OPINIÃO
O contínuo político-mediático muda o carácter daquilo a que chamávamos jornalismo. Nãodianta virem-me dizer que essa relação existiu desde sempre em democracia, porque a resposta é não.
6 de Janeiro de 2024, 6:26
Há muitos anos
que escrevo sobre um dos factores que penso estar na origem da crise das
democracias, o domínio da política democrática pela sua transformação num
contínuo político-mediático, que diminui a autonomia da decisão política e a
torna cada vez mais dependente dos mecanismos da comunicação social e da sua
evolução. Seguindo as tendências actuais, da ignorância agressiva, à
culpabilidade afectiva, à colocação da racionalidade como uma coisa do passado
e de velhos, sem capacidade de competir com o glamour da
superficialidade, tudo puxando para baixo, a política foi pelo mesmo caminho de
vulgaridade e comodismo.
Isso afecta a
qualidade da democracia, e o contínuo político-mediático muda o carácter
daquilo a que chamávamos jornalismo. Não adianta virem-me dizer que essa
relação existiu desde sempre em democracia, porque a resposta é não.
Na forma
actual, é um fenómeno recente porque não temos, de um lado a política, os
partidos, os políticos e, do outro, os jornais, a rádio e a televisão,
influenciando-se mutuamente pela mediação da chamada “opinião pública”, mas
apenas um lado, o sistema político-mediático, em que cada vez mais os factos,
as opiniões, as interpretações são moldados por mecanismos mediáticos em que
participam políticos e jornalistas, cada vez mais com uma cultura de acção
semelhante e dependente de efeitos comunicacionais tais como a novidade,
o timing, o tipo de resposta, a rapidez, a frase assassina, a falta
de estudo e de rigor. As redes sociais e novas formas de acesso àquilo que
passa por ser informação, mas que é pouco mais do que entretenimento afectivo,
apagaram o ethos e o logos, a favor do pathos.
Mergulhadas
numa pasta emotiva e lúdica, as pessoas são mais pobres na cabeça e remediadas
no corpo. E como há quem saiba aproveitar-se disto, são usadas e perdem a
liberdade de decidir. Isso aproxima o contínuo político-mediático de formas
modernas de propaganda, chamada agora marketing político, em que, de novo, mais
uma vez, a principal perda é a da autonomia da política, mas também do
jornalismo. E facilita a manipulação por interesses sociais, económicos e
culturais, nacionais e geopolíticos. A interferência russa nas eleições
americanas de 2016 e no “Brexit”, o papel de empresas como a Cambridge
Analitics, fornecendo estudos que permitem manipulações de grupos
seleccionados, são mais a regra do que a excepção, e esse mundo só se combate
pela cultura, pelo saber, e pela firmeza na acção.
O que se passa
em Portugal, um pouco como na Europa, tem relação directa com o alimentar do
populismo. Sim, os governos fazem asneiras, há políticos corruptos e apanhados
em mentiras, tudo isto é verdade. Têm uma enorme responsabilidade. Mas nada
disso seria tão eficaz a alimentar o populismo sem a existência deste contínuo
político-mediático que produz a chuva de migalhas que alimenta a
extrema-direita.
A informação
torna-se muito pobre, a manipulação muita. Isto permite a quem tenha meios e
recursos recorrer a profissionais da desinformação ou, no caso dos Estados, a
serviços secretos, para obter resultados usando todas as técnicas, das fake
news à inteligência artificial, para moldar segundo os seus interesses
a opinião pública, logo, o voto.
Parte da
nossa esquerda abandonou a luta social em nome das modas 'fracturantes',
deixando os milhões de portugueses que são pobres, excluídos e explorados fora
de moda, num limbo comunicacional como 'pobres, sujos e maus'
No caso
português, a dominação da vida mediática pela direita política não é de agora.
Embora se continue a dizer que a maioria dos jornalistas são de esquerda, isso
tem um pequeno papel face àquilo a que antes se chamava as ideias dominantes.
Uma parte da nossa esquerda abandonou a luta social em nome das modas
“fracturantes”, falando assim para pequenas minorias intelectuais urbanas,
fazendo um enorme serviço à direita canalizando para as “guerras culturais” de
elite a sua energia e deixando os milhões de portugueses, que são pobres,
excluídos e explorados, fora de moda, o que também significa apagá-los da sua
condição existencial num limbo comunicacional como “pobres, sujos e maus”.
Esses portugueses não brilham no escuro como as novas vedetas do neocapitalismo
triunfante, como as start-ups, os “unicórnios”, os empreendedores,
os nerds das novas tecnologias, as influencers,
heróis do jetset e das redes sociais. O resultado é que muitas
ideias da direita política ficaram na moda, dominaram jornais e televisões, num
terrível mecanismo de não-pensamento e de ignorância.
Veja-se um
exemplo dos anos da troika, em que a chamada TINA, a ideia de que
não havia alternativa a uma política de austeridade tendo como alvos os “de
baixo”, se tornou na vulgata ideológica que políticos, jornalistas, lobistas
repetiram da direita à esquerda. Quando alguém apresentava uma proposta, a
primeira pergunta era “quanto custa?”, em vez de ser “qual o mérito da
proposta?”, mesmo que custasse algum dinheiro. E poderia também ser “quem é que
a vai pagar?”. “Quanto custa?” é uma pergunta que tem sentido, principalmente
em tempos de escassez, mas teria de ser sempre a segunda pergunta, e não a
primeira. A partir daqui estamos num terreno de legitimação da TINA, que depois
se somava à apresentação selectiva de alvos nas despesas de segurança social,
nos pensionistas e nos idosos, a “peste grisalha” que ameaçava o futuro dos
jovens.
O contínuo
político-mediático é um excelente instrumento para a manipulação do
justicialismo
Nos dias de
hoje, o contínuo político-mediático é um excelente instrumento para a
manipulação do justicialismo, que sabe para quem orientar as suas fugas de
informação – jornalistas e órgãos de comunicação –, escolhendo o tempo dessas
fugas para obter ou efeitos políticos ou efeitos de autojustificação dos seus
actos quando fez asneiras, mas acima de tudo escolhendo os interlocutores das
fugas que sabe que lhes darão de imediato a máxima publicidade e as apontarão
aos alvos escolhidos. Antes de alguém parar para pensar e ver o que há de
substancial, já títulos e frases estão por todo o lado e a sua impressão não é
apagável.
É que, no
passado, a política em democracia era suposto servir o bem-estar das pessoas, e
o jornalismo a informação e o escrutínio do poder. Hoje, o sistema
político-mediático serve interesses e intenções dos poderosos, mas deixa as
pessoas comuns com menos liberdade e menos poder. É, para alguns, trabalho bem
feito. Para a democracia, é péssimo.
O autor é
colunista do PÚBLICO
https://www.publico.pt/2024/01/06/opiniao/opiniao/destruicao-razao-2075882
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