* Carlos Coutinho
PESSOA já tinha vivido na pele de todos os seus heterónimos quando o argentino Borges, com ascendência lusitana, escreveu em “Lamento de Heráclito”:
“Eu que tantos homens tenho sido, (tradução minha), não fui nunca / aquele em cujo abraço desfalecia Matilde Urbach.”
É certo que Fernando Pessoa achava que “a morte é a curva da estrada. / Morrer é só não ser visto”, porém, quando isto escreveu, Jorge Luís Borges ainda não era cego e lia toneladas de livros em Buenos Aires, além de muito apreciar os faquistas portenhos.
Até um erudito emigrante açoriano, que dá aulas nos EUA, de seu nome Teotónio Onésimo Almeida, “reconhece a dificuldade de em Pessoa se encontrar um núcleo duro ou básico no seu pensamento, embora isso não seja de todo impossível. Por exemplo, tenhamos em consideração que os heterónimos não são assim tão antagónicos em matéria de ética. Não há radicalização de nenhum deles: nenhum heterónimo pessoano se revela marxista, nem muçulmano, nem revolucionário de esquerda, nem verde, nem católico, nem nazi, nem sequer protestante.” (in revista “Ler”, 2023, Pessoa e Nietzsche – Um confronto na modernidade).
Diga-se, de passagem, que estes versos de Jorge Luís Borges – foram modificados em edições posteriores, trocando-se “abraço” por “amor”, já que, no dizer do autor, ficavam muito sibilantes – tendo aparecido numa seleção intitulada “Museu” e apocrifamente atribuída a Gaspar Camerarius. Especificamente, no fragmento VII, 16 de “Deliciae Poetarum Borussiae”.
Enquanto alguns especulavam com que o nome de Matilde Urbach resultava de uma certa paixão secreta do jovem Borges, outros intuíram conotações menos pessoais ou mais filosóficas – embora o título do poema remeta para “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, e o patronímico Urbach provenha, talvez, de um étimo protogermânico impronunciável que deu origem ao germânico medieval Bach (arroio, ribeira), propiciando uma cifrada interpretação.
Mas a verdade sobre Matilde Urbach continuou mistério, até que um texto de Bonilla, integrado em “A Arte do Yo-Yo”, respiga uma suposta investigação em torno desse “nome inabordável”.
Por sua vez, outro escritor argentino, Bioy Casares, declarou: “Creio que era uma personagem de um romance cuja leitura Borges me confessou.”
E o formidável escritor espanhol Javier Marías, recém-falecido, nos remete para o romance “Man With Four Lives”, do ignoto norte-americano William Joyce Cowen, que tinha sido referido por Borges na época em que colaborava na revista “El Hogar”.
Como quer que seja, a verdade é que outra grande escritora, Marguerite Yourcenar, de origem belga e cedo migrada para os EUA, escreveu “En Pelerin et en Étranger”:
“Face à história, qualquer homem minimamente consciente das constantes mudanças e da complexidade quase infinita das coisas sente-se, a pouco e pouco, tomado pela sensação do horrível e do absurdo. Nenhuma delas se altera em breve, e sem que primeira ou a segunda dessas noções enfraqueça, junta-se-lhes uma outra, a de que uma vasta impostura, na qual, ativos ou passivos, todos participamos.”
Pois é…
2024 01 3 0
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