quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Miguel Esteves Cardoso - Só encomendando

 * Miguel Esteves Cardoso

OPINIÃO

Obrigaram-me a pensar no futuro, como um Arthur C. Clarke de trazer por casa. É triste, mas, como todas as coisas tristes, um dia havemos de nos convencer que sempre foi assim.

A coisa que mais me custou quando vim morar para a Província foi ter de encomendar tudo. Tinha-se acabado a espontaneidade. Tinha-se acabado o apetecimento. Tinha-se acabado o “logo se vê”.

Agora, se quero um jornal ou um queijinho, se acho que me vai apetecer um iogurte grego ou um cabrito, tenho de encomendar. Se não encomendar, já se sabe. Parece que têm prazer em informar-me: “Já foi tudo.”

Obrigaram-me a pensar no futuro, como um Arthur C. Clarke de trazer por casa, exilado numa praia deslumbrante do Sri Lanka, mas sem nada para ler, porque se tinha esquecido de reservar o Sunday Times – apesar de só chegar à quarta-feira.

Obrigaram-me a adivinhar-me, como se eu fosse um autómato: no sábado, vai-me apetecer um pão de centeio. Que remédio: do pão de centeio já não me livro. Mesmo que leve um mês para ir buscá-lo, ele está lá à minha espera, guloso pela cobrança.

Lisboa passou a ser uma miragem: lá, os modernos só decidem o que querem à última hora. “É o Le Monde, um pastel de nata vegano e um carioca de lima, se fizer favor”, dizem à meia-noite, no bar da Cinemateca, antes de voltar a entrar para a Retrospectiva de Jim Jarmusch.

Mas agora parece que Lisboa também aderiu à província: também é preciso encomendar tudo. Sexta-feira às 5 da manhã reservei uma mesa num restaurante lisboeta onde nunca tinha ido. Graças ao Street View da Google descobri logo onde ficava, podendo planear uma voltinha pre-prandial pela vizinhança. Depois reservei e paguei um lugar para estacionar, das 12h às 16h, ali perto, no Bairro Alto. E pude percorrer o trajecto com os olhos, para saber quanto teria de andar. Se não soubesse lá chegar, o Waze indicar-me-ia o caminho.

Tudo isto sem me levantar do sofá, sem ter de falar com ninguém (até porque estava tudo a dormir), graças ao milagre da Internet. E a espontaneidade? Ficou para a escolha de sobremesas. É triste, mas, como todas as coisas tristes, um dia havemos de nos convencer que sempre foi assim.

18 de Janeiro de 2024

Colunista

https://www.publico.pt/2024/01/18/opiniao/opiniao/so-encomendando-2077173

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