LIVRE DE ESTILO
Uma newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.
Bárbara Reis
31 de janeiro de 2024
É fácil
criticar as televisões: fazem coisas boas, mas vivem para as audiências, cortam
a palavra a políticos para a darem a futebolistas, fazem maratonas de directos
sem nada de novo, alimentam a superficialidade, copiam os jornais.
É tudo sabido.
O que me traz
aqui hoje é a cobertura que as televisões estão a fazer do Chega.
Não escrevi
"Chega" no título e optei pela fórmula
"RAPiana" do Programa cujo nome estamos legalmente
impedidos de dizer. Podia dizer "Chega" – e o Chega
agradecia – mas não vale a pena.
Vou dar dois
exemplos de como as televisões estão a ajudar o Chega a crescer. É literal.
Não terá
reparado, mas na quarta-feira, dia 24, o Chega anunciou que ia fazer
um "congresso eleitoral" no sábado, 27, em Sacavém, entre as 15h
e as 19h, para apresentar "as linhas fundamentais" do seu programa
eleitoral. Como o partido teve um congresso há duas semanas, o anúncio causou estranheza.
Mais um congresso?
O que fizeram
os media com este anúncio?
Às 19h20,
o Correio da Manhã publicou uma notícia com o título ‘Cortar
a direito pela decência’: André Ventura aponta critério do Chega sobre casos de
corrupção. A notícia tem 1500 caracteres e refere o "Congresso
Eleitoral do Chega", mas em nenhum momento fala das "linhas
fundamentais" do programa eleitoral do partido, as tais que iam ser
apresentadas.
A seguir, às
19h42, a agência Lusa publicou uma peça, com o título Eleições: Ventura
acusa PSD de incoerência e PS de preparar ‘maior ataque à justiça’ se vencer.
Tem 2200 caracteres e, de novo, nem uma palavra para as "linhas
fundamentais". Que tenha visto, só a Rádio Renascença publicou esse "take"
da Lusa. Muitos media optaram por ignorar, não publicaram a
Lusa e não enviaram repórteres para Sacavém.
O que fizeram
as televisões nesse sábado com o congresso-que-não-era-um-congresso? Um
festim.
A SIC Notícias
fez um directo do pseudo-congresso às 16h19. Três minutos. Às 17h37 fez um novo
directo. Mais três minutos. Mal acaba o directo, entrevista a uma analista,
Cátia Moreira de Carvalho, da Universidade do Porto – a investigadora num canto
e imagens do "congresso" em dois terços do ecrã. Mais cinco minutos.
A seguir, Paulo
Baldaia e Maria João Marques aparecem a comentar. O quê? O Chega. No rodapé:
"Chega realiza convenção eleitoral". O que ocupa a maior parte do
ecrã? Ventura, claro. Falam até às 18h18, quando Ventura começa o discurso –
que é um comício, não é a apresentação de "linhas fundamentais".
Das 18h18 às
18h23, a SIC Notícias dá o discurso em directo. Mais cinco minutos. A seguir,
os comentadores regressam e voltam a comentar o Chega. Já vamos em quantos
minutos sobre um congresso que não é um congresso? Corta para publicidade e, às
19h08, a SIC Notícias emite uma peça sobre o discurso de Ventura. Mais dois
minutos. Seguido de quê? Da análise de Sebastião Bugalho e Miguel Morgado.
Sobre o quê? Ventura. Estamos nisto até às 19h21.
Na CNN, a festa
foi parecida. Entre as 18h e as 20h30, o Chega e Ventura estão perto de
omnipresentes. Às 18h16, Sara de Melo Rocha, pivot, diz "por
falar em extrema-direita", como forma de anunciar que a estação vai
"acompanhar a apresentação do programa eleitoral", Ventura já está a
falar no não-congresso e entra em directo.
O líder do
Chega está a dizer que "o país ficará espantado", pela positiva, com
o seu programa eleitoral, há muitas palmas, mas "linhas
fundamentais", zero. Até às 18h21, Ventura fala em directo sobre a
"podridão", "degradação" e "corrupção", no seu
habitual retrato de Portugal como o país mais decadente do planeta.
A pivot Melo
Rocha corta o directo e resume: "Para já, ainda não há medidas
apresentadas". Percebe-se o esforço. Mas alguém acreditou que ia haver? A
maioria dos media não acreditou e nem foi a Sacavém.
Cinco minutos
depois, o Chega regressa à CNN, com dois comentadores, Miguel Pinheiro e Paulo
Ferreira. Como antes, os dois disseram coisas úteis e incisivas. Ferreira disse
que está "curioso para ver o programa eleitoral do Chega" para
"perceber a consistência das políticas", "e já agora", que
"propostas exequíveis têm" – como quem diz, ainda não vimos nenhuma.
Pinheiro desmonta a hipocrisia da proposta do Chega para a TAP e faz um
alerta – o silêncio dos partidos sobre a Madeira, que deixam Ventura a
falar sozinho, tem um resultado: "Estendem o tapete vermelho a
Ventura."
Será verdade:
os partidos têm uma quota-parte de responsabilidade. E as televisões, qual é a
sua quota? Os dois falam do Chega até às 18h31. O noticiário da CNN prossegue.
Às 19h lá regressa o Chega, a criticar o PSD. Mais um minuto. Às 19h16, mais
dois comentadores, André Macedo e Miguel Santos Carrapatoso, e aparece de novo
Ventura em directo a fechar o "congresso" com a bandeira de Portugal
ao ombro.
A seguir, das
20h16 às 20h31, a CNN entrevista dois constitucionalistas: Jorge Bacelar Gouveia (que foi à última academia de
Verão do Chega) e Luís Menezes Leitão (cujo assistente na Universidade de
Lisboa era João Lemos Esteves, fã incondicional do Chega e director
de sites de extrema-direita dedicados a propagar fake
news). Não digo que a CNN não os oiça como especialistas em Constituição,
mas os dois ao mesmo tempo e durante 15 minutos?
Volta a crise
na Madeira – foi na sexta-feira que o presidente da câmara do Funchal anunciou a demissão – e a CNN anuncia uma peça para as reacções.
São 20h31 e o pivot diz: "Seguimos para reacções
políticas." Quem abre a sequência de reacções? Acertou: o Chega. Ventura
fala do "congresso" durante um minuto inteiro. Só depois vem a
reacção do PS, IL, BE e Livre. Já agora, daria uma newsletter mais
longa comparar os minutos (muitíssimo menos) que as televisões deram neste
mesmo sábado ao Livre, que teve um congresso – verdadeiro, foi o 13.º, durou
dois dias e debateu-se o programa –, e ao PS, que teve um fórum (a palavra
escolhida) para discutir propostas, durante o qual Pedro Nuno Santos anunciou
propostas novas e concretas.
Já terá perdido
a paciência com tanto pormenor. Isto é só um exemplo: um pseudo-evento e duas
televisões. O Chega cresce por muitas razões. As televisões não podem pôr a
cabeça na areia e fazer de conta que nem sabem do que estamos a falar.
https://www.publico.pt/2024/01/31/newsletter/livre-estilo
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