A guerra de
palavras entre colonos e israelitas no sul da Cisjordânia: “De que lado estás
tu?” “Sei de que lado é que não estou”
CLODAGH
KILCOYNE/REUTERS
Desde 7 de
outubro, agravam-se os confrontos entre colonos e palestinianos - e também
entre israelitas - na Cisjordânia, a parte do território ocupado que a guerra
na Faixa de Gaza faz esquecer. Tomar partido é tudo menos fácil
Francesca
Borri, na Cisjordânia
“Asinagoga
contra a qual atiraram cocktails Molotov era a minha sinagoga. Eu vivi lá. As
paredes onde pintaram estrelas de David, atingidas por pedras e garrafas, eram
as paredes dos cafés, das ruas que eu frequentava. Acima de tudo, senti
solidão. Nunca me perguntaram como estava. Se conhecia algum dos mortos, ou dos
reféns. Ninguém. E se eu falasse do 7 de outubro, respondiam-me logo com Gaza.
Como se o ataque do Hamas fosse não só uma reação à ocupação, como a reação
certa. De repente, percebi que Berlim já não era a minha casa. Na verdade,
nunca foi.” Há cinco anos, Ayala Odenheimer, de 31 anos, mudou-se para a
Alemanha, país de origem da sua família. Após o aumento do antissemitismo a
seguir ao ataque de 7 de outubro, decidiu regressar a Israel.
Não voltou a
Jerusalém, sua cidade-natal. Foi diretamente para Masafer Yatta, a sul de
Hebron, uma das zonas mais concorridas da Cisjordânia. Aqui os colonos são dos
mais extremistas, e sempre houve confrontos, até hoje. Só que agora é
diferente. Cada vez mais israelitas chegam de todo o país para proteger os
palestinianos. Fazem turnos. Não são ativistas nem têm uma organização atrás
deles. É tudo passa-palavra. Vai um, vem outro.
Masafer Yatta é
um daqueles pedaços de mundo onde a vida parece um relatório da Amnistia
Internacional. Em árabe, significa “nada”. Não é mais do que um encadeado de
montes de terra e areia, polvilhada de sarças e cabanas de pastores, esparsas e
isoladas. Não há melhor presa para os colonos.
Em 1983,
Masafer Yatta tornou-se a Zona de Tiro 918, sob os militares. Hoje, pende sobre
cada casa e cada um dos seus cerca de mil habitantes uma ordem de demolição. A
partir de 7 de outubro, tudo se tornou mais difícil. Os colonos disparam à
vista.
SE FALHA A
SEGURANÇA, FALHA TUDO
“É tudo muito
complicado. Sempre me opus à ocupação e nunca imaginei, um dia, estar grata ao
exército, mas o certo é que em Gaza as Forças de Defesa de Israel [IDF] também
arriscam o pescoço por mim. É que somos todos alvos, independentemente das
nossas opiniões”, afirma Sharon Kasper, de 23 anos, rastas e capuz. “É um pouco
como regressar a 1948, à casa de partida. Totalmente vulneráveis. Israel nasceu
para evitar novo Holocausto. Para um judeu, a essência do Estado é a segurança.
Se ela falha, falha tudo. O 7 de outubro minou a própria ideia de Israel.”
“Sei que é
contraditório, mas a verdade nunca é a preto e branco”, prossegue Kasper. “A
verdade é que temos de vencer nas duas frentes. Se não estivesse aqui, ia para
Gaza.”
O objetivo não
é só defender os palestinianos. Antes de mais, é confrontar os colonos com
israelitas como eles, em vez dos muitos ativistas estrangeiros que regularmente
passam por Masafer Yatta: falar com eles, e em hebraico.
“A questão dos
colonatos vai definir o nosso futuro, mais do que qualquer outra. No fundo,
isto é connosco”, afirma Yigal Bronner, de 54 anos, professor de sânscrito na
Universidade Hebraica. “O mundo vai aplaudindo das bancadas, torce por um lado
ou pelo outro e dispõe-se a justificar tudo, mais fundamentalista do que o
maior dos fundamentalistas. E isso só faz mal. Aqui, ninguém apoia Netanyahu,
mas ninguém está contra Israel. Pelo contrário, estamos contra Netanyahu
precisamente por apoiarmos Israel.”
As IDF arrastam
um francês algemado. E tudo por causa de uma publicação no Facebook, denuncia
um espanhol que viu tudo. Chama-lhes “fascistas”. O francês não escreveu nada
de especial, mas uma análise mais demorada mostra que ao escrever “colonos”
está a referir-se a todos os israelitas e não apenas aos que moram nos
colonatos. E no dia 7 de outubro elogiou e vitoriou o Hamas.
Estão dias
gelados e nevoeirentos. Chove e a água entra pelas casas. Susiya é um de 13
bairros que sobram, mas os seus prédios, várias vezes demolidos e
reconstruídos, já não são propriamente casas. Placas de betão e metal, montadas
com contraplacado, poliestireno e juta, a partir de restos de habitações, sem
eletricidade sequer. Dorme-se no chão, ao lado de um braseiro que é um barril
cortado ao meio, enferrujado e cheio de lixo em vez de lenha.
Os colonos
estão por toda a parte e fogem ao controlo. Atacam cada cabana, uma a uma,
vezes sem conta. Os israelitas nunca deixam os palestinianos em paz. Passam o
tempo sob luz ténue, falando uns com os outros em hebraico e árabe. A maior
barreira não é a política nem a religião, antes a língua.
PARA OS
COLONOS, TUDO
“Antes dos
acordos de Oslo, era normal vir à Cisjordânia ou ir à praia em Gaza. Hoje é
proibido. Há o muro”, afirma Hagai Livne, estudante de matemática de 23 anos.
“Muitos israelitas também gostariam de ver Ramallah, tal como os palestinianos
queriam ir a Telavive.”
“Sei que não
basta vir aqui. Não me sinto absolvido. Já a guerra estava em curso quando
foram atribuídos 43 milhões de dólares [39 milhões de euros] aos colonatos. O
Estado gasta três vezes mais com um colono do que com qualquer outro cidadão, e
com os meus impostos. Por vezes digo-me que trabalho cinco dias por semana para
os colonos, e dois contra eles. E compreendo quem diz que quem é israelita é
cúmplice”, explica Ze’ev Matar, arquiteto de 56 anos. “Nos Estados Unidos ou na
Europa, apoia-se sempre a ocupação. É um conflito que nos implica a todos, cada
um desempenha um papel.”
“Não é mesmo
possível classificar ninguém, de ambos os lados”, defende Ariel Cohen. “Daí que
isto seja tão complexo. Ninguém é 100% inocente nem 100% culpado.” Tem 35 anos,
como Hayim Katsman, com quem vinha aqui frequentemente, e que foi assassinado
no kibbutz Holit.
Admite ter
muitas dúvidas. “O verdadeiro problema virá mais tarde, quando a guerra acabar.
É claro que o Hamas é o inimigo, mas, e os outros? Os outros palestinianos, com
quem vamos a manifestações, os que são daqui. Nenhum condenou o 7 de outubro,
nem mesmo os que defendem um único Estado. Por isso pergunto-me: e se isto não
passar de uma tática, de uma armadilha para se tornarem maioria e nos apagarem?
Que querem eles, afinal?”. Lá fora, ladram cães, atentos a qualquer sombra,
qualquer brisa. Aqui não há mais nada: cães e a voz difusa vinda de walkie-talkies,
que toda a gente usa para fazer de sentinela, alertando para rusgas, pilhagens,
ataques. Não há descanso, nem aqui nem no resto da Cisjordânia.
Jenin foi
bombardeada há pouco. Três mortos em Nablus, um em Ramallah.
“DE QUE LADO
ESTÁS TU?”
Por volta da
meia-noite, calha de novo a Susiya. Sete colonos saltaram da escuridão, de M16
ao ombro, e partiram tudo quanto encontraram. Quando ouvem hebraico, ficam
baralhados. “Quem são vocês, porra?”, pergunta um deles, chocalhando um
israelita. Outro deixa-se estar no caminho. “Só tenho este país, e não vou
deixar-vos fazerem outro 7 de outubro”, garante. “O 7 de outubro foi culpa
vossa, e foi pior do que o 11 de setembro. Não vos basta?”, responde o colono,
atacando-o. “E a guerra de Gaza, é o quê, à proporção? Hiroxima?”, replica o
israelita.
“Quando
acabarmos o trabalho em Gaza vimos ter convosco!”, promete o colono, enquanto
um palestiniano se esconde atrás do israelita. “É com ele que estou a falar!”,
grita o colono, apontando para o israelita, e agora é este que se esconde atrás
do palestiniano, que apanha com cuspo na cara.
“Cabrão!”,
grita-lhe o colono. “Amigo das crianças!”, berra, em referência a um vídeo que
circula desde o dia 7 de outubro, e que mostra um jiadista a dar água a um
rapazinho de um kibbutz, cujos pais acaba de matar, enquanto assegura que o
Hamas respeita as crianças. Esse filme ainda é dos mais populares entre os
palestinianos. “De que lado estás tu?”, pergunta o colono ao israelita, que
entretanto liga para a polícia. Fica em silêncio um momento, hesita e diz: “Sei
de que lado é que não estou”.
2024 01 04
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