sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Francisco Mendes da Silva - Ventura não se moderou. Pelo contrário

 OPINIÃO


O Ventura que vimos na convenção é um líder puramente Schmittiano, que recorre às tácticas e aos temas típicos do extremismo de direita.

Francisco Mendes da Silva

19 de Janeiro de 2024, 6:24

Há cerca de vinte anos, numa pista de dança, quando a inevitável Nowhere Fast dos Fire Inc. atingia o seu clímax final – “Godspeed! Godspeed! Godspeed! Speed us away!” –, um amigo aproximou-se e cantou-me ao ouvido: “Carl Schmitt! Carl Schmitt! Carl Schmitt! Schmitt us away!” Eu sabia que a canção era um exemplo do chamado “rock wagneriano”, mas foi aquela sugestão homofónica que na minha cabeça transformou para sempre o alvoroço dramático dessa Cavalgada das Valquírias pop num hino fascista cómico e acidental.

Carl Schmitt caiu em desuso depois da desgraça dos autoritarismos de direita do século XX, dos quais tinha sido o grande pensador político e jurídico. Foi também com base na sua tese de que a política assenta na divisão entre “amigos” e “inimigos” que as ditaduras europeias justificaram que o papel de um líder não é o de descobrir modos de convivência pacífica entre todos os membros de uma comunidade (como defendem em geral as doutrinas do liberalismo político), mas a de identificar os inimigos internos e externos que devem ser expulsos da comunidade.

Vale a pena estar atento à actual popularidade de Schmitt nas franjas radicais do pensamento da direita e da esquerda, ambas ansiosas por “grelhas de análise” que as ajudem a superar a democracia liberal.

No último domingo, não consegui evitar franzir ironicamente o sobrolho quando percebi pelos directos televisivos que Nowhere Fast foi a banda sonora escolhida para o momento festivo de encerramento da convenção do Chega, ela própria disparada dos altifalantes num volume autoritário que praticamente impediu os representantes dos partidos convidados de comentarem os trabalhos. Hugo Soares que o diga.

Não pretendo retirar conclusões exageradas de uma escolha musical, muito menos com base numa historieta pessoal. Aliás, para os militantes do Chega, salvo porventura Diogo Pacheco de Amorim e mais uma ou duas excepções, “Carl Schmitt” é o treinador do Benfica.

Só que, se há conclusão da convenção que me parece realmente exagerada, apesar de consensual nos analistas, é a de que André Ventura se “moderou” (só porque deixou de falar de ciganos, castração química e prisão perpétua).

Discordo. O Ventura que vimos na convenção é um líder puramente Schmittiano, que recorre às tácticas e aos temas típicos do extremismo de direita. Não só o contemporâneo, mas também o de há cem anos. Todo o seu discurso e programa servem para construir uma base social de apoio própria dos partidos extremistas, assente na divisão “amigo” vs. “inimigo”.

De resto, os “inimigos” a perseguir são os “parasitas” de sempre: os estrangeiros, os imigrantes, as minorias étnicas e raciais, os “subsídio-dependentes” e as elites degeneradas, a começar pelos banqueiros (ontem com a arma do antissemitismo, hoje com a da taxação agressiva). Tudo com base na mentira sobre a gravidade iminente dos problemas, para dar ao eleitorado mais susceptível a ideia de que existe uma solução política simples para a sua sensação difusa de insegurança.

Às vezes discute-se se o Chega é fascista. Os termos habituais desse debate são bastante absurdos, porque para a comparação se utilizam as características dos partidos fascistas quando o fascismo já estava organizado numa simbologia, numa liturgia e numa ideologia sobre a comunidade e o Estado.

Em que é que o Chega não encaixa nesta definição?

É óbvio que o Chega não tem uma organização de juventude militarizada nem uma proposta revolucionária sobre a ordem constitucional do país (ainda que as suas ideias sobre a redução drástica do número de deputados e o reforço do presidencialismo, embrulhadas no slogan da “IV República”, apontem claramente para uma visão caudilhista da legitimidade política).

O problema é que essa precisão científica sobre o que o fascismo acabou por ser esquece o que o fascismo começou por ser, quando construiu a sua base social de apoio. Como escreveu o historiador A.J.P. Taylor nos anos 50, “o fascismo é a verbalização do irracional, pelo que a tentativa de o reduzir a parâmetros racionais se derrota a si mesma”. No seu âmago, a característica central do fascismo foi o incitamento a uma “psicologia da indignação”, a uma “sensação de agravo social”, a uma “barafunda de emoções sombrias e incoerentes”, e à “violência sobre os elementos considerados exteriores à comunidade”. Em que é que o Chega não encaixa nesta definição?

Todas as democracias têm bolsas de descontentamento contra o “sistema”. É uma energia catártica, não necessariamente negativa, que não é canalizada sempre pelos mesmos. Pode sê-lo pela direita ou pela esquerda, por partidos inorgânicos ou até por partidos ideológicos. Nem sempre há uma coincidência absoluta entre o posicionamento desejado pelos partidos e a utilidade que o povo vê neles. Quando a ideologia é suficientemente marginal e irredutível, a sua real mais-valia, aos olhos do eleitorado, é a de oferecer um voto “de protesto” contra a “situação”. É por isso que muita da energia populista capturada hoje pelo Chega já o foi no passado pelo PCP e pelo BE.

Muita da energia populista capturada hoje pelo Chega já o foi no passado pelo PCP e pelo BE

No entanto, André Ventura é de longe o que parece vir a ser mais recompensado enquanto líder anti-sistema. Há várias razões para isso: o seu talento raro para a demagogia, a onda populista internacional, a desnecessidade de mediação oferecida pelas redes sociais, a degradação da imagem dos políticos, a incapacidade crónica de os sucessivos governos darem satisfação às necessidades das pessoas em aspectos centrais das suas vidas.

Mas há um outro motivo pelo qual ele é tão apelativo para o eleitorado que procura um megafone do ressentimento. É que ele não se limita a ser um demagogo rotineiro, como os que há por sistema no sistema. Ventura vai mais longe e usa a fórmula de sucesso dos verdadeiros extremistas. Não escolhe a fonte do agravo, não se agarra só aos instintos da direita. Tanto se atira aos pobres da imigração e dos subsídios como aos ricos dos bancos e das gasolineiras. É esse populismo de escopo largo, pouco preocupado em ser coerentemente “de direita”, que o faz crescer tanto.

E é esse crescimento que ameaça levá-lo à orla do poder, acolhido por quem se convenceu de que, no país da guerra permanente entre dois blocos políticos, inaugurado em 2015 por António Costa, toda a direita é coerente entre si na missão de infligir ao PS a vingança que tarda. Eis, hoje, o ressentimento mais determinante da política em Portugal.

O autor é colunista do PÚBLICO

Advogado

 https://www.publico.pt/2024/01/19/opiniao/opiniao/ventura-nao-moderou-contrario-2077357

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