terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Carlos Coutinho - Sangue e vinho

 


Carlos Coutinho

POUCAS expressões haverá tão falsas e tão mal aplicadas como a de “pagar com a mesma moeda”, já que, literalmente, se alguém me “paga com a mesma moeda”, esse alguém apenas está a devolver-me a moeda com que eu lhe tinha pagado, seja um elogio, um piscar de olhos, uma carícia, uma ofensa ou um pontapé. O que mostra bem como, até em tempo seco, persiste escorregadio o idioma português, mesmo em pleno século XXI.

   Não me ocorreu ontem esta questão, quando eu aqui falava de sangue e de vinho, o que, bem vistas as coisas, o próprio acontecer quotidiano é uma coincidência aleatória de situações equívocas, ou pior, contraditórias entre si, reformuláveis ao gosto do freguês e desprezíveis à luz da causalidade involuntária.

   Hoje, por exemplo, estava na minha agenda, sucessivamente e sem apelo nem agravo, despertar involuntariamente, ao som da “Rapsódia Húngara n.º 15 de Schumann, tomar um pequeno almoço quase invariável, ir ler o jornal para o café do costume, seguir para um velório no momento apropriado, integrar-me no funeral e, ao fim do dia, partir para Lisboa, onde me espera um jantar familiar com a entrega das prendas de natal que, também por imposição de agenda, vão chegar às mãos dos destinatários com um mês de atraso.

   Imagine-se, então, como teria evoluído a Humanidade a partir do dia 22 de janeiro de 1506, com o arranque da Guarda Suíça Pontifícia (em latim, Custodes Helvetici e em italiano Guardie Svizzere) que ficou responsável pela segurança do Papa.

   Hoje, este grupo carnavalesco constitui as forças armadas da Cidade do Vaticano e é composto por 5 oficiais, 26 sargentos e cabos e 78 soldados. Ainda por cima, trata-se da única guarda no mundo cuja bandeira é alterada sempre que muda o chefe de Estado, pois contém o emblema pessoal do novo papa

   Inicialmente, a Guarda Suíça era um conjunto de soldados mercenários suíços que se fartaram de combater por diversas potências europeias entre os séculos XV e XIX. Agora só servem o Vaticano e nasceram do atendimento a uma solicitação de proteção feita em 1503 pelo Papa Júlio II aos nobres suíços.

   Cerca de 150 nobres tidos como os melhores e mais corajosos chegaram a Roma, idos de Zurique, Uri, Unterwalden e Lucerna. O seu comandante era o capitão Kaspar von Santoesilenen.

   A batalha mais expressiva destes guerreiros a soldo foi em no dia 6 de maio de 1527, quando as tropas invasoras imperiais de Carlos V de Habsburgo em guerra com Francisco I, entraram em Roma.

   O exército imperial era composto de cerca de 18 mil mercenários. Em frente à Basílica de S. Pedro e, depois, nas imediações do altar-mor, a Guarda Suíça lutou contra cerca de mil soldados alemães e espanhóis. Combateram ferozmente, formando um círculo â volta do Papa à volta do Papa Clemente VII, protendo-o e levando-o logo que possível para o Castelo de Santo Ângelo, onde ficou em segurança.

   Faleceram na refrega 147 guardas, mas em contrapartida 900 dos mil mercenários do assalto caíram mortos pelas alabardas dos suíços.

   Saiba-se, já agora, que o Papa Pio V (1566-1572) enviou a Guarda Suíça para combater contra os turcos na famosa Batalha de Lepanto. Com Pio VI, a guarda foi dissolvida, já que este papa foi enviado para o exílio por Napoleão, e voltou a formar-se em 1801, tendo desempenhado, em 1848, um papel decisivo na defesa do Palácio Apostólico, frente aos revolucionários nacionalistas italianos.

   Quando a Alemanha nazi ocupou Roma, em setembro de 1943, duas semanas depois de eu nascer, a Guarda Suíça e as outras unidades que na época constituíam as formas armadas papais, como a Guarda Palatina, foram colocadas em estado de alerta.

   Os guardas trocaram as alabardas e as espadas por espingardas Mauser 98K.  Nessa altura a Guarda tinha apenas 60 homens, pelo que poderia apenas ter feito uma resistência simbólica a qualquer ataque. No próprio dia em que os alemães ocuparam Roma, Pio XII, muito ligado aos tedescos, proibiu a Guarda Suíça de derramar sangue em sua defesa.

   Desde a tentativa de assassínio de João Paulo II, a 13 de maio de 1981, as funções não cerimoniais da guarda passaram a receber uma maior atenção. Os soldados passaram a utilizar pequenas armas de fogo e atuar como uma guarda pessoal moderna, inclusive com membros à paisana acompanhando o Papa nas viagens ao estrangeiro.

   Em 4 de maio de 1998, o coronel da Guarda Suíça, de nome Alois limpou o sarampo a sua mulher, Gladys Meza Romero, bem como ao vice-cabo Cédric Tornay, já que foram encontrados mortos no apartamento de Estermann. O que estavam a fazer não consta dos documentos, mas a versão oficial do Vaticano atribui a responsabilidade do delito ao vice-cabo Tornay.

   Nas comemorações do 500.º aniversário da Guarda Suíça, em abril de 2006, 80 ex-guardas marcharam de Beliinzona, no Sul da Suíça, para Roma, fazendo o mesmo trajeto da marcha dos 200 guardas suíços originais que assumiram o serviço papal em 1505. 

    Grande caminhada, sem dúvida, mas bem regada.

   Outras efemérides datadas de 22 de janeiro podem, no entanto, ser para aqui carreadas:

   1808 — Chegada ao Brasil da família real portuguesa que fugiu à inevitável captura na invasão francesa iniciada dois meses antes.

   1905 — Domingo Sangrento em São Petersburgo, Rússia czarista, iniciando de uma revolução fracassada, e, nos EUA, criação do Central Intelligence Group, primeiro nome da atual CIA.

   E hoje o Presidente Lyndon B. Johnson, que levou até ao genocídio a guerra que Kennedy lhe deixara no Vietname, faria 116 anos, se não tivesse morrido em 1973.


2024 01 23

           IMAGEM - Membros da Guarda Pontifícia marchando dentro da   Basílica de S. Pedro 


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