CRÓNICA
Pianos na rua não é raro em Israel. Só nesta quarta-feira vi três. Pelo meio, perdi a conta às fardas e armas ao ombro. Tudo no mesmo país.
4 de Janeiro de2024, 5:59
1. Não me lembro de uma manifestação tão triste como a que vi no sábado à noite em Telavive. Quando se juntam milhares de pessoas, há uma energia, seja de celebração, fúria ou luto. Mas ali, para onde quer que olhássemos, a atmosfera era de abatimento, com gente atordoada, de olhos vermelhos ou a chorar. Muitos milhares de pessoas tristes na imensidão da praça do Museu de Arte de Telavive, que depois de 7 de Outubro passou a ser conhecida como Praça dos Reféns.
Todas as noites de sábado desde então, familiares, reféns libertados e outros testemunhos sucedem-se no palco, ampliados em ecrãs gigantes. Assim foi no sábado, 30 de Dezembro, dia 84 de cativeiro. Discursos, sobretudo em hebraico, mas também em inglês, por vezes canções.
E cá em baixo, no meio da multidão, um piano de meia cauda silencioso. Destacava-se no escuro por ter o tampo pintado de amarelo, uma escultura de letras amarelas a dizer: YOU ARE NOT ALONE, e por cima a fotografia de Alon Ohel, 22 anos.
Um dos reféns.
"Foi raptado na rave Nova", conta-me Michal, que está noutro ponto da manifestação erguendo a fotografia de Alon presa a uma cana, à semelhança de muitos outros familiares de cada refém. Michal é prima de Alon. "Ele chegou à rave às 5h30... Tinha acabado de chegar quando o Hamas invadiu." Alon cresceu na Galileia, onde moram a mãe, o pai, os irmãos. Toca piano desde os nove anos. E depois de 7 de Outubro foi a família que trouxe para a Praça dos Reféns aquele piano com as letras amarelas, que no topo já tiveram o nome dele: ALON YOU ARE NOT ALONE.
2. Saio da manifestação para apanhar um autocarro de volta a Jerusalém ainda nessa noite. Tinha vindo de lá com Daniella, pintora e terapeuta de dança, filha de um sobrevivente do Holocausto que conheci há 17 anos: Uri Orlev, poeta e autor de contos para crianças. Escrevi sobre ele num livro, Daniella aparece no fim, quando nasce o seu filho mais novo, concebido em Lisboa. Terceira geração.
"Acho que a segunda geração, que é a minha, herdou o medo do Holocausto como algo subterrâneo", diz ela, enquanto caminhamos na noite, ao longo das árvores quase-tropicais de Telavive. "Esse medo veio no sangue, como um ADN. Sempre esteve adormecido, nunca pensei nele. Mas no 7 de Outubro acordou."
Daniella lembra-se da Praça dos Reféns lotada com cem mil pessoas. Veio às manifestações no começo e depois, como muita gente, afastou-se. Era demasiado, precisava de respirar. De continuar viva, para a família, para o trabalho.
Este sábado foi o primeiro em que voltou. Eu tinha-lhe dito que queria ir, sem saber se ela costumava ir ou não, e ela disse que podíamos vir juntas. Desde a casa da mãe dela, Yaara, onde horas antes, ainda dentro do shabat, nos tínhamos reencontrado ao fim de anos.
A mesma velha casa de Jerusalém, cheia de livros e de quadros, em que passei muitas horas de vários dias a conversar com Uri, uma figura adorável, de bigode antigo, que construía coisas com as mãos. Além de escrever.
Morreu em Julho de 2022.
2. Esta quarta-feira, 3 de Janeiro, voltei a Telavive de manhã porque queria ver a praça de dia, sem manifestação. Chovia: lá estava o piano amarelo aberto, com as teclas molhadas. Continuam a soar bem. Lá estava a grande mesa posta para o shabat, com todas as suas cadeiras vazias, à espera dos reféns. E a plateia vazia de cadeiras amarelas com olhos que nos olham. O anfiteatro de espelhos em que cada um vê a sua própria cara. Os corações bordados, as pedras pintadas, as tendas com os familiares, os amigos, os vizinhos, as fitas amarelas que muitos israelitas usam no pulso e que significam: tragam-nos para casa já. As mesmas palavras que estão por toda a parte em hebraico e inglês: Bring Them Home Now, com as caras e as idades dos raptados.
É diante deles, olhados por eles, que entramos em Israel, ao aterrar no único aeroporto internacional, Ben Gurion, porque ao descermos a grande rampa de pedra que leva à saída eles estão de um lado e do outro, como árvores numa avenida, uma alameda de caras. E continuam a partir daí nas esquinas das cidades, nas estações de comboios, nas paragens de autocarro e nos carros, nas portas das casas, nas janelas, nas varandas, nos cafés, até nos bares anarquistas onde se junta a jovem esquerda que em Israel é radical: a que luta contra a ocupação.
E a Praça dos Reféns é o epicentro de toda essa espera, continuando a contar cada minuto no seu ecrã vermelho. O 88.º dia de cativeiro, esta quarta-feira de chuva.
3. "Estamos todos tristes, zangados, ansiosos", diz-me Tova, 73 anos. Apesar da chuva, as pessoas revezam-se na praça, e ela e o marido, Yossi, vieram fazer o turno das 10h às 14h na tenda do kibbutz Nahal Oz, um dos atacados pelo Hamas. Moraram lá dez anos, conhecem vários dos assassinados ou raptados. Este kibbutz teve cinco reféns. A mais idosa, 84 anos, voltou "quase morta". Também voltaram duas irmãs de 14 e oito anos, "mas o pai e o irmão foram assassinados". E continuam em Gaza dois homens, Omri e Tsachi. Tova aponta a fotografia deste último: "Andou no jardim-de-infância com a minha filha."
Os avós de Tova morreram no gueto de Varsóvia. O pai tinha vindo aos 19 anos para Israel, antes da guerra ainda, tal como a mãe. "Tiveram muita sorte." E o medo herdado de que Daniella falou vai aparecer na cara de Tova, a propósito das manifestações na Europa. Do que ela teme que seja contra os judeus.
É, em Israel, uma mulher de esquerda. "Dizer que não gosto deste Governo é pouco. Somos reféns do Governo desde antes da guerra, e foi ele que nos trouxe a esta triste situação. O Governo é terrível, e o Hamas mais terrível: temos de lutar contra ele. Mas temos de ter outro governo, que tente fazer a paz. O Hamas é terrível, mas os palestinianos não são os maus contra os bons. Cada lado tem os seus direitos." E porque é que este Governo chegou ao poder em Israel? "Porque há muitas pessoas religiosas. E porque Netanyahu é um mago, um demagogo, um perito em fazer metade da nação odiar a outra. Mas agora 85% não o querem."
Há dias, 42 sobreviventes da rave Nova processaram o IDF (Forças Armadas), o Shin Bet (segurança interna) e a polícia por terem ignorado avisos sobre o 7 de Outubro. O Governo ignorou alertas. "E Netanyahu não tem vergonha, não sente culpa. Não acho que os tenha ignorado deliberadamente, mas não acreditou neles. Só lhe interessa manter o poder, por causa dos processos de tribunal. E precisou daqueles políticos radicais para um governo." Refere-se a Smotrich (ministro das Finanças) e Ben-Gvir (ministro da Segurança Nacional)? "Sim. Fascistas."
Ao fim de toda esta conversa, quando lhe pergunto o que faz, Tova diz-me que é psicóloga. "Todo o país está traumatizado. Muito mais gente usa ansiolíticos, antidepressivos, procura terapeutas. Eu mesma nas primeiras semanas não dormi. Todos perderam a confiança, a fé. Antes de 7 de Outubro, toda a gente confiava no Exército, e agora sabemos os erros que fizeram. Deixaram a fronteira aberta. As pessoas estão muito desapontadas com o Exército. Mas não o culpam como culpam Netanyahu, vêem isso como erros, não como o mal. Netanyahu é o mal. E não temos outro Exército."
Tova lamenta que Obama não tenha pressionado Israel a fazer a paz. "Israel precisa de um Presidente americano que seja duro com Israel."
4. Ao fim da tarde, o piano amarelo da praça vai ter um intérprete célebre a tocar, em homenagem a Alon Ohel. Os pais do refém vieram de propósito a Telavive. Já não estarei lá, mas tenho estado a trocar mensagens com Idit, a mãe, desde a véspera. E depois do concerto falamos. "Não sou política. Só quero que o meu filho volte, e esteja em casa connosco. Este é o meu país, e quero acreditar que o Governo fará tudo para o trazer."
Alon foi um dos reféns que fugiram para um abrigo em Re'im, onde o Hamas lançou granadas e muita gente foi massacrada. "Há um vídeo do rapto, por isso sabemos que foi raptado, e que estava bem. Pelo menos, isso é bom." Semanas antes, voltara de uma longa viagem pela Ásia. O plano dele era mudar para Telavive e continuar a estudar música. "Pusemos o piano na praça para as pessoas tocarem, porque a música é uma linguagem universal", diz Idit. "É nisso que acredito."
Não está sozinha. Pianos na rua não é raro em Israel. Só nesta quarta-feira, além do piano amarelo de Alon, vi de manhãzinha um que está na estação de comboios de Jerusalém e à tarde outro no Parque Sacher, entre dois relvados.
Pelo meio perdi a conta às fardas e armas penduradas ao ombro, em qualquer rua, autocarro, comboio ou parque.
Tudo no mesmo país
https://www.publico.pt/2024/01/04/mundo/cronica/praca-triste-israel-2075629
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