O Ventura que vimos na convenção é um líder puramente Schmittiano, que recorre às tácticas e aos temas típicos do extremismo de direita.
19 de Janeiro de 2024, 6:24
Há cerca de
vinte anos, numa pista de dança, quando a inevitável Nowhere Fast dos
Fire Inc. atingia o seu clímax final – “Godspeed! Godspeed! Godspeed! Speed us
away!” –, um amigo aproximou-se e cantou-me ao ouvido: “Carl Schmitt! Carl
Schmitt! Carl Schmitt! Schmitt us away!” Eu sabia que a canção era um exemplo
do chamado “rock wagneriano”, mas foi aquela sugestão homofónica que na minha
cabeça transformou para sempre o alvoroço dramático dessa Cavalgada das
Valquírias pop num hino fascista cómico e acidental.
Carl
Schmitt caiu em desuso depois da desgraça dos autoritarismos de
direita do século XX, dos quais tinha sido o grande pensador político e
jurídico. Foi também com base na sua tese de que a política assenta na divisão
entre “amigos” e “inimigos” que as ditaduras europeias justificaram que o papel
de um líder não é o de descobrir modos de convivência pacífica entre todos os
membros de uma comunidade (como defendem em geral as doutrinas do liberalismo
político), mas a de identificar os inimigos internos e externos que devem ser
expulsos da comunidade.
Vale a pena
estar atento à actual popularidade de Schmitt nas franjas radicais do
pensamento da direita e da esquerda, ambas ansiosas por “grelhas de análise”
que as ajudem a superar a democracia liberal.
No último
domingo, não consegui evitar franzir ironicamente o sobrolho quando percebi
pelos directos televisivos que Nowhere Fast foi a banda sonora
escolhida para o momento festivo de encerramento da convenção do Chega, ela
própria disparada dos altifalantes num volume autoritário que praticamente
impediu os representantes dos partidos convidados de comentarem os trabalhos. Hugo
Soares que o diga.
Não pretendo
retirar conclusões exageradas de uma escolha musical, muito menos com base numa
historieta pessoal. Aliás, para os militantes do Chega, salvo porventura Diogo
Pacheco de Amorim e mais uma ou duas excepções, “Carl Schmitt” é o treinador do
Benfica.
Só que, se há
conclusão da convenção que me parece realmente exagerada, apesar de consensual
nos analistas, é a de que André Ventura se “moderou” (só porque deixou de falar
de ciganos,
castração química e prisão perpétua).
Discordo. O
Ventura que vimos na convenção é um líder puramente Schmittiano, que recorre às
tácticas e aos temas típicos do extremismo de direita. Não só o contemporâneo,
mas também o de há cem anos. Todo o seu discurso e programa servem para
construir uma base social de apoio própria dos partidos extremistas, assente na
divisão “amigo” vs. “inimigo”.
De resto, os
“inimigos” a perseguir são os “parasitas” de sempre: os estrangeiros, os
imigrantes, as minorias étnicas e raciais, os “subsídio-dependentes” e as
elites degeneradas, a começar pelos banqueiros (ontem com a arma do
antissemitismo, hoje com a da taxação agressiva). Tudo com base na mentira
sobre a gravidade iminente dos problemas, para dar ao eleitorado mais
susceptível a ideia de que existe uma solução política simples para a sua
sensação difusa de insegurança.
Às vezes
discute-se se o Chega é fascista. Os termos habituais desse debate são bastante
absurdos, porque para a comparação se utilizam as características dos partidos
fascistas quando o fascismo já estava organizado numa simbologia, numa liturgia
e numa ideologia sobre a comunidade e o Estado.
Em que é que
o Chega não encaixa nesta definição?
É óbvio que o
Chega não tem uma organização de juventude militarizada nem uma proposta
revolucionária sobre a ordem constitucional do país (ainda que as suas ideias
sobre a redução drástica do número de deputados e o reforço do
presidencialismo, embrulhadas no slogan da “IV República”,
apontem claramente para uma visão caudilhista da legitimidade política).
O problema é
que essa precisão científica sobre o que o fascismo acabou por ser esquece o
que o fascismo começou por ser, quando construiu a sua base social de apoio.
Como escreveu o historiador A.J.P. Taylor nos anos 50, “o fascismo é a
verbalização do irracional, pelo que a tentativa de o reduzir a parâmetros
racionais se derrota a si mesma”. No seu âmago, a característica central do
fascismo foi o incitamento a uma “psicologia da indignação”, a uma “sensação de
agravo social”, a uma “barafunda de emoções sombrias e incoerentes”, e à
“violência sobre os elementos considerados exteriores à comunidade”. Em que é
que o Chega não encaixa nesta definição?
Todas as
democracias têm bolsas de descontentamento contra o “sistema”. É uma energia
catártica, não necessariamente negativa, que não é canalizada sempre pelos
mesmos. Pode sê-lo pela direita ou pela esquerda, por partidos inorgânicos ou
até por partidos ideológicos. Nem sempre há uma coincidência absoluta entre o
posicionamento desejado pelos partidos e a utilidade que o povo vê neles.
Quando a ideologia é suficientemente marginal e irredutível, a sua real
mais-valia, aos olhos do eleitorado, é a de oferecer um voto “de protesto”
contra a “situação”. É por isso que muita da energia populista capturada hoje
pelo Chega já o foi no passado pelo PCP e pelo BE.
Muita da
energia populista capturada hoje pelo Chega já o foi no passado pelo PCP e pelo
BE
No entanto,
André Ventura é de longe o que parece vir a ser mais recompensado enquanto
líder anti-sistema. Há várias razões para isso: o seu talento raro para a
demagogia, a onda populista internacional, a desnecessidade de mediação
oferecida pelas redes sociais, a degradação da imagem dos políticos, a
incapacidade crónica de os sucessivos governos darem satisfação às necessidades
das pessoas em aspectos centrais das suas vidas.
Mas há um outro
motivo pelo qual ele é tão apelativo para o eleitorado que procura um megafone
do ressentimento. É que ele não se limita a ser um demagogo rotineiro, como os
que há por sistema no sistema. Ventura vai mais longe e usa a fórmula de
sucesso dos verdadeiros extremistas. Não escolhe a fonte do agravo, não se
agarra só aos instintos da direita. Tanto se atira aos pobres da imigração e
dos subsídios como aos ricos dos bancos e das gasolineiras. É esse populismo de
escopo largo, pouco preocupado em ser coerentemente “de direita”, que o faz
crescer tanto.
E é esse
crescimento que ameaça levá-lo à orla do poder, acolhido por quem se convenceu
de que, no país da guerra permanente entre dois blocos políticos, inaugurado em
2015 por António Costa, toda a direita é coerente entre si na missão de
infligir ao PS a vingança que tarda. Eis, hoje, o ressentimento mais
determinante da política em Portugal.
O autor é
colunista do PÚBLICO
Advogado
https://www.publico.pt/2024/01/19/opiniao/opiniao/ventura-nao-moderou-contrario-2077357
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