* Carlos Coutinho
POUCAS expressões haverá tão falsas e tão
mal aplicadas como a de “pagar com a mesma moeda”, já que, literalmente, se
alguém me “paga com a mesma moeda”, esse alguém apenas está a devolver-me a
moeda com que eu lhe tinha pagado, seja um elogio, um piscar de olhos, uma
carícia, uma ofensa ou um pontapé. O que mostra bem como, até em tempo seco,
persiste escorregadio o idioma português, mesmo em pleno século XXI.
Não me ocorreu ontem esta questão, quando eu
aqui falava de sangue e de vinho, o que, bem vistas as coisas, o próprio
acontecer quotidiano é uma coincidência aleatória de situações equívocas, ou
pior, contraditórias entre si, reformuláveis ao gosto do freguês e desprezíveis
à luz da causalidade involuntária.
Hoje, por exemplo, estava na minha agenda,
sucessivamente e sem apelo nem agravo, despertar involuntariamente, ao som da
“Rapsódia Húngara n.º 15 de Schumann, tomar um pequeno almoço quase invariável,
ir ler o jornal para o café do costume, seguir para um velório no momento
apropriado, integrar-me no funeral e, ao fim do dia, partir para Lisboa, onde
me espera um jantar familiar com a entrega das prendas de natal que, também por
imposição de agenda, vão chegar às mãos dos destinatários com um mês de atraso.
Imagine-se, então, como teria evoluído a
Humanidade a partir do dia 22 de janeiro de 1506, com o arranque da Guarda
Suíça Pontifícia (em latim, Custodes Helvetici e em italiano Guardie Svizzere)
que ficou responsável pela segurança do Papa.
Hoje, este grupo carnavalesco constitui as
forças armadas da Cidade do Vaticano e é composto por 5 oficiais, 26 sargentos
e cabos e 78 soldados. Ainda por cima, trata-se da única guarda no mundo cuja
bandeira é alterada sempre que muda o chefe de Estado, pois contém o emblema
pessoal do novo papa
Inicialmente, a Guarda Suíça era um conjunto
de soldados mercenários suíços que se fartaram de combater por diversas
potências europeias entre os séculos XV e XIX. Agora só servem o Vaticano e
nasceram do atendimento a uma solicitação de proteção feita em 1503 pelo Papa
Júlio II aos nobres suíços.
Cerca de 150 nobres tidos como os melhores e
mais corajosos chegaram a Roma, idos de Zurique, Uri, Unterwalden e Lucerna. O
seu comandante era o capitão Kaspar von Santoesilenen.
A batalha mais expressiva destes guerreiros
a soldo foi em no dia 6 de maio de 1527, quando as tropas invasoras imperiais
de Carlos V de Habsburgo em guerra com Francisco I, entraram em Roma.
O exército imperial era composto de cerca de
18 mil mercenários. Em frente à Basílica de S. Pedro e, depois, nas imediações
do altar-mor, a Guarda Suíça lutou contra cerca de mil soldados alemães e
espanhóis. Combateram ferozmente, formando um círculo â volta do Papa à volta
do Papa Clemente VII, protendo-o e levando-o logo que possível para o Castelo
de Santo Ângelo, onde ficou em segurança.
Faleceram na refrega 147 guardas, mas em
contrapartida 900 dos mil mercenários do assalto caíram mortos pelas alabardas
dos suíços.
Saiba-se, já agora, que o Papa Pio V
(1566-1572) enviou a Guarda Suíça para combater contra os turcos na famosa
Batalha de Lepanto. Com Pio VI, a guarda foi dissolvida, já que este papa foi
enviado para o exílio por Napoleão, e voltou a formar-se em 1801, tendo
desempenhado, em 1848, um papel decisivo na defesa do Palácio Apostólico,
frente aos revolucionários nacionalistas italianos.
Quando a Alemanha nazi ocupou Roma, em
setembro de 1943, duas semanas depois de eu nascer, a Guarda Suíça e as outras
unidades que na época constituíam as formas armadas papais, como a Guarda
Palatina, foram colocadas em estado de alerta.
Os guardas trocaram as alabardas e as
espadas por espingardas Mauser 98K.
Nessa altura a Guarda tinha apenas 60 homens, pelo que poderia apenas
ter feito uma resistência simbólica a qualquer ataque. No próprio dia em que os
alemães ocuparam Roma, Pio XII, muito ligado aos tedescos, proibiu a Guarda
Suíça de derramar sangue em sua defesa.
Desde a tentativa de assassínio de João
Paulo II, a 13 de maio de 1981, as funções não cerimoniais da guarda passaram a
receber uma maior atenção. Os soldados passaram a utilizar pequenas armas de
fogo e atuar como uma guarda pessoal moderna, inclusive com membros à paisana
acompanhando o Papa nas viagens ao estrangeiro.
Em 4 de maio de 1998, o coronel da Guarda
Suíça, de nome Alois limpou o sarampo a sua mulher, Gladys Meza Romero, bem
como ao vice-cabo Cédric Tornay, já que foram encontrados mortos no apartamento
de Estermann. O que estavam a fazer não consta dos documentos, mas a versão
oficial do Vaticano atribui a responsabilidade do delito ao vice-cabo Tornay.
Nas comemorações do 500.º aniversário da
Guarda Suíça, em abril de 2006, 80 ex-guardas marcharam de Beliinzona, no Sul
da Suíça, para Roma, fazendo o mesmo trajeto da marcha dos 200 guardas suíços
originais que assumiram o serviço papal em 1505.
Grande caminhada, sem dúvida, mas bem
regada.
Outras efemérides datadas de 22 de janeiro
podem, no entanto, ser para aqui carreadas:
1808 — Chegada ao Brasil da família real
portuguesa que fugiu à inevitável captura na invasão francesa iniciada dois
meses antes.
1905 — Domingo Sangrento em São Petersburgo,
Rússia czarista, iniciando de uma revolução fracassada, e, nos EUA, criação do
Central Intelligence Group, primeiro nome da atual CIA.
E hoje o Presidente Lyndon B. Johnson, que
levou até ao genocídio a guerra que Kennedy lhe deixara no Vietname, faria 116
anos, se não tivesse morrido em 1973.
2024 01 23
IMAGEM - Membros da Guarda Pontifícia marchando dentro da Basílica de S. Pedro
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