sábado, 6 de janeiro de 2024
PORQUE
CONTINUAMOS A SUBESTIMAR A EXTREMA-DIREITA?
A subestimação da extrema-direita
mantém-se. Devemos levar a sério este perigo e não lhe dar nem um minuto de
descanso. Ainda vamos a tempo de combater a extrema-direita para o seu
crescimento não ser uma inevitabilidade.
Tiago Castelhano* | Setenta
e Quatro
No final de 2016, início de 2017, o
debate à esquerda sobre a extrema-direita centrava-se sobre se era um fenómeno
passageiro e na terminologia a ser dada ao movimento. Havia então uma absoluta
subestimação da extrema-direita e do perigo que representa. Lembremos que a
imensa maioria da esquerda e centro-esquerda brasileira e norte-americana
consideravam impossível a vitória destes candidatos; depois que não terminariam
o mandato; por fim, que se iriam deixar moderar… A história não foi bem assim.
Passados sete anos da vitória de
Trump nas eleições de 2016, é já consensual, à esquerda, que existe hoje no
mundo uma realidade indesmentível: o neofascismo/extrema-direita é uma corrente
global de massas bem organizada e coordenada, não é nem um fenómeno passageiro
nem sairá de cena sem uma grande luta. Mas a verdade é que a subestimação da
extrema-direita se mantém. Parece que o desacordo provém do desconhecimento
sobre o adversário, ou seja, não sabermos realmente o que é a
extrema-direita, qual a sua essência nem o que representa o risco de
se apoderar do aparelho de Estado.
O neofascismo não é uma fotocópia do
fascismo dos anos 1920 e 1930, embora seja importante também olhar para esse
período e retirarem-se lições históricas. Não acho sequer muito proveitoso
fazer uma discussão de terminologia sobre o neofascismo/extrema-direita, e não
faltam definições para todos os gostos. Nem é estrategicamente correto
chamar-lhe populista, porque, além de ser um conceito vago, pode acabar por
normalizar a extrema-direita, tornando-a mais simpática aos olhos das massas.
Além disso, o populismo é mais uma estratégia política do que uma ideologia,
logo existe populismo de esquerda e de direita. Usar o termo populismo para
comparar esquerda e direita, chamando-lhes os extremos que se tocam, é uma das
estratégias mais usadas pelo centro político.
O neofascismo/extrema-direita é uma
corrente global de massas bem organizada e coordenada, não é nem um fenómeno
passageiro nem sairá de cena sem uma grande luta.
Prefiro, então, identificá-los como
neofascistas/extrema-direita, mas o essencial é a discussão sobre a sua
essência. Porque, se chegarmos a acordo sobre essa questão, entenderemos o
perigo que a extrema-direita representa, a forma como a chamamos deixar de ter
tanta importância.
QUAL É O PROJETO E A ESSÊNCIA DO
NEOFASCISMO/EXTREMA-DIREITA?
O neofascismo/extrema-direita
representa a nível internacional uma corrente mundial de massas que se apoia
numa camada da população (classe média) e num sector da burguesia mais
reacionário que não está para mediações, seja com a classe trabalhadora, seja
com a preservação do planeta, para poder cumprir o objetivo supremo: a
maximização do lucro. Isto não significa que o sector maioritário da burguesia
que dirige o mundo tenha preocupações com o planeta ou com os trabalhadores e
oprimidos. Mas a verdade é que não podemos equiparar em termos políticos Donald
Trump com Joe Biden, Marie Le Pen com Emmanuel Macron, por muitas críticas que
tenhamos a Biden e a Macron.
O acirrar da disputa entre a China
como potência ascendente na economia mundial e os EUA pela manutenção de sua
hegemonia política e económica leva a que um sector dos capitalistas dos EUA
apoie Trump e se vire contra o modelo da “Globalização” que vigorou nos últimos
40 anos. Se olharmos para Bolsonaro no Brasil, Javier Milei na Argentina, André
Ventura em Portugal ou Santiago Abascal no Estado Espanhol, verificamos que
coincidem na linha de ataque à China e em defesa dos EUA, tal como na denúncia
da “ordem globalista”.
Este posicionamento expressa duas
coisas: um alinhamento incondicional com o imperialismo ainda hegemónico, mas
também a defesa de uma nova ordem mundial de estados, distinta da das últimas
décadas, para cumprir esse desígnio. Neste sentido, Steve Bannon tentou ser um
dos pontos centrais da articulação da extrema-direita entre os dois lados do
Atlântico e pode dizer-se que a extrema-direita se tornou mais
internacionalista do que grande parte da esquerda — basta constatar os vários encontros internacionais da
extrema-direita, bem como as deslocações constantes a países onde se
realizem eleições e os seus “companheiros” estejam na disputa direta pelo
poder.
A essência do fascismo ou, neste
caso, do neofacismo incide sobretudo no ódio à classe trabalhadora, em
particular às camadas mais oprimidas e exploradas, como as pessoas
racializadas, LGBTQIA+ e mulheres, mas também aos seus representantes
partidários, sindicais e associativos. Tanto o fascismo clássico dos anos 20/30
do século XX, com origem em Itália, pela mão de Benito Mussolini, como o
neofacismo atual têm estas características: ódio à classe trabalhadora e à
esquerda. É todo um programa político que nem sempre é levado a sério na
sociedade atual, inclusive por muitos de nós.
Basta verificarmos o que dizia parte
da esquerda, por exemplo, nos EUA, no Brasil ou na Argentina antes de Trump,
Milei e Bolsonaro serem eleitos. A ridicularização dos candidatos, o não levar
a sério, a menorização do perigo que representavam. Ou, por outro lado, o
fatalismo derrotista que aceita a vitória do adversário, assumindo que não há
nada a fazer — outra face da subestimação.
A verdade é que o perigo de governos
do neofascismo/extrema-direita ou com a sua participação são reais e devem ser
encarados de forma séria pela esquerda. Há que ter claro que estes governos não
são iguais a governos de direita. Recorro ao filósofo marxista George Novack:
“Duas coisas que têm algumas características em comum, não são necessariamente
o mesmo, mesmo
para o raciocínio da lógica formal o facto de o ganso ser um animal não torna
todos os animais gansos”.
Seria importante não usarmos a lógica
formal para o nosso próprio bem. Há que distinguir entre perigos diferentes,
mesmo quando têm algo em comum: a extrema-direita, como o resto das direitas, é
“um animal”, mas não é um “ganso”. É outro perigo, de outra natureza, pelo que
merece uma atenção específica.
“O que parecia impossível, agora
tornou-se inevitável", é a frase sempre dita nos países em que o
neofascismo chega ao poder.
Nos governos de extrema-direita, os
ataques à classe trabalhadora são demolidores em termos de privatizações de
empresas públicas (e não só), cortes nos direitos dos trabalhadores,
despedimentos massivos, um ataque em grande escala à educação e à saúde pública
e uma possível privatização do regime de segurança social. A par destes
ataques, estamos a falar de ataques aos sectores oprimidos que se
concretizariam numa ofensiva aos seus direitos como, por exemplo, a
ilegalização do aborto, o fim da educação sexual, a perseguição a pessoas trans
conjuntamente com o aumento do discurso de ódio.
A consequência é o crescimento de
atos de ódio, como pudemos ver no Brasil, com o aumento das perseguições e
agressões a setores oprimidos. Ou como vimos recentemente na violência de rua
anti-imigrantes na Irlanda e na França. Em Portugal, não devemos esquecer Bruno
Candé, assassinado em Moscavide num ato de ódio que não se pode dissociar do
discurso de ódio do Chega e do seu líder, ainda que não estejam sequer no
governo. Imagine-se o que acontecerá se permitimos que cheguem ao poder. As
vidas das e dos que serão os seus alvos importam.
Por último, estes governos, para
aplicarem os seus programas, precisam de um endurecimento autoritário do regime
político. Isso significa um ataque à esquerda e ao conjunto da classe
trabalhadora, ataque aos sindicatos, repressão dos movimentos sociais, maior
acesso a armas, aumento da violência policial, perseguição aos partidos de
esquerda, aos seus dirigentes e às suas sedes – vide Espanha e os ataques às
sedes do PSOE. Nenhum país está imune, apesar dos “brandos costumes”.
Há que mudar o chip: quando o risco
de vitórias da extrema-direita está em cima da mesa, travá-las passa a ser o
centro da disputa. E há forças para as travar.
Não sabemos se esse endurecimento
culminará em formas abertamente ditatoriais fascistas, mas essa não é a
questão, pois a transformação da democracia num regime autoritária é um
processo, não é algo instantâneo quando a extrema-direita chega ao poder. Porque,
por um lado, um endurecimento do regime, como vimos na Hungria, é
suficientemente perigoso; por outro, porque o objetivo dessa via autoritária é
reforçar o militarismo em curso e a exploração do planeta — com os riscos
existenciais que tal acarreta.
A forma rotineira da democracia
burguesa está tão entranhada em nós que, muitas vezes, nos parece impossível
que possa ser posta em causa. Porém, a verdade é que não devemos esperar
para o ver acontecer e devemos levar a sério o perigo da extrema-direita
passando a não lhe dar nem um minuto de descanso.
É também verdade que dentro do chapéu
da “extrema-direita” existem várias organizações com especificidades, tal qual
como existem à esquerda. Se lermos investigações jornalísticas, por
exemplo, aqui no
Setenta e Quatro, verificamos precisamente isso e podemos encontrar
semelhanças ou especificidades no mundo alargado da extrema-direita. Conhecer o
nosso adversário também passa por entender as diferenças entre Trump e os
“Proud Boys” ou entre o Chega e o Escudo Identitário. Contudo, é fundamental
entender o projeto que os une a todos: a redução da esquerda à marginalidade e
a subjugação total da classe trabalhadora.
Ou seja, estamos a falar de um
fenómeno global de massas que tem como projeto político tornar o capitalismo
ainda mais insuportável, levando ainda mais ao limite a classe trabalhadora e o
planeta, através da alteração de regime, tornando o mais totalitário e
repressivo. Haverá quem ache um exagero e use o exemplo de Trump ou de
Bolsonaro no poder para demonstrar que não houve qualquer tipo de mudança de
regime. A este argumento convém opor que, sendo verdade, não devemos subestimar
nem esquecer a invasão do capitólio pelos apoiantes de Trump, aquando da sua
não reeleição, nem da invasão das sedes dos poderes judicial, legislativo e
executivo do Brasil pelos apoiantes de Bolsonaro quando perdeu também a sua
reeleição.
Estes dois acontecimentos provam o
projeto e a essência da extrema-direita, antidemocrática, assente na violência
política extra-parlamentar. É certo que naqueles momentos não existiu relação
de forças para o golpismo poder ir mais longe. Mas não foram brincadeiras — na
verdade, serviram como testes.
Combater as ideologias dominantes e
reacionárias será fulcral para conseguirmos unificar as classes populares
trabalhadoras.
Importa ainda relembrar que o
fundador do fascismo, Benito Mussolini, só procedeu à mudança de regime depois
de estar oito anos no poder. Logo, é bom que sejamos prudentes com avaliações
precipitadas sobre a extrema-direita não ter intenções de subverter o regime.
Eles poderão fazê-lo caso entendam que existem condições e a verdade é que os
dois acontecimentos mencionados os comprovam. O constante questionamento dos
processos eleitorais, tanto no Brasil como nos EUA e até na Argentina, tem o
objetivo de criar o ambiente propício de desconfiança em relação às eleições
caso não as vençam e assim irem desgastando o regime.
Mesmo que estas forças não tenham, à
partida, um projeto de destruição da democracia liberal, a sua ascensão pode
libertar forças reacionárias que, fugindo do controlo, avancem nesse sentido. O
caso é demasiado sério para nos satisfazermos com consolos efémeros. Não vale a
pena pagar para ver, nem é caso para desistir à partida.
O QUE SIGNIFICA UMA DERROTA
HISTÓRICA?
O perigo do
neofascismo/extrema-direita está também ligado à questão do endurecimento
autoritário do regime. Cabe relembrar que tanto Trump como Bolsonaro só
estiveram um mandato no poder. O não terem conseguido aplicar cabalmente
medidas de endurecimento não nos deve fazer relaxar. Devemos entender que, se
se dá um endurecimento dos regimes democráticos, isso pode significar uma
“derrota histórica” para a classe trabalhadora como um todo.
Se olharmos para Bolsonaro no Brasil,
Javier Milei na Argentina, André Ventura em Portugal ou Santiago Abascal no
Estado Espanhol, verificamos que coincidem na linha de ataque à China e em
defesa dos EUA, tal como na denúncia da “ordem globalista”.
Derrota histórica significa que toda
uma geração desmoraliza ao ponto de perder qualquer tipo de esperança nas suas
forças e na transformação do mundo, gerando uma relação social de forças consolidada e favorável às
forças reacionárias. Este é o perigo associado à extrema-direita. Impor
essa derrota é o seu projeto. Ou seja, não são mais um partido de direita
radical, mas partidos — um movimento internacional, segundo Steve Banon — que têm como projeto derrotar a
classe trabalhadora e os seus representantes de forma que o capitalismo se
torne ainda mais desenfreado e selvagem do que já é hoje.
Em muitos dos países em que o
neofascismo chegou ao poder, uma das frases que sempre dita e ouvida na noite
das eleições é: “O que parecia impossível, agora tornou-se inevitável.” É uma
frase que podia ter sido dita em Itália após a vitória de Meloni que, quatro
anos antes, tinha resultados marginais. Ou no Brasil, a propósito de Bolsonaro
que era caracterizado como um palhaço, ou, mais recentemente, sobre Milei,
caracterizado como um louco.
Contudo, esta frase transmite uma
lição importante: quando se diz que parecia impossível a vitória destes
personagens, o que significa na verdade é que essa possibilidade foi
menosprezada. Devemos deixar de o fazer: paremos de menorizar a capacidade da extrema-direita
para chegar ao poder. Mas a segunda parte da frase em que se menciona a
inevitabilidade também nos pode ajudar a tirar uma lição.
Não há inevitáveis absolutos. Ainda
vamos a tempo de combater a extrema-direita para o seu crescimento não ser uma
inevitabilidade. Em cada processo eleitoral e nas ruas em que a possibilidade
de vitória do neofascismo surge, há uma disputa a fazer: não está escrito que
eles vençam. Pelo contrário, parte da sua força tem sido a nossa falta de
preparação — muitas vezes a esquerda só se dá conta do perigo depois das suas
vitórias. Há que mudar o chip: quando o risco de vitórias da extrema-direita
está em cima da mesa, travá-las passa a ser o centro da disputa. Afirmar isto
não é ceder ao fatalismo, pelo contrário, é assumir a posição de que podemos
travar estas forças quando não as desprezamos. Afirmar, mesmo em tom de
bravata, que esse perigo é secundário, é, no mínimo ingénuo, e na verdade
derrotista.
Há forças para os travar. Vejamos a
resposta do movimento feminista e do Black Lives Matter (BLM) contra Trump; do
movimento feminista “Ele não” contra Bolsonaro. Ou, noutra escala e em termos
eleitorais, a votação na Ana Gomes nas eleições presidenciais de 2020. Há
forças sociais para travar o neofacismo.
Para a esquerda poder vencer a luta
contra a extrema-direita, é importante colocar-se no sítio certo, ou seja,
identificar a extrema-direita como o principal perigo no mundo e posicionar-se
na primeira linha de combate. Aliás, fazê-lo é a única forma de impedir que as
forças do centro se alimentem do legítimo receio popular face ao neofascismo —
combater a extrema-direita não é capitular ao centrão, é antes a forma de o
esvaziar. É também fundamental trabalhar-se a favor da unidade da classe
trabalhadora e, consequentemente, dos seus representantes na luta contra a
extrema-direita.
A transformação da democracia num
regime autoritário é um processo, não é algo instantâneo. Benito
Mussolini, só procedeu à mudança de regime depois de estar oito anos no poder.
Há que dar respostas concretas aos
problemas relacionados com o custo de vida, habitação, saúde, educação dos
trabalhadores, mas também fazer a disputa ideológica sobre temas como o
racismo, a LGBTfobia e o machismo que conspurcam as mentes de milhões de
trabalhadores. Combater as ideologias dominantes e reacionárias será fulcral
para conseguirmos unificar as classes populares trabalhadoras. Porque são estas
ideias que dividem a classe trabalhadora, há então que fazer a disputa
ideológica sem medo. A luta contra as desigualdades sociais, pelo salário e em
defesa dos serviços públicos é, de facto, essencial. Mas o mero economicismo ou
o sindicalismo não são suficientes.
Isto porque a saída neofascista para
a crise também dá, em certa medida, resposta a estes problemas: acirram os
ódios mas, no final, governa para a mesma minoria abastada de sempre. “Não há
emprego e serviços públicos para todos, sacrifiquemos uma parte — as mulheres,
os imigrantes, as pessoas LGBT, o planeta — para salvar o cidadão de bem e as
famílias tradicionais!” A este mote só se responde mobilizando as “minorias”
excluídas, criando uma maioria social, nas ruas, nos sindicatos, nas
associações, nas escolas e universidades.
A luta contra a extrema-direita será
certamente dura e longa, mas é fundamental para mantermos (e aprofundarmos) os
direitos políticos e económicos mais elementares, da esquerda, da nossa espécie
e do planeta. Tendo este ponto assente, não há fatalismo que nos detenha.
* Ativista e militante de esquerda.
Licenciado e Mestre em Economia. Professor de Economia no Secundário.
Participou nos movimentos sociais contra a Troika.
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