quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Bárbara Reis - Um anúncio fez rir e pôs pessoas a ler notícias



LIVRE DE ESTILO
 
Uma newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.
 
24 de janeiro de 2024

E, de repente, uma notícia que publicámos há quase três meses, teve hoje um pico de leitura no site do PÚBLICO.

A notícia foi "redescoberta" e lida por uns bons milhares de leitores. O título era Escondidos em livros estavam 75.800 euros em dinheiro no gabinete de Vítor Escária, que publicámos a 9 de Novembro, sobre a descoberta de dinheiro nas estantes do escritório do chefe de gabinete do primeiro-ministro, no Palácio de São Bento.

E fiquei a pensar: o que levou tantas pessoas a irem ler uma notícia velha e factual, o primeiro de muitos artigos que se escreveram nos últimos meses sobre essa incrível descoberta?

É raro e, quando acontece, é com artigos intemporais, que vale a pena ler hoje ou daqui a um ano ou uma década.

A resposta é simples: o número "75.800 euros" está na nova campanha publicitária do Ikea.

Se estou a pensar bem, milhares de pessoas que viram a campanha ficaram curiosas e quiseram saber o que significava aquele valor no cartaz. Ou seja, milhares de pessoas não sabiam dos 75.800 euros, uma das razões que levaram António Costa a demitir-se, que foi, digamos, a notícia do ano.

A campanha da empresa sueca anuncia uma estante e diz: "Boa para guardar livros. Ou 75.800€." É uma "peça" publicitária que faz parte de um conjunto todo ligado às eleições portuguesas de Março: "A nossa geringonça contra o frio" (e mostra uma manta); "Puxamos o tapete à inflação" (e tem um tapete); "Para se aquecerem sozinhos ou coligados" (um edredão).

É daquelas campanhas que se adora ou se odeia. Faz rir, mas também faz pensar nos limites do humor. Falei com três publicitários. Numa coisa, estão de acordo: a campanha já ganhou.

"Alguém que vê e sorri, está ganho. Alguém que vê, sorri e comenta, mais ganho está. Alguém que vê, sorri, comenta e partilha, é o ultimate", diz João Ribeiro, managing partner da Stream and Tough Guy (os publicitários, como os economistas, os gestores e outras profissões, adoram inglês).

"Conseguiram ser notícia, estão virais nas redes, têm partilhas, há ressonância com as pessoas, entrou no quotidiano. O risco compensa", diz Ribeiro. A campanha "não quer vender estantes, quer construir marca, criar good will" (eu avisei) "e conseguiu".

Porquê risco? "Nós gostamos de tudo", diz Ribeiro, "mas as empresas fogem de religião, política, sexo e guerra".

A alegria do publicitário resume-se numa frase: "A maior parte da publicidade que vemos é ruído e lixo, campanhas sem retorno. Gastam-se milhões, as pessoas olham e não retêm nada. Esta é uma indústria com muito desperdício. Aqui é o inverso." 

Miguel Barros, CEO da Havas Creative em Portugal, é dos publicitários que gostam de ver marcas a tomar partido por causas. "Há sempre alguém que diz 'isto é política, as marcas não se devem meter', mas eu gosto de ver que a marca tem cabeça, que pensa, que faz julgamentos, que toma partido. Consigo imaginar uma marca a dizer: 'Não gostamos de Donald Trump' ou 'Somos a favor do direito ao aborto'. Gosto de marcas com atitude."

E neste caso? "Pode dizer-se que não é boa para o PS, mas não me parece que tenha esse propósito. O que vejo aqui é o desinteresse que tem uma estante e o interessante que é falar sobre isto."

Todos concordam com duas coisas: a marca "agarrou a oportunidade" (há eleições em breve) e não está a tomar partido por ninguém. "Não fazem um juízo de valor. Estão a brincar com as eleições e a ser provocadores. Mas não me parece que se possa dizer que o Ikea é contra o PS. Brinca com os 75.800 euros, mas não diz se é certo, se é errado", diz Pedro Bexiga, co-fundador da Coming Soon.

Só uma coisa espanta publicitários e jornalistas: há pessoas que viram a campanha e não sabiam a que propósito estava ali aquele número, 75.800. Esses, na linguagem publicitária, não tiveram "gratificação imediata". Viram, não conseguiram descodificar, logo, não tiveram prémio. 

Na linguagem dos jornalistas, dizemos outra coisa.

https://www.publico.pt/2024/01/24/newsletter/livre-estilo


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