O
jornalista cínico vai casar a filha ao norte do país; o noivo é um dos
políticos mais influentes da região, e mais uma vez os temas da corrupção e do
poder político estão no centro do romance: corrupção ligada à exploração de
energias renováveis num ambiente político em que a extrema-direita está em
imparável ascensão. O tema do combate à violência contra as mulheres não está ausente.
Com a trilogia
inicial, Stieg Larsson deu uma nova direcção à ficção policial escandinava. A
escrita seguríssima de Larsson, o olhar frio do mundo expresso num tom
jornalístico e furioso, aliados ainda à construção narrativa assente num puzzle de
emoções, com sucessivas analepses ao passado das personagens, fizeram de cada
livro da série Millennium um verdadeiro achado viciante.
Durante quase
uma década esta foi a matriz de escrita de muitos autores de policiais
nórdicos, não apenas suecos, mas também noruegueses. No entanto, há alguns anos
que esta preocupação da "inscrição social" apenas se vai mantendo nos
livros desta série, tendo vindo a ser abandonada por autores que voltaram aos
seus polícias-inspectores de meia-idade com problemas de álcool, como os
criados por Jo Nesbø e Jørn Lier Horst.
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