segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Hugo Dionísio - OS IDENTITARISMOS – “WOKE-LIBERAL” E O CONSERVADOR-REACCIONÁRIO

* Hugo Dionísio

O que está subjacente à comodificação do corpo, é a concretização material da alienação do ser humano em relação ao seu meio, ao seu ser, ao seu planeta. Sabe-se, de ciência certa, que o capitalismo aliena o ser humano de tudo o que lhe é caro. Para o poder explorar e da sua actividade retirar mais valia (mais-valor), tem necessidade de o separar, afastar (alienar) dos condicionalismos naturais, culturais, éticos ou morais que se coloquem entre este ser humano e a pretensão de acumulação de quem recolhe a mais valia, no final, o lucro. Começa por aliená-lo de uma grande parte do produto do seu trabalho, e esse facto funciona como uma espécie de “pecado original”, que leva à alienação do trabalhador (a maioria dos seres humanos são trabalhadores, memso que alguns nãos e considerem como tal) de tudo o resto. Seja do espírito, seja do corpo, se quisermos colocar isto em termos cartesianos.

O facto de o alienar do produto do seu trabalho, obriga o trabalhador, o pobre, a trabalhar mais tempo para sustentar o seu viver. Por aí, o sistema aliena-o da sua família, dos seus filhos, da vida social, cultural, política, religiosa… Pois o tempo que seria destinado ao lazer, à fruição e à socialização, é passado a trabalhar. Daí que o tempo de trabalho seja a medida certa, primeiro, da intensidade da exploração, segundo, da intensidade da alienação. A importância da divisão do trabalho e da redução do tempode trabalho sem redução d aretribuição é, por isso mesmo, primordial e resulta da justa repartição dos ganhos científicos e tecnológicos produzidos pelo próprio trabalho. É o trabalho que inova, não é o capital. Sem trabalho, o capital é uma coisa morta, inútil. No sentido de manter esse status quo, o capitalismo tem de arregimentar e utilizar como instrumentos as instituições sociais existentes. os sindicatos tenta agrupá-los na concertação social (uma câmara corporativa), os partidos submete-os ao financiamento privado e ao lobying privado, as religiões torna-as instumentos da ideologia de acumulação.

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Consequentemente, eliminadas ou enfraquecidas as forças contraditórias, que questionam, intervêm e organizam (que podemos chamar de classe, mas que outros lhe chamarão outra coisa), abre-se espaço para uma sociedade individualista., desligada da política e desinteressada das grandes questões que afectam a sua sobrevivência. Neste caso, refiro-me à “sobrevivência”, à qualidade dessa “sobrevivência” e não à sua estética individual. à sua fachada. O que importa podermos assumir todas as estéticas individuais disponíveis no catálogo capitalista global, se não tivermos casa, educação, saúde, trabalho com direitos, tempo para lazer, etc.? O indivíduo, desenraizado, desorganizado e desinserido do seu ser político e social, torna-se presa de correntes idealistas que vivem dentro do sistema capitalista e que visam a sua manutenção nos termos actuais. É o que acontece com o “trumpismo”, no lado da reacção, ou com o “wokeismo” no lado liberal social. Ambos são conservadores no que respeita à manutenção do modo de produção tal como está e à manutenção das relações de exploração trabalho/capital. Mas, para dar maior amplitude à “legitimidade social”, cria-se a ideia de que o ser “liberal” nos costumes significa ser “progressista” e “de esquerda”, o ser “conservador” nos costumes significa ser nacionalista e de direita. Ambos se preocupam mais com a fachada, com a estética, com o plástico, do que com a essência, a arquitectira e a construção em que assentará essa fachada.

Assim se cria uma ideia de falsa diversidade, que bebe a sua força nos órgãos de comunicação, no entretenimento (a comodificação e alienação do ser humano da cultura leva a isto) e da educação, também ela comodificada e mercantilizada. Nada escapa ao capitalismo, nesta fase neoliberal. Nada. O próprio meio ambiente é objecto de comodificação. Aliena-se o ser humano do meio ambiente, encaixotando-o em cidades cinzentas e fazendo o seu universo um mero écrã de comutador, TV ou telemóvel. No final, vende-se-lhe a ideologia eco-capitalista, porque também ela implica a aceleração e fortalecimento de ciclos de acumulação.

Cria-se a ideia de que empresas que visam apenas o lucro e o dinheiro fácil, estão preocupadas com o planeta. Assim, o ideal woke (idealista porque desligado da nossa natureza material, biológica, animal e social, apenas existindo no plano das ideias – identitarismo) ou securitário, entram de forma fácil dos jovens e adultos alienados. Uns mudam de género (ideologia de género), de orientação sexual, defendem o rendimento básico universal, que coloca os trabalhadores nas mãos do grande capital, que lhes dá a esmolazita (confundindo isso com “justiça social”).

Outros entregam-se a superfluas e estéreis agendas verdes que lhes vendem, sem nunca pensarem que “o capitalismo não é verde”, porque nunca o poderá ser. Porque a sua natureza é acumular; o capitalismo não procura resolver as suas contradições; ao invés, procura explorá-las. Outros, também ávidos por afirmarem uma identiddae vazia, despida de conteúdo, aderem às armas, às tatuagens, à ultramasculinidade ou ultrafemininidade, aos músculos, às plásticas, etc. Uns e outros, narcisistas, identitários e conservadores ao mesmo tempo. Conservadores em quê? Conservadores do ponto de vista do progresso e mudança na estrutura do modo de produção capitalista. n

enhum é revolucionário, reformista sequer. Não defendem a transição para outro modo de produzir o sustento que seja mais avançado. Seja através da via revolucionária (palavra tabu para uns e outros), seja através da via “evolutiva” como defendiam os socialistas utópicos. Uns e

outros estão mais recuados – politicamente falando – do que a burguesia revolucionária, da era das luzes. Nenhum faz ideia de que o mundo, para ser mais justo e para que todos tenhamos liberdade individual, mas tendo condições de vida (estes são levados apenas a valorizar a liberdade individual, esgotando a sua acção nesse domínio), tem de assentar numa estrutura de relações económcas e sociais diferentes, mais equitativas, colectivas e livres dos grandes acumuladores e monopolizadores. Uns e outros são neoliberais, uns e outros são pró-capitalistas, pró-imperialistas.

Uns e outros, nem sempre, ou quase nunca, fazem ideia disso sequer. No caso dos identitários “woke”, o que os denuncia, normalmente, é a sua adesão às narrativas imperialistas superficiais, quando estão em causa conflitos que opõem o imperilsiamos dominante a outras formas de organização estatal e social, diferentes – ás vezes nem isso – A alienção é tão grande, que uns reduzem a liberdade ao casamento de pessoas do mesmo sexo ou à mudança de sexo, outros acham que basta acabar com os emigrantes asiáticos e todos os problemas da sociedade estão resolvidos. Reduzem o discurso político a questões acessórias, estéticas, plásticas, nunca discutindo o que lhes está na essência. não que algumas – ou todas – essas questões sejam importantes, não é isso, mas porque estão a montante dos problemas fundamentais que nos afectam. Numa sociedade em que os problemas básicos de sobrevivência não só não estão resolvidos, como estão a degradar-se, reduzir o discurso político ao identitarismo, é redutor e desviante.

Uns e outros negam – ou esquece – a importância fundamental das condições de vida, da justiça social, da democracia (democracia implica defender políticas que interessam à maioria, aos trabalhadores), da liberdade no seu sentido profundo (liberdade de optar onde vivemos, que profissão teremos e onde trabalhar) na produção das indentidades livres. Uma sociedade justa é necessáriamente uma sociedade mais livre, também individualmente. Se todos vivermos com condições de vida adequadas, porque razão nos voltaremos uns contra os outros? Porque razão não aceitaremos as nossas diferenças? Uns e outros negam que as diferenças (de religião, género, étnia) e os conflitos que significam, não são criados pela diferença em, si, mas por um sistema que as utiliza para dividir e desmobilizar quem trabalha, para assim melhor explorar.

E assim, se alienam os seres humanos, iguais na sua diversidade, uns dos outros. O Identitarismo, neste quadro, conservador ou liberal (erróneamente designado de progressista), não proclama o direito à igualdade, o direito a condições iguais, oportunidades iguais. Proclama o direito à diferença, à individualidade, à identidade. Não proclama a união de diferentes, proclama a separação em bolhas de iguais. Não proclama a diversidade e pluralidade, proclama a afirmação da divisão e a separação. Não proclama a tolerância, proclama o sectarismo. Funciona como agente de divisão, para que, quem domina, possa assim, mais facilmente, reinar.

Criando uma separação fútil, de fachada, quem domina, pode afastar a economia, a produção, finança e a acumulação da vida pública, da democracia. Ou seja, alienam os seres humanos das decisões fundamentais, primordiais, que lhes dizem respeito. Como quem tem o poder económico, tem o político… O identitarismo, seja ele qual for, de “esquerda” oud e “direita”, “progressista” ou “conservador”, “liberal” ou “neofascista”, é o resultado desse mesmo poder político. O identitarismo é a expressão social do político principio do “dividir para reinar”. Sendo iguais, julgam-se muito diferentes.

Alienados da reflexão, agem como agentes de um sistema moribundo, que esgota a democracia em estéreis eleições que nada mudam, que mata o planeta (a Inteligência artificial, tal como é usada, polui tanto como o petróleo, mas acelera a circulação de capital e a acumulação), estabelecendo as rotas logisticas internacionais extremamente poluentes e impedem os países mais empobrecidos de se desenvolverem, porque ao sistema interessa a circulação, o consumo e a exploração. Essa componente ecológica, nunca é abordada.

O principio “produzir local, consumir local” e apenas trocar o que uns e outros não têm, é tabu e principio proibido no braço financeiro do sistema de acumulação que são o FMI e o Banco Mundial, ou o BCE. Ser progressista sempre significou colocar em causa a estrutura, a natureza de um sistema. Sempre significou “progredir”, ir mais além. Hoje, continua a ser assim, mas vende-se a ideia de que o sistema já é tudo o que pode ser – o fim da história de fukuyama. O que sobra? O identitarismo liberal (do género e do eco-capitalismo) e o identitarismo conservador (das armas, da pureza racial, do corpo e da ultramasculinidade e ultrafemininidade).

Nenhum deles é revolucionário, nenhum dos dois é radical, nenhum é avançado. Os dois são atrasados, recuados, sectários , vazios de conteúdo e alienados. Nenhum une para vencer, nenhum organiza para mudar. Apenas separam, dividem, desunem. Julgando o próximo, ao invés de julgar o que domina e beneficia desta separação. É o trabalho, a classe, a natureza não proprietária que os une e que é absolutamente determinante para as suas vidas. É esse ponto em comum que uns e outros, maquinal e disciplinadamente, evitam. Comos e fosse um crime ser trabalhador, comos e fosse um crime ser pobre, como se fosse um crime não pertencer à classe proprietária. Está na hora de dar os nomes certos aos bois!

15 de Janeiro de 2024

https://canalfactual.wordpress.com/2024/01/15/os-identitarismos-woke-liberal-e-o-conservador-reaccionario/
 

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